segunda-feira, 8 de abril de 2019

Pequeno parágrafo sobre A História




Numa história de amor e ódio, li que "alguns de nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos". Essas palavras soavam desde as ruínas da civilização em meio à floresta: eram os passos d'A História a embrenhar-se no desconhecido para, tudo conhecendo, oferecer-se como nosso sonho, como sentido do progresso. E rumamos, desde então, munidos da onisciência como projeto e do futuro como destino certeiro, guiados pelas palavras que preencheram nossos pesadelos, esses que só a nós pertencem, acreditando que as manhãs seriam mais doces e que a brisa dos dias nos acariciariam a face já sem o suor do trabalho, mas plena da luz da glória da paresse. E nesse presente que é pura passagem, o tempo do projeto cumpre-se diuturnamente: a manhã nos brinda com mais um massacre, os poderosos mijam em nossas cabeças e nos fazem crer que é chuva, o nada que antes aterrorizava agora já não é senão um companheiro da precariedade de um mundo que se sustenta em fiapos esgarçados, e a exploração (de si e dos outros) dá a tônica dos nossos pesadelos que, agora, parecem acontecer muito mais na vigília do que no sono. Outrora, parece que esperávamos pelas palavras soterradas que, após terem sido derrotadas pelo esquecimento, um dia voltavam lentamente em pelo desejo do outro e, no outro, se reacendiam pelo nosso desejo: nem nossos mortos estavam seguros, mas lutávamos por eles. Não dormíamos muito e ainda podíamos sonhar um pouco mais longe, para além de nós mesmos, abdicando da propriedade sobre nossos sonhos e pesadelos. Agora nos tornamos senhores d'A História em que sonhos e pesadelos têm proprietários, em que deglutimos os desejos do outro crentes de já sabermos tudo, de não termos outro destino senão o d'A História na qual tudo já se cumpriu e tudo já foi conhecido. Às margens do desejo, A História nos quer fazer crer que só nos resta assistir ao que seria o fluxo inexorável do tempo que nos deixa, atônitos, sem palavras e sem memórias, sem mortos e sem vivos, apenas como proprietários e senhores de nossos pesadelos cotidianos.  

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