segunda-feira, 4 de maio de 2020

Sobre a técnica e a arte - Giorgio Agamben



Creio que seria útil partir de um simples dado linguístico, qual seja, que a palavra latina ars é a tradução do termo grego techne. Uma primeira consequência disso é que o termo arte aí é subtraído da esfera estética à qual a modernidade quis reduzi-lo e restituído à sua original amplitude semântica. Uma segunda consequência, então, é que o humano pode ser definido como o animal ou o vivente artista, isto é, como o vivente que em sua forma de vida está constante e essencialmente ocupado com uma pluralidade de práticas técnicas.

Nesse sentido, ele não se diferencia dos outros viventes que, cada um à sua maneira, também parecem ocupados com técnicas e hábitos vitais. Mas o que podemos dizer é que os humanos levaram essa característica própria do vivente mais adiante, enquanto expulsaram as técnicas vitais para além de seu próprio corpo, confiando-as a uma tradição exossomática e histórica que nos outros viventes está presente apenas numa medida reduzida. Daí a produção crescente de dispositivos e instrumentos técnicos em sentido estrito e a criação de um verdadeiro patrimônio exossomático que se coloca ao lado das capacidades endossomáticas do organismo. É a partir disso que se dá a legitimidade das concepções da técnica como uma projeção externa das funções orgânicas do corpo humano. Os instrumentos técnicos seriam apenas o desenvolvimento, em forma de prótese, de capacidades funcionais do organismo que são projetadas fora do corpo.

Assim, compreende-se por que não é fácil definir a técnica: ela é de tal forma parte integrante da vida humana, das práxis vitais do vivente artista que é o homem, que pensar a técnica é tão problemático quanto pensar a vida. Disso decorre que também pensar a vida é impossível sem pensar a técnica: a antropogênese e a tecnogênese parecem coincidir, e definir uma sem a outra parece impossível.

A partir dessa perspectiva, o que procurei pensar como “vida nua”, isto é, como uma vida que é separada de sua forma, talvez se torne mais claro caso seja pensada como uma vida separada não apenas de sua forma, mas também de sua técnica, de uma técnica definida como "arte da vida”. Também a confusão entre arte e vida que está na base da arte denominada contemporânea se torna evidente nessa perspectiva: ela é apenas uma tentativa inadequada e equivocada de pensar a coincidência de técnica e vida. Da mesma forma, a relação entre uma prática artística e a forma de vida que Foucault buscou pensar em A hermenêutica do sujeito é restituída a esse contexto problemático. É preciso pensar vida e técnica (arte) juntas, em seu co-pertencimento, como uso de si e ethos – mas, justamente, isso não é fácil.

Aqui, gostaria de brevemente evocar uma concepção da técnica que capta um aspecto essencial disso, para além daquele de projeção externa das funções orgânicas do corpo humano. Já nos anos vinte do século XX, Paul Alsberg mostrou de forma oportuna que o que na realidade acontece na projeção externa das funções dos órgãos corpóreos é que esses órgãos são progressivamente desativados em favor dos instrumentos artificiais que os substituem. O que distingue o homem dos animais é o assim chamado Ausschaltungprinzip, o princípio de desativação. Enquanto o animal adapta as próprias funções corpóreas às condições naturais, o homem as desativa para confiá-las a instrumentos artificiais. A cada processo exossomático corresponde assim um regresso das funções endossomáticas.

Utilizando-me de um conceito forjado por Gunther Anders, prefiro falar, a propósito disso, de um "desnível prometeico", isto é, de uma separação crescente entre o homem e o mundo de seus produtos, o que torna, em última análise, o homem incapaz de estar à altura das próprias produções técnicas e, portanto, de dominá-las. Podemos dizer que hoje esse desnível chegou ao ponto de máxima tensão. O homem como indivíduo endossomático, também pelo progressivo atrofiamento de suas capacidades internas, parece totalmente incapaz de assumir o controle da esfera exossomática dos produtos por ele criados. Dito de outra forma, a cultura humana parece ter sido de todo separada e tornada autônoma em relação à natureza humana.

Tentemos compreender como essa fratura se produziu. Ivan Illich mostrou como já entre os séculos XII e XIII se assiste a um autonomizar-se do instrumento em face da mão do homem. O que de início era apenas um prolongamento de uma função corpórea – por exemplo, o martelo ou a escova em relação à mão – destaca-se do corpo e adquire uma existência autônoma. A essa progressiva liberação do instrumento de seus vínculos corpóreos corresponde, nos filósofos e nos teólogos, a elaboração do conceito de causa instrumental, que não por acaso tem na teoria dos sacramentos seu lugar tópico. A descoberta da causa instrumental é a primeira tentativa de dar uma figura conceitual à tecnologia.

O que define a causa instrumental é o autonomizar-se do instrumento da causa final que o ligava ao corpo daquele que o usava. O que acontece é que certo objeto cessa de ser um instrumento para um fim a ele imanente e se transforma em uma função em si autônoma. A instrumentalidade dá lugar à funcionalidade. Assim, a caneta, que era instrumento para a escrita, torna-se agora o suporte de uma função-escrevibilidade, que pode ser realizada das mais diversas maneiras. O martelo, instrumento que a mão usa para bater, transforma-se na função-batedora, que se autonomiza da mão e pode assumir as mais variadas formas mecânicas. Isso é evidente nos sacramentos: a água, que tem a função de lavar, não sabe nada do apagamento do pecado que ela opera no batismo. A função de lavar ou purificadora da água adquire um estatuto autônomo e pode ser dirigida aos fins mais disparatados.

Podemos, assim, dizer que o que vemos é a transformação do uso em função. Não se usa um instrumento, mas se coloca sua função em operação. De um ponto de vista linguístico, que é sempre iluminador, isso corresponde à passagem do significado do verbo uti (em grego: Chresthai), acerca do qual me ocupei em O uso dos corpos, ao do verbo fungor. Enquanto uti honore, ocupar um cargo, exprime a relação que se tem consigo enquanto se exercita um cargo, munere fungi significa, pelo contrário, o puro exercício de uma função, sem relação com o sujeito. Assim, functa corpora, os corpos defuntos, são os corpos que cumpriram a função de viver, isto é, a vida não como uso, mas como uma função. A esse autonomizar-se da função em relação ao uso corresponde a diferença entre o gesto da mão que escreve e o apertar de um botão que coloca em função um dispositivo técnico. Proponho o uso do termo dispositivo e não instrumento para sublinhar essa passagem do uso à função.

Daí uma importante consequência: enquanto o uso do instrumento, uma vez que coloca integralmente em jogo um indivíduo em sua corporeidade, implica um ethos e uma forma de vida, a execução da função de um dispositivo parece – ao menos em aparência – não ter nenhuma consequência ética para o sujeito que nela está implicado. Na teoria dos sacramentos, essa indiferença ética se exprime na eficácia do sacramento opere operato, isto é, pelo puro exercício do ato sacramental, independentemente das qualidades do sujeito que o administra.

Se voltarmos agora ao nosso problema do desnível prometeico, compreenderemos como essa transformação do uso gerador de ethos em função neutral torna ainda mais árdua a tarefa de sair desse desnível. Podemos dizer que na modernidade essa tarefa foi confiada à consciência, isto é, a algo que por certo não é fácil definir, mas a respeito da qual podemos dizer que, na perspectiva que nos interessa, deveria se não dominar tal tarefa ao menos reduzir ou conter o desnível. De fato, vemos que isso não acontece, porque o que chamamos consciência é apenas, na realidade, o resultado da progressiva desativação das capacidades endossomáticas do organismo humano. Quanto mais a desativação aumenta por efeito da técnica mais hipertrófica se torna a consciência, a qual se transforma em um órgão que pretende controlar e gerir o patrimônio exossomático da humanidade, mas que não o pode fazer, porque na realidade está totalmente no interior desse patrimônio. O que aconteceu, com efeito, é que a consciência parece ter esquecido sua tarefa de sair do desnível prometeico para se tornar, pelo contrário, parte integrante do sistema tecnológico. A consciência poderia, de fato, sair do desnível apenas se se situasse decididamente nele, ou seja, se encontrasse seu lugar entre o endossomático e o exossomático, entre a natureza e a cultura.

Por isso, creio que não é a consciência que pode ser a resposta humana e política ao desnível prometeico, mas apenas uma filosofia restituída a seu lugar originário entre a natureza e a cultura. A filosofia se dá na não coincidência entre natureza e cultura, no hiato entre habilidades endossomáticas e capacidades exossomáticas e abre entre estas um terceiro espaço, que necessariamente terá a forma de um ethos e de uma forma-de-vida.

Com esse objetivo, ela não poderá deixar de afrontar o princípio de desativação das funções corporais que vimos definir o desenvolvimento tecnológico da espécie humana. Isto é, a filosofia deverá, por assim dizer, a cada vez "desativar a desativação", tornar inoperosa a inoperosidade das funções corpóreas não para substitui-las por outro dispositivo tecnológico, mas para delas fazer uso, ou seja, para abri-las a um uso político e poético.

O homem se mostra, nessa perspectiva, como o vivente que faz uso de suas ineptidões e o conceito de inoperosidade, que várias vezes buscamos definir, recebe um esclarecimento ulterior. Fazer uso da própria ineptidão significará, assim, regredir arqueologicamente ao momento da antropo-tecnogênese, mantendo a cada vez a técnica em uma relação política e poética com o corpo que a produz.

Será o caso de restituir à impotência sua potência, de transformar o “não poder usar” em um "poder não usar". As formas e as modalidades desse "poder não usar" e dessa relação com o corpo definirão, segundo os lugares e as ocasiões, a matéria da política e da arte que vem.
 
 
Original disponível em: 
 
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
 
Imagem: Gruta de Chauvet. 





2 comentários:

Erica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
blogpraloizio disse...

Estou tentando me adequar ao que li e aprendi neste texto. No meu caso, é a forma que utilizo na intenção de entendê-lo, ou quem sabe ressignificá-lo. Se não se importa, gostaria de perguntar se existe relação em algum momento de sua perspectiva histórica desenvolvida no texto com o conceito de arte aristotélica enquanto imitação (mimesis)?