quinta-feira, 16 de maio de 2019

Quando as sombras se separam do muro - Giorgio Agamben (prefácio)




 Giorgio Agamben

O século XX foi muito especial para a poesia italiana e nele se viu a sucessão de ao menos duas gerações de grandes poetas, de Montale a Caproni, de Sereni a Penna, de Luzi a Betocchi. Talvez menos conhecido – ou menos conhecido do que deveria ser – é que esse extraordinário florescimento foi acompanhado de um não menos imponente florescimento da poesia que convencionalmente chamamos de dialetal. Seria, portanto, necessário reescrever a história da poesia italiana, restituindo ao termo “Itália" seu significado geográfico. Veremos então se desdobrar o já conspícuo número de poetas e, ao lado dos nomes evocados, devemos inscrever os de Marin e Pedretti, de Loi e Bandini, de Pierro, Giacomini e muitíssimos outros.
Ao mesmo tempo, devemos nos dar conta de que um tipo de bilinguismo é consubstancial à poesia italiana, isto é, que esta, por causas que apenas em parte podem ser explicadas com razões históricas e políticas, permaneceu fiel à diglossia que Dante, no De vulgari eloquentia, registrou como uma empreitada nas origens da poesia italiana: o dualismo do vulgar, “falar materno” que "só e primeiro na mente” e que se recebe sine omni regula da ama, e da língua gramatical, que, ao contrário, aprende-se por meio do estudo (em seus tempos, essa língua-gramática, inalterabilis locutionis idemptitas em tempos e lugares diversos, era o latim).
No manifesto da poesia dialetal Filò, de Andrea Zanzotto, o dialeto, que “tem em si uma gota do leite de Eva”, não é exatamente uma língua ao lado de outras: é, antes, o “fato linguístico" em sua irrupção, o ponto em que o falante "toca com a língua nosso não saber de onde a língua vem, no ponto em que vem, sobe como o leite”. Não uma língua “reserva”, portanto, mas, como o vulgar ilustre de Dante, uma guia e uma fonte em direção à qual toda língua deve se orientar. Por isso Pasolini pôde escrever que o dialeto é, de algum modo, a língua da poesia, aliás, a "língua-poesia" por excelência.

Giusti pertence a uma geração que surge depois do último grande florescimento de poesia dialetal do século XX. Trata-se de uma geração – à qual, para dar alguns nomes, pertencem também Luciano Cecchinel, Francesco Nappo e Pier Franco Uliana – que escreve tanto em língua quanto em dialeto, isto é, uma geração para qual o movimento, e quase o vai-e-vem, de uma língua a outra é conatural ao gesto poético. As duas línguas se nutrem uma da outra e vivem tão intimamente uma para a outra que também quando uma das duas parece ausente ela está, na realidade, virtualmente presente. Nesse sentido, mesmo se Giusti escreve sobretudo em italiano, há sempre dialeto em sua poesia, assim como há sempre língua em seu líquido dialeto veneziano. E é possível que o título de sua coletânea em dialeto De un dir apocrifo (2014) aluda ao fato de que o dialeto está "escondido" na língua, como os textos apócrifos estão escondidos dentro e fora dos livros do cânone neotestamentário. Em todo caso, escreve Giusti, o desafio “está em levar, uma à outra, a palavra escrita à oral (visível invisível) para que uma diga aquilo que não é possível à outra dizer."[1]
Como se manifesta essa presença, como se atesta a diglossia – que ao mesmo tempo é sempre aliança e conflito, complicação e simplificação, enriquecimento e espoliação – neste livro e, de modo mais geral, na última poesia de Giusti? Trata-se de uma esfoliação e quase de um colapso dos nexos gramaticais, cujo resultado é uma escrita não apenas paratática, mas mesmo quase assintática. A coordenação gramatical é a tal ponto interrompida e forçada por incisões, exclamações e interrogações e a construção subverte com tanta frequência a ordem lógica (o genitivo antecipado, como em latim, ao nome a que se refere, o sujeito levado para o fim da frase) que a compreensão – que ainda assim infalivelmente acontece – tem algo do milagre. Uma das consequências desse afrouxamento dos nexos sintáticos e discursivos é uma surpreendente confusão entre as palavras e as coisas. Os confins entre os vocábulos, os pensamentos e os objetos parecem esmigalhar-se e escorregar imperceptivelmente uns nos outros como em uma cantiga infantil, e não é fácil para o leitor orientar-se, a cada vez, nessa pueril confusão. A palavra, restituída a seu isolamento onomástico, torna-se uma coisa, em um "puro ininterrupto insone furibundo amontoar-se frio quente de fatos imagens, sombra com um pé em dúvida sobre a extremidade quase que insidiosa do mundo”[2]. Giusti se interroga sobre esse “santo espaço suspenso" da poesia, no qual, como “sobre o fundo ecoante de um poço”, resta apenas o “magistral entrelaçar-se constante do Verbo”[3]. Desse modo, o poeta dá voz à oralidade que na língua permanece obstinadamente ilegível, em uma perspectiva na qual a poesia não se mostra mais como uma língua em que a forma atinge sua perfeição: ao contrário, ela é o lugar de um desfazer-se da forma, de um descriar-se da língua, no qual esta se apresenta pela primeira vez em sua destrutiva irrupção. A obscuridade da poesia de Giusti é apenas a cifra da ilegibilidade daquele “fato linguístico" que, nas palavras de Zanzotto, sempre permanece por vir. E, todavia, a língua por vir de Giusti não cessa de apostrofar e chamar pelo nome, se é verdade que, como certa vez escreveu Walter Benjamin, na poesia “exprimir-se e chamar (anrufen) cada coisa são o mesmo".
Mas quem e o que chama essa poesia? Já se observou que os poetas da geração de Giusti voltam-se a um mundo que desapareceu ou que está desaparecendo. Como escreve Zanzotto sobre sua poesia em dialeto (mas seria possível dizer o mesmo também da sua hiperculta poesia em língua), trata-se de um “parlar poret, de poreti”, de uma poesia escrita para[4] analfabetos, na qual “para” não indica o destinatário, mas aquele no lugar de quem se escreve. Por um curioso paradoxo, esses poetas não olham para o futuro. Como todo verdadeiro revolucionário, o poeta aposta sobre o passado, empenha-se e emite promissórias sobre este. Não se trata, naturalmente, apenas de um passado cronológico, mas, por assim dizer, do passado eterno da humanidade, de algo como o “posterno eterno”, a sombra e o norte eterno sobre os quais fala Zanzotto em Filò. Mas o que é o homem, o que é o humano senão aquilo que sempre está a ponto de ser destruído e de afundar-se?
É a esse homem que desapareceu de modo imemorável e que, todavia, incessantemente está por vir, que se dirige a poesia de Francesco Giusti.   
   


[1] Francesco Giusti. Senza nome, Campanotto, Pasian di Prato 2017, p. 18.
[2] Idem. p. 13.
[3] Ibidem.
[4] N.T.: Agamben joga com o significado de “per” que pode ser traduzido tanto por “por" quanto por “para”. Na tradução, optei por manter o termo "para”, uma vez que o sutil jogo operado em italiano também se deixa ver em português. 

AGAMBEN, Giorgio. Prefazione. In.: GIUSTI, Francesco. Quando le ombre si staccano dal muro. Macerata: Quodlibet, 2019. pp. 7-10. 

Imagem: Francesco Giusti em Veneza. (06/03/2017) Foto de Héloïse Faure.

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