domingo, 12 de abril de 2020

Para além dos atos e dos silêncios: gestos de resistência no olhar



Vinícius Nicastro Honesko



Em março 2000, após a leitura de um relatório que apontava para a série de fracassos das missões de paz da ONU – a UNPROFOR (UN Protection force), na ex-Iugoslávia em 1995, as UNOSOM (UN in Somalia) I e II, na Somália em 1992 e 1993 e, principalmente, a UNAMIR (UN Assistence Mission for Ruanda) em Ruanda em 1995 – o então secretário geral da ONU, Kofi Annan, solicita a realização de uma comissão, com a participação de especialistas em prevenção de conflitos, que deveria sugerir novos modos de atuação das forças de paz. Como resultado dessa comissão surge, em agosto de 2000, o relatório Brahimi (em referência ao então ministro das relações exteriores da Argélia, Lakhdar Brahimi, que esteve à frente dos trabalhos da comissão), que, apresentado em setembro de 2000 na Cúpula do Milênio, trouxe vinte recomendações para as missões de paz da ONU,[1] dentre elas a possibilidade de, diante de violências presenciadas contra civis, a necessidade de intervir. Essas recomendações foram aplicadas às missões de paz que, àquela época, já estavam em curso, dentre elas a UNTAET (UN Transitional Administration in East Timor; missão seguinte à a UNAMET (UN mission in East Timor)[2]), da qual o Brasil, que desde 1994 declarava suas intenções para uma cadeira efetiva no Conselho de Segurança da ONU, foi participante, com a notória participação, como observador do secretário geral da ONU, do diplomata Sérgio Vieira de Mello, além de diversos chefes militares, como o então general de brigada Walter Braga Netto.

As missões da ONU no Timor Leste tinham como fundamental componente a garantia das possibilidades da construção de um país com as pilastras fundamentadas em um Estado de Direito (isto é, a garantia de um processo de constituição legislativa – por meio de Assembleia constituinte –, de eleições livres de representantes etc.) e surgiram diante da necessidade de intervenção da ONU quando da intensificação da violência propiciada pela atuação do governo indonésio que, desde a revolução dos cravos em 1974 e o fim do domínio português, ocupava o território do Timor-Leste. Tal ocupação, grosso modo, acontece quando no Timor-Leste surge a FRETELIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), capitaneada por José Ramos Horta (que ganharia, com o bispo Carlos Ximenes Belo, o Nobel da Paz em 1996) e com claros ideais socialistas. Suharto, o presidente da Indonésia entre 1968 e 1998, vê na ascensão do FRETELIN o perigo comunista – que anos antes ele próprio se encarregara de eliminar na Indonésia – e, por meio de forças especiais do exército[3], ocupa o Timor-Leste. Dentre as táticas de ocupação – considerada um genocídio[4] –, estava o uso ostensivo de napalm, massacres que não discriminavam mulheres, crianças idosos etc. e, por fim, já nos anos 90, mesmo com uma suposta política de controle dos atos do exército, o uso da tortura e a prisão arbitrária de independentistas (denunciados com ênfase pela Anistia Internacional). O fim da ocupação Indonésia no Timor foi propiciado em certa medida pela intervenção da ONU (UNAMET) e, sobretudo, a partir da renúncia de Suharto após a grave crise financeira que abalou o país (a crise dos Tigres Asiáticos) e as revoltas estudantis de maio de 1996, ocorridas após o assassinato de quatro estudantes (o comandante das ações contra os estudantes foi, justamente, Probowo Subianto).

O sofrimento e a violência, a destruição e a subjugação, de fato, foram frequentes nas ações do governo de Suharto no Timor Leste. Todavia, como é uma constante no século XX, essa história não teria sido possível sem que, no contexto geopolítico global, ao menos em alguma medida e por um período Suharto tenha tido, senão apoio direto, ao menos suporte internacional para o cumprimento de seu papel nos jogos de poder globais (ainda que este tenha sido um papel minoritário e setorizado). Ou seja, o mesmo sujeito que subjuga e destrói pode ser, a depender de quem subjuga e destrói, aliado ou inimigo, pode estar à mesa de discussões de estratégias na política econômica ou pode estar no famoso banco dos réus da história.

Se a intervenção e ocupação do Timor Leste pelo governo indonésio – sob a justificação do perigo comunista – foi caracterizada como genocida por boa parte da comunidade política internacional, o mesmo não se pode dizer da eliminação do partido comunista indonésio (PKI) por meio da dizimação de seus membros e supostos simpatizantes, entre 1965 e 1966, sob o comando do então general Suharto. Nesses anos, a Indonésia, que se tornara independente da Holanda entre os anos de 1945 e 1949, ainda passava por um processo de estabilização política. O presidente, Sukarno, líder na revolução de independência e desde então na chefia do governo, equilibrava-se com o que denominava de Democracia Guiada, um modo de gerir as tensões entre os três pilares da jovem república indonésia, o Nas-A-Kom (nacionalismo, agama – religião – e comunismo), representados pelo exército, o islã e os comunistas (a Indonésia tinha então o terceiro maior partido comunista do mundo). Com o acirramento da Guerra Fria, os Estados Unidos passam a dar suporte para setores à direita do exército indonésio, que, por outro lado, contava também com um crescimento de membros ligados ao comunismo. Além disso, com sua aproximação dos soviéticos e sua política externa intervencionista na região (p.ex.: em Brunei), Sukarno passa a ser visto com certa cautela pelos governos ocidentais.

Nesse contexto de fragilidades, em primeiro de outubro de 1965, um grupo de oficiais de patente mediana sequestra e mata seis generais do exército numa espécie de tentativa de golpe de estado. Ainda no mesmo dia, as tropas do exército, comandadas pelo general Suharto, sufocam a tentativa de golpe com certa facilidade, haja vista que, como se revelou adiante, os supostos golpistas tinham uma articulação bastante frágil. Até hoje as explicações sobre os motivos e as origens desse golpe são nebulosas, mas que, naquele momento, ele foi imediatamente ligado ao Partido Comunista Indonésio[5]. Logo após o incidente, inicia-se na Indonésia uma perseguição aos comunistas, estendida a supostos simpatizantes, que, além da extinção do PKI, causaria a morte de aproximadamente um milhão de pessoas sem que até hoje por estas ninguém tenha sido responsabilizado. Além disso, é nesse contexto que Suharto dará início a seu programa de governo denominado New Order, a nova ordem para o povo indonésio: tratava-se de um governo baseado no Pancasila (os cinco princípios que deveriam reger a nação: 1- Um Deus; 2- Uma humanidade justa e civilizada; 3- A Indonésia unificada; 4- Democracia guiada pelos sábios representantes do povo e 5- Justiça social) e na inclusão da Indonésia no contexto global do capitalismo (lembro que, desde 1962, a Indonésia fazia parte da OPEP; entre 1968 e 1981, sua economia teve uma média de crescimento de 7%, sobretudo por conta do petróleo e da abertura, com incentivos fiscais, às empresas transnacionais – aliás, a partir dessas circunstâncias, a Indonésia passa a ser enquadrada no rol dos novos tigres asiáticos).

Em 2012, o diretor de cinema Joshua Oppenheimer produz aquele que seria um aclamado documentário de denúncia do genocídio indonésio de 65-66 contra os comunistas: The Act of Killing. A ideia do filme surge, conforme relata o próprio diretor, durante a produção, feita por ele e por Christine Cynn, de The Globalization tapes, documentário de 2003 dirigido em colaboração entre vários diretores indonésios (todos trabalhadores ligados aos movimentos de trabalhadores rurais) que retrata os impactos da globalização no contexto dos países pobres bem como o modo como as instituições financeiras detêm um importante papel na forja do atual contexto global. Durante a produção, Oppenheimer acaba se inteirando da história dos massacres de 1965-1966, sobretudo por parte dos trabalhadores rurais que a ele relatavam que, para além da versão oficial do governo (que diz que os assassinatos dos comunistas e supostos comunistas foram obra do povo, que de modo espontâneo reagiu à ameaça comunista), os assassinatos foram, sim, arquitetados pelos militares como modo de destruir as organizações anticoloniais de trabalhadores existentes até 1965. Muitos desses trabalhadores rurais, participantes da produção de The Globalization tapes, eram eles mesmos sobreviventes e, além disso, sabiam apontar quem eram os perpetradores que ainda moravam nos vilarejos de suas regiões.

Foi seguindo essa pista que Oppenheimer passou à produção de The Act of Killing. O diretor, ao entrevistar os sobreviventes em 2004, na região de Medan, acabou sendo levado aos perpetradores, dentre eles Amir Hasan, o líder do esquadrão da morte atuante na região das plantações onde foram feitas as filmagens de Globalization tapes. Hasan, por sua vez, apresenta outros líderes da região com os quais Oppenheimer também passa a se encontrar para entrevistas e, assim, entendendo melhor a maneira como os esquadrões eram organizados, o diretor passa, paralelamente, a contatar e a entrevistar outros líderes dos assassinatos de 1965 e 1966. Oppenheimer relata que durante as gravações dessas entrevistas passou a se sentir incomodado com uma alegria que transparecia no relato dos perpetradores. Assim, ele acabou se colocando a pergunta que daria origem ao projeto de The Act of Killing (e, como desdobramento deste, ao projeto de The look of silence, filme de 2014 que, por sua vez, expõe não apenas as entrevistas com os carrascos, mas também exibe como os sobreviventes – em específico, um irmão de uma vítima – se sentem em relação ao massacre): "como essa sociedade se desenvolveu até o ponto em que seus líderes poderiam – e desejariam – falar de seus próprios crimes contra a humanidade com um gesto vitorioso que ao mesmo tempo era celebrativo e também expunha-se como uma ameaça?"[6]

A partir dessa pergunta, o diretor modela sua filmagem: traz para o centro do filme alguns perpetradores, dentre eles Anwar Congo, um dos principais líderes do esquadrão de extermínio Pelotão do sapo, atuante no norte de Sumatra. O filme mostra como esses sujeitos, que se auto-intitulavam gangsters, em referência aos filmes norte-americanos (filmes estes que eram rejeitados pelos comunistas; aliás, no filme, os próprios gangsters afirmam que já odiavam os comunistas por isso), e que foram recrutados pelo exército para matar os “esquerdistas", atuavam. Oppenheimer filma de modo a fazer com que o espectador se defronte com a maneira como o perpetrador gostaria de ser visto. Aos perpetradores, ele propõe que encenem e, enquanto são filmados, expliquem como praticavam os assassinatos. Após essas encenações, o diretor mostrava aos atores-assassinos as filmagens, e assim o fazia numa tentativa de despertar algum tipo de reflexão moral. Entretanto, Oppenheimer se surpreende com resultado (surpresa esta que é também a de quem assiste ao filme). Diz ele:

Para entender como eles se sentiram sobre os assassinatos e sua maneira impenitente de representá-los no filme, eu lhes exibia as imagens não editadas dessas primeiras reconstituições e filmava suas respostas. Em primeiro lugar, pensei que eles se sentiriam mal quando vissem as encenações dos assassinatos, e que talvez pudessem chegar a um lugar moral e emocionalmente mais complexo.
Fiquei assustado com o que realmente aconteceu. Ao menos de modo superficial, Anwar estava sobretudo ansioso para parecer jovem e elegante. Em vez de qualquer reflexão moral explícita, a exibição levou tanto ele quanto Herman [outro perpetrador] espontaneamente a sugerir uma dramatização melhor e mais elaborada.[7]



A partir de então, o diretor passa a explorar essa imaginação cinematográfica dos perpetradores, dando a eles uma liberdade para reencenar os assassinatos e também alguns de seus sonhos, que, por vezes, revelavam certa fixação traumática nos perpetradores (lembro das diversas vezes em que, em The look of silence, um dos perpetradores relata como era apavorado pelos mortos em seus sonhos; ou mesmo Anwar falando sobre seus diversos pesadelos; é importante ressaltar que um dos sonhos filmados por Oppenheimer e que faz parte de The Act of killing, mostra Anwar se reconciliando com os mortos debaixo de uma cachoeira e com uma tentativa de encontro com certa paz de espírito). A liberdade para encenação que o diretor propunha de modo inteligente, incluía um set de filmagens no qual os perpetradores poderiam utilizar-se de recursos de maquiagem, som, efeitos e, até mesmo, poderiam dirigir a cena questionando um ao outro se aquilo efetivamente conseguiria representar o que viveram. Nesse processo, Oppenheimer se dá conta de que, para além de uma tentativa de encenação cinematográfica para o filme que estava sendo feito (e do qual tinham ciência os perpetradores), o que o gesto dos gangsters expunha é que já à época dos assassinatos os filmes sobre gangster eram a inspiração para como eles iriam matar os “comunistas”. Então, nessas encenações dos assassinatos outrora praticados por eles mesmos, mais do que encenar suas lembranças, agora, diante das câmeras de um diretor de cinema (isto é, sabendo que iriam ingressar na tela, a mesma que em 1965-66 era a inspiração para como matar), os perpetradores estavam elaborando imageticamente suas memórias para exibi-las de modo que pudessem se tornar, no filme, uma espécie de exposição de si tal como gostariam de ser lembrados (uma esperança de lembrança futura que, portanto, seria construída a partir do filme do qual, agora, eles eram os atores e personagens principais).

Oppenheimer relata que já durante a produção de The Globalization tapes tinha a impressão de que os modos como os perpetradores falavam sobre as mortes trazia em si algo de performático. Assim, quando da realização de The Act of killing, a opção por dar aos gangsters a liberdade imaginativa e a sensação de que controlavam o material que estavam produzindo era uma tentativa do diretor de captar essa dimensão performática. Oppenheimer diz ainda que percebia esses gestos carregavam a ideia de certa garantia impunidade, e, com isso, os gangsters almejavam dar a suas imagens uma força ameaçadora que expõe o fortalecimento e continuidade do regime político que tem início com esses massacres e perdura em certa medida até hoje.[8]

Nesse sentido, as performances livres que os gangsters passaram a realizar começaram a produzir efeitos rememorativos: eles agora atuavam da mesma forma quando estavam atuando, inspirados nos filmes que viam, durante os assassinatos. Ainda que a falta de uma reflexão moral seja sentida de imediato, é preciso anotar que há também aí certa ambiguidade; isto é, a potência dessa revitalização das próprias imagens acabou, como vemos no filme, trazendo para o protagonista Anwar um mal-estar incomensurável, sobretudo quando ele encena uma vítima e não o carrasco que ele fora. Nesse momento, ele pergunta: “será que as vítimas sentiam-se tão mal, assim como eu, Joshua?” E, em uma de suas poucas intromissões, o diretor diz: “eles se sentiam muito pior, Anwar. Eles estavam efetivamente sendo mortos." E em outra cena, a do massacre de Kampung Kolam (quando todos os moradores de uma vila foram mortos e, na sequência, a vila foi queimada), o mal-estar dos diversos participantes (filhos, companheiras e membros da juventude Pancasila, um grupo paramilitar ainda hoje ativo na Indonésia) após as filmagens revela, segundo o diretor, "a terrificante história sobre a qual todos na Indonésia estão de algum modo conscientes e sobre a qual os perpetradores construíram suas rarefeitas bolhas de shoppings com ar condicionado, condomínios fechados e ‘muito, muito exclusivos’ objetos de cristal”.[9]

Essa história que aparentemente permanece numa espécie de penumbra da consciência, e que a esta retorna nas imagens capturadas dessas performances (imagens essas que passam a fazer parte de um importante arquivo – Genocide and Genre –, o qual serviu de base a uma pesquisa de quatro anos do United Kingdom Arts and Humanities Research Council), são, como poderíamos lembrar com Georges Didi-Huberman, as lacunas dos eventos.[10] Ou seja, elas não são um arquivo, que por mais proliferante que possa ser nos dá apenas os vestígios dos fatos – e, nesse caso, os vestígios são insistentemente apagados pela narrativa oficial e tampouco conformam apenas uma representação dos massacres –, isto é, as imagens dos perpetradores repetindo mimeticamente como farsa seus atos de outrora. Em outras palavras, as imagens não se confundem com os assassinatos, mas, nessa performance dos perpetradores vivos, elas surgem como uma forma de vestígio dos atos que pretendiam não deixar vestígios. Ou seja, as imagens de Oppenheimer forjam, portanto, os vestígios: os perpetradores, na ânsia por firmar suas posições de dominadores e vencedores na história, entregam para os vencidos as memórias que eles não poderiam ter, a visão da morte desde o ponto de vista daqueles que causaram a morte. Assim, The Act of killing produz, na figura dos perpetradores, uma espécie de testemunhas invertidas.

Trazendo os termos de Furio Jesi – quando da análise das relações entre classe explorada e classe exploradora – para a leitura de The Act of killing, é possível dizer que o filme carrega uma eventual cognoscibilidade da história que se arma a partir não de uma desmitificação, mas de desmitologização[11] das narrativas que compõem a história oficial da Indonésia, lembrando que essas narrativas são as garantidoras da estrutura política que, celebrando a derrota e o massacre dos comunistas, continua a repetir-se ainda no presente nas estruturas de dominação. De fato, o filme não é uma tentativa, que seria vã, de suprimir o mito dos perpetradores, qual seja: a história oficial dos vencedores, ainda no poder, na Indonésia, segundo a qual os massacres foram espontaneamente concebidos pelo povo. Pelo contrário, com suas imagens críticas, o filme exibe o uso político do mito da espontaneidade do massacre pelo povo e, nessa exibição, produz a possibilidade de interrupção da repetição dessa história – desse mito tecnicizado ou desses materiais mitológicos, para usar os termos de Jesi – de subjugação, violência e destruição. Ainda nos termos do teórico italiano, podemos dizer que The Act of killing (e também The look of silence), funciona como um modo de exposição da máquina mitológica que produz a mitologia da espontaneidade do massacre: as narrativas oficiais são desditas – ou mostradas em sua falsidade – por meio da performance dos perpetradores, esta que pretende dar a imagem verdadeira dos verdadeiros agentes históricos. Com isso, o filme faz com que as imagens dos perpetradores, tal como eles próprios queriam que elas fossem produzidas, funcionem como um modo denunciar a falsidade da história oficial da Indonésia, isto é, seu caráter meramente narrativo, mitológico, no sentido de Jesi, operado como instrumento de legitimação política. Assim, podemos dizer que The Act of killing carrega a potência de uma dupla negação: nega de plano, com a própria imagem dos perpetradores, a história oficial das narrativas do governo e, ao mesmo tempo, ao dar aos atores-assassinos a liberdade imaginativa por meio da qual eles pretendiam exibir-se como heróis, nega aos perpetradores o direito, que na prática política daquele país ainda lhes é consentido (inclusive pelas mais altas instâncias políticas do país: vemos, no filme, o vice-presidente da Indonésia falando sobre a função necessária dos gangsters na política do país), de se colocarem nessa condição de heróis. O filme funciona, portanto, como um mecanismo que pode emperrar a máquina mitológica do governo indonésio.

Em The look of silence, por sua vez, podemos dizer que Oppenheimer arma um diagrama de sinal trocado. O filme é montado a partir da exibição das imagens dos perpetradores feitas pelo diretor entre 2004 e 2005 a Adi, irmão de uma das vítimas de 1965-66, que trabalha como uma espécie de oculista em um vilarejo de Sumatra. As imagens dos carrascos relatando como dilaceravam os corpos dos “comunistas”, como os faziam sofrer e, por fim, como os matavam, são exibidas a Adi que sempre se mostra reflexivo diante dessas imagens da barbárie. Além disso, o filme também traz os encontros de Adi com os perpetradores durante seu trabalho de oculista e, em tais encontros, por vezes o irmão da vítima questiona, dentre outras coisas, sobre o porquê de tais mortes, sobre como o exército estava por trás do recrutamento dos perpetradores. Nos embates, há sempre uma tensão entre carrasco e vítima que é exposta em termos de um eventual conflito ainda possível, pois os carrascos, considerando-se como vencedores e garantidores da possibilidade de algo como a Indonésia (lembro que sempre os ideais do Pancasila se fazem presentes), ainda se arrogam o direito da ameaça. Em uma das conversas, Adi pergunta: "Se eu tivesse vindo falar com você durante a ditadura militar, o que você teria feito?" Ao que o carrasco responde: "Não dá para imaginar o que teria acontecido. Sob a ditadura? Quanto tudo estava tenso? Não dá para imaginar o que teria acontecido.” Os filmes de Oppenheimer, no entanto, mostram que essa impossibilidade de imaginação faz parte do mecanismo da máquina mitológica oficial indonésia, que opera sublimando, por meio das narrativas, o massacre como uma espécie de única possibilidade de fundação de uma nova ordem (justamente o termo com o qual Suharto designa seu governo) para a Indonésia. Ou seja, os filmes exibem a impossibilidade narrada de imaginação com a própria imaginação dos perpetradores (seja na performaticidade de The act of killing seja na minúcia de detalhes – e há também o esboço do performatismo já nessas cenas – nas explicações sobre a morte do irmão de Adi em The Look of silence), em outras palavras, mais uma vez, os filmes, ao mostrar a máquina mitológica em funcionamento, apontam para as condições de possibilidade de desativação dessa máquina.

Um dos resultados dessa desativação é a demanda por justiça que desde as primeiras exibições dos filmes aparece com mais força no contexto internacional (tal como as petições junto à Anistia Internacional que estão disponíveis nos sites, mantidos por Oppenheimer, de divulgação dos filmes). Além disso, dessa necessária implicação jurídica dos responsáveis por massacres de seres humanos (digamos, uma implicação dentro do âmbito da petição por direitos na esfera das relações geopolíticas internacionais), os filmes nos possibilitam perceber, de modo paradoxal à demanda por justiça (posto que como crítica radical), que a violência perpassa, como um rizoma, esse inconsciente da história contemporânea. Isto é, em certa medida, os filmes nos dão condições de perceber como a lógica do estado é produtora de morte. Mas, em que sentido eles nos possibilitam isso?

Retomando a pequena digressão sobre a história indonésia, podemos perceber que diante da ameaça comunista de 1965-66, levantada e agitada como pandemônio ao ser conectada ao fracassado golpe de estado de primeiro de outubro de 1966, as Nações Unidas, naquele contexto, pouco se moveram, assim como pouco se moveram quando da ocupação, em 1975, e pelo mesmo governo Indonésio, do Timor Leste. Nesses contextos, a salvaguarda da paz estava no apoio daqueles que, então, tomavam o partido da nova ordem que pelo planeta se espalhava: a democracia nos moldes do capitalismo de mercado (ou, para dizer com Guy Debord, a sociedade espetacularizada). Naquelas ocasiões, a Indonésia de Suharto – a Indonésia que exibia filmes de gangsters – estava do lado da defesa das condições necessárias à implementação da almejada liberdade e, talvez por isso, a máquina mitológica indonésia tenha sido aceita no plano internacional com certa facilidade (e é preciso lembrar que esse valor, liberdade – free world – é aquele que ainda é apregoado como única possibilidade para um mundo melhor; e, em The act of killing, os perpetradores diziam, numa etimologia delirante, que gangster quer dizer justamente free man).

Quando da crise dos Tigres Asiáticos, em 1997-98, quando os mercados estavam em franco processo de desregulamentação, quando Suharto não é mais visto como um parceiro capaz de implementar as mudanças necessárias para que os valores da democracia – que, como lembra Jean-Luc Nancy, é uma palavra vazia que, em grande medida, se confunde com capitalismo – sejam implementados, a máquina mitológica do governo indonésio torna-se vulnerável (talvez pelos próprios interesses que são produzidos no âmbito da grande máquina mitológica da Democracia, do Capital, global). Nesse sentido, as intervenções no Timor Leste do final do século XX, ainda que importantes para o fim da violência do governo indonésio naquele país, também carregam, de modo ambivalente, elementos dessa mesma rizomática da violência. Melhor dizendo, nessa constituição da autodeterminação dos povos (um direito humano por excelência), ainda vislumbramos uma violência que sempre está do lado dos dominadores, ao lado da soberania (uma violência que põe o direito, para dizer com Walter Benjamin).

Na missão da ONU no Timor Leste, como disse, o Brasil esteve presente na pessoa de Sergio Vieira de Mello (como observador do Secretário Geral Kofi Annan) e do general de brigada Walter Braga Netto. Este último, cujo nome poderia soar como sendo o de um completo desconhecido até pouco tempo, aparece nos últimos três anos e sobremaneira nos mais recentes noticiários brasileiros: trata-se do general responsável pelas operações de segurança durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro e, em 2018, designado por Michel Temer para chefiar a intervenção federal no mesmo estado. Além disso, Braga Netto acaba de ser nomeado Ministro Chefe da Casa Civil do governo de Jair Bolsonaro.

Creio que não seja preciso me alongar nos detalhes das operações para a realização dos jogos olímpicos ou sobre o que aconteceu no Rio de Janeiro durante a intervenção militar do governo Temer (neste caso, porém, é preciso ressaltar que a letalidade policial atingiu o maior nível na história do RJ). Além disso, também não pretendo examinar o contexto da exoneração do agora ex-ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni, e os prognósticos de como será a atuação de Braga Netto. Lembro apenas que a máquina mitológica da política ocidental sempre se forjou (e isso já desde Hobbes) com base numa necessária salvaguarda da segurança dos cidadãos –a tão sonhada paz concordada no interior e entre os estados. Que esse modelo esteja se mostrando o que ele verdadeiramente é, um capitalismo de crise, uma stasis, uma guerra civil que se espraia pelo mundo, também parece ser evidente. O que gostaria de frisar é que essa máquina lubrifica suas engrenagens com sangue, que cada vez mais é demandado em volumes cada vez maiores (e é preciso salientar que, durante a intervenção militar no RJ, em 12/03/18, Braga Netto afirmou que a operação na Vila Kennedy[12], onde os moradores – obviamente todos pobres – passaram a ser fichados para chegarem a suas casas, funcionou como uma espécie de laboratório para a intervenção; ademais, durante a pandemia de Covid-19, Braga Netto tem sido chamado – sobretudo no noticiário econômico[13] – de bombeiro e gestor, alguém para diminuir o alarde, em meio às apostas de denegação do potencial mortífero da doença, obviamente, a alta aposta do atual governo na já secular dinâmica de violência da sociedade em que quem morre, sobretudo, são os que sempre vêm morrendo e cujas mortes já estão há muito naturalizadas – aos que engrossarão as estatísticas desses que sempre morrem, a máquina mitológica sacrificial se encarregará de legitimar). Em outras palavras, a deglutição de uma máquina por outra parece dar a tônica da constituição de nossas mitologias políticas – e talvez hoje estamos assistindo à mais devastadora das máquinas mitológicas em funcionamento: o neoliberalismo da era do capitalismo informacional, o qual nos convence, com suas sedutoras narrativas de segurança, empreendedorismo e liberdade, de que nada pode fazer sentido fora dele. Nesse sentido, e pode parecer até mesmo sórdido o que digo, uma vez que a máquina mitológica da narrativa histórica oficial da Indonésia já pode ser absorvida pela máquina mitológica do capitalismo global em sua inteireza, torna-se possível revolvê-la sem maiores danos à legitimação da nova ordem que hoje, mais do que nunca, se faz global (e, no caso brasileiro, nosso novo normal está na cotidiana quantidade de absurdos bradados pelos governantes e replicados, em rede, por sujeitos que, como baratas adoradoras de inseticida, são eles mesmos as vítimas daqueles absurdos).

Diante desse cenário em que parece não haver – e não há – nenhuma saída, nenhum fora possível, os filmes de Oppenheimer nos colocam a pergunta: como ainda resistir? No caso do diretor, diante da brutalidade do apagamento de vidas e de suas memórias chancelado por uma narrativa oficial, a exposição brutal do mecanismo da maneira como esse apagamento e chancela funcionaram e funcionam. O gesto é apelativo, mas ainda assim é um modo, ainda que pequeno, não de tentar uma melhora do mundo, mas, como diria Pasolini, de tentar, com todas as forças, impedir que ele piore.


[1] Sobre o relatório Brahimi cf. http://www.un.org/en/events/pastevents/brahimi_report.shtml

[2] Cf.: BRACEY, Djuan. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz da ONU: os casos do Timor Leste e do Haiti. In.: Contexto Internacional. v. 33, n. 2. Julho/dezembro de 2011. Rio de Janeiro: Puc-Rio. pp.: 316-331.

[3] Um dos comandos das Forças Especiais era chefiado por Probowo Subianto, filho do ex-ministro da economia de Suharto (Sumitro Djojohadikusumo: responsável pela formação da "Berkeley mafia", a formação de economistas nos EUA, estes que, durante os anos do New Order, seriam os responsáveis pela implementação de uma política econômica de abertura aos mercados internacionais), que, em 1985, fora treinado pelo Exército Norte-Americano em Fort Benning. Cf.: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/longterm/indonesia/stories/rights052398.htm Em 2014, Probowo se candidata a presidente da Indonésia, tendo perdido a eleição para o atual presidente Joko Widodo; ele também foi responsável pela operação do exército que causou a morte de 4 estudantes universitários em 1996, fato que levou à queda de Suharto.

[4] Tanto que em Oxford encontra-se arrolado no plano de estudos de "Genocídios no século XX” – http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780199743292/obo-9780199743292-0105.xml –, assim como na Yale University: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/longterm/indonesia/stories/rights052398.htm

[5] Benedict Anderson e Ruth T. McVey escrevem o que ficaria conhecido como Cornell Paper, no qual questionam as explicações para o golpe dadas pelas autoridades oficiais bem como pela CIA. Cf.: ANDERSON, Benedict; MCVEY, Ruth T. (with the assistence of Frederick T. Bunnell) A preliminary analysis of the October, 1, 1965, Coup In Indonesia. Ithaca, New York: Cornell University, 1971.

[6] OPPENHEIMER, Joshua. Backgroud of "The act of killing”, disponível em: http://theactofkilling.com/background/ (acesso: 10/03/2018)

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Curitiba: Medusa, 2018. Trad.: Helano Ribeiro. p. 28.

[11] JESI, Furio. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1. 2018. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko

[12] Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/so-acao-da-policia-nao-basta-contra-violencia-afirma-interventor-no-rj.shtml e https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/moradores-deixam-comunidades-apos-serem-fotografados-em-acao-do-exercito.shtml

[13] Cf.: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/06/discreto-braga-netto-atua-como-bombeiro-e-gestor.ghtml
 
*** Este texto é uma versão modificada do texto que foi apresentado no 1º Colóquio Imagens de traumas, em 2018 (fruto do projeto de mesmo nome entre a UFPR e a Universidade de Valência). A primeira versão, de 2018, deverá compor o livro "Artes & Violências" [org.] Rosane Kaminski, Vinícius Honesko e Luiz Carlos Sereza (São Paulo: Intermeios, 2020 - prelo). 
 
Imagem: Cena de The Act of Killing. 

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