segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ocupar o terreno




Tiphaine Samoyault

No último agosto, uma circular do Ministério do Interior indicava a expulsão brutal de numerosos Roms (ciganos) do território francês. Em 11 de setembro de 2010 uma jornada de mobilização, “Os Roms e quem mais?”, reuniu em Montreuil, na Casa da Árvore (Palavra errante), um grande número de personalidades sob a iniciativa de Cécile Canut, Cécile Kovacshazy e Thomas Lacoste. Trata-se de esclarecer e responder a esse novo intolerável. Publicamos aqui a intervenção de Tiphaine Samoyault. Outras contribuições estão disponíveis no site Médiapart.[1]

O que pode a palavra numa situação de urgência extrema, contra uma política que exige que as de resistência sejam efetivas se quiserem ser eficazes? Em que medida pode ela, sem tomar o lugar da ação concreta, ocupar o terreno? A carta de Flaubert a Sand de 12 de junho de 1867, que muito circulou nos últimos tempos, dá uma indicação. Diante de um acampamento de “Boêmios”, ele escreve, “fui muito mal visto pela multidão por ter-lhes dado alguma terra”. Ocupar o terreno, aqui, é dar um solo. A língua é ao mesmo tempo o lugar e o deslocamento para fora do lugar. De moedas de pouco valor ao território que lhes damos ou à terra de acolhida, há apenas a passagem do plural a um singular. Ter necessidade de alguns tostões quer dizer também ausência de solo.

Flaubert continua a tentar compreender a natureza do ódio que se exerce contra os seres sem terra. “Esse ódio tem algo de muito profundo e complexo. Nós o encontramos em todos os povos de ordem. É o ódio que temos contra o beduíno, o herético, o filósofo, o solitário, o poeta. E há medo nesse ódio. Para mim, que sou sempre a favor das minorias, tal ódio me exaspera. No dia em que eu não mais me indignar cairei por terra subitamente, como uma boneca de quem retiramos sua haste de sustentação.”[2] O boêmio, o beduíno, o herege, o filósofo, o solitário, o poeta: a lista não nos deixa compreender hoje com a mesma evidência a equivalência entre as categorias em 1867. Antes de tudo, ela não liga tão claramente a Boêmia, ao mesmo tempo fantástica e originaria (igualmente objeto de sonho para o destinatário da carta, no Consuelo), e a boemia artística e literária. O poeta, o escritor, o intelectual cujo pertencimento ao espetáculo está consumado, senão assumido, se eles às vezes ainda permanecem como seres desclassificados,[3] não são mais figuras banidas. Mas dois imperativos do engajamento são evidenciados por Flaubert nesse texto: a tomada de partido pela minoria e a possibilidade de indignar-se. Esses dois imperativos, mesmo se às vezes são zombados ou questionados como sendo posturas vãs, permanecem na base da moral pratica do engajamento.

Um terceiro imperativo, implícito, consiste em se manter no lugar mais preciso possível da língua. Ocupar o terreno dando um sal da terra da língua. A crítica dos discursos de poder faz-se assim mais aguda e a exclusão aparece ainda mais violenta. O termo indesejável, por exemplo, merece ser desconstruído para nos deixar compreender sua potência de negação. O adjetivo, como o nome que lhe é derivado (e que aparece somente no século XX), traz uma dupla privação. Em um desejo, de fato, o prefixo de- assinala a ausência. Desejar é etimologicamente deixar de contemplar uma estrela. Constatar a ausência de algo ou de alguém. É desejável aquilo cuja ausência podemos constatar. O indesejável, o qual agrega o segundo prefixo da privação (in-) ao primeiro é, portanto, aquilo cuja ausência não se pode ou não se quer constatar. A recusa não é, portanto, da presença, mas da ausência. Eis o que a formação da palavra nos diz: não recusamos a presença do indesejável, recusamos sua ausência. O indesejável deve esperar esse ponto radical da ausência no qual a falta não é e não se faz mais sentir. O indesejável é aquilo que queremos que nunca nos falte, que não seja nosso arrependimento e nosso ódio. Ele se torna, a partir de então, a figura absoluta da negação, essa aposta na falta que não afeta somente a ordem externa, mas a esfera mais interior, onde o íntimo toca evidentemente o político. O ódio que devotamos ao inimigo, o banimento que sofre o bode expiatório, mantém o inimigo e o bode expiatório no todo político, inscrevem-nos no espaço da cidade, mesmo se essa inscrição toma a forma da guerra, do exílio ou do refugo. A exclusão implica o fato de que houve a inclusão ou de que ela foi possível. A negação que atinge o indesejável, fechando a porta à possibilidade e até à lembrança da inclusão, remete o ser ao nada. Não tendo mais nenhum lugar, não há mais nome.

Do exame lexicográfico desprende-se logicamente a constatação histórica. Assim o substantivo “indesejável” aparece no século XX. A expressão “estrangeiros indesejáveis” expande-se em 1937, provavelmente com os refugiados espanhóis que se fixaram nos campos do Sudoeste: o livro de Anne Grynberg sobre os campos franceses[4] é importante para tais análises, já que implica um retorno para essa história, o que parece ser o fundamento intelectual de todo engajamento hoje. A primeira parte do livro evoca a gênese dos lugares de internamento (notadamente Rieucros, primeiro campo de concentração francês) e mostra como as coisas obedecem a uma lógica lenta mas que não para. É preciso colocar em relação o que se passa nesse momento com a amplitude do racismo banalizado nos anos 1930, do qual nem sempre temos ideia, racismo constatável notadamente nos escritores, por exemplo em Giraudoux, ainda que ele não seja o único (sobre esse aspecto remeto ao artigo de Pierre Vidal-Naquet no começo de suas Reflexões sobre o genocídio). Isso implica também, além das críticas que têm sido feitas, voltar à realidade histórica do anti-fascismo. Podemos criticar com justiça sua função legitimadora e as formas de oposição pouco esperadas a que ele induz[5] sem, no entanto, envia-las a um mito. Depois de ter fornecido sua quota de lendas, de filmes populares, de narrações heróicas, a resistência como que se encontrou simbolicamente desvalorizada, notadamente nas suas formas armadas. Fala-se muito mais de resistência passiva, reconhece-se que o recuo para a vida privada, isto é, o acomodamento, são comportamentos adaptados aos anos sombrios, ao tumulto que vem quando não se erige o carrasco um duplo de si e a compreensão da humanidade deste se apresenta, apesar de tudo, como o ápice da atitude moral.

Então, em relação à deriva política atual, qual engajamento? A autoridade dada à xenofobia pelo discurso do Estado (o que não é propriamente um racismo de Estado, mas, e isso não é nada, uma base de legitimação do racismo), a propaganda, o desenvolvimento de centros ou de campos de retenção esquadrinham o território degradando o pacto civil, o que parece colocar a resistência num impasse.[6] Não podemos nos contentar em opor a isso um contra-discurso que utilizaria os mesmo canais midiáticos, que se fundaria também sobre símbolos usados ou soberanias mitigadas. As estratégias da inversão desse impasse para frustrar o reflexo da rejeição do outro iniciada pela política atual deve permitir a declinação de diversas formas da presença, deve ser entendida como engajamento contra a ausência implicada pelo discurso explicitamente negacionista, visando o estrangeiro indesejável e a recusa do solo. Além da indignação e da tomada de partido pela minoria, os imperativos do engajamento, para aqueles e aquelas que trabalham não somente com a língua mas nela, implicam a permanência num estado de vigília ativa. A democracia tem necessidade de vigilantes, de seres que passam o tempo levantados durante a noite, que caçam monstros nascidos do sono da razão e que aprenderam a reconhecer que na noite nem todos os gatos são pardos. É preciso rastrear as más evidências que conduzem aos racismos, mostrar precisamente como se exercem as manipulações sobre a linguagem. Uma das derivas mais perigosas da democracia, nas formas que ela toma no Ocidente há mais de meio século, é o relativismo, a ideia de que todos os discursos têm direito civil em nome da liberdade de expressão, isto é, de que eles têm valor. Ora, a expressão sem razão não é livre. E é, ao contrário, “em nome dos princípios democráticos, escreve Maurice Olender, [que] estamos no direito, nos domínios políticos, culturais ou outro, de não dizer sim a todo diálogo, a todo encontro, pois é preciso evitar que a confrontação deixe crer numa equivalência entre escolhas dentre as quais algumas destroem os ideais democráticos[7]”. Caso contrário, permanecemos no pretendido equilíbrio instaurado pelas mídias contemporâneas, o qual fez com que Jean-Luc Godard dissesse justamente que “a objetividade, para a televisão, são os cinco minutos para os judeus e os cinco minutos para Hitler.” As falsas seguranças, as harmonias duvidosas, são signos de uma sociedade fraca; ora, o racismo se aloja precisamente nas fragilidades de uma sociedade, a qual não reconhece mais sua identidade política, social, religiosa ou econômica e que toma frequentemente a forma de uma reflexão ou de uma enquête sobre a origem, reconhecida como mito por todos os saberes seriamente colocados à prova. Por exemplo, a despeito da utilização talvez desastrosa, e para fins abertamente racistas, que foi feita do pensamento dumeziliano do Indo-europeu, sabemos que Dumézil prefere as variantes, as diferenças primordiais ao único. Não somente, como ele especifica numa entrevista publicada no Nouvel Observateur em 1983, ele recusa toda superposição da língua sobre a “raça” e mesmo sobre uma civilização uniforme, mas em tudo ele escolhe o múltiplo, aquilo que é declinado pela história. Desvencilhando-se dessa questão da origem, historicamente sem interesse e politicamente perigosa, e destas, a ela relacionadas, da fonte da cultura e do paraíso perdido, damos um grande passo na percepção de si e do outro como singularidades na diferença mais do que como integridades a serem protegidas. Sobretudo, podemos ter a convicção profunda de que a língua e o pensamento da língua e das linguagens são os lugares em que se põe em questão a compreensão que os homens têm de si mesmos e de seus semelhantes, convicção particularmente forte na virada de um século em que a língua foi o paradigma filosófico maior, enquanto este que começa terá a tradução como questão política.

Manter-se no lugar da língua implica também traduzir. O vetor de saída do território contido na definição mesma do território é, para a língua, a tradução. Porque o plural que está no coração da tradução, que todo o mundo pode cumprir (plural de línguas, dos textos, das memórias, das transmissões), não é somente essa contribuição benéfica de um pluralismo extático que veria no ato de traduzir o exercício de uma multiplicidade honrada, livre, defensora da liberdade de troca e respeitada. O plural que está no coração do traduzir indica que as coisas jamais têm apenas uma só forma, que o um pode desaparecer, que o original pode não mais ser, que o universal não existe e, no fim das contas, que o irredutível assim não o é. Mas esse plural é também inquietante: ele lembra que o traduzir, na sua proximidade com o “não traduzir”, implica a fronteira e tudo o que vem junto: os muros, a violência a colonização, a apropriação, a deformação, a negação do outro, a tomada da autoridade. O traduzir existe nessa tensão entre um mais e um menos a qual é também uma força, porque ele ainda chama à vigilância constante, não a uma crença, mas a um trabalho.

Mas o modo mais profundo, talvez também o mais imediato, de frustrar a ausência pela presença é testemunhar. No coração do testemunho há esta aporia da distância entre um vivido ou um visto e um dito, a qual Primo Levi (e, em seguida, Giorgio Agamben) bem mostrou a radicalidade que ela tinha tomado nos campos de extermínio. Mas há um caráter produtivo da confrontação da palavra com sua falta ou com sua impossibilidade. Encaminhado-se para o sem-língua[8] ou à falta de língua, lembramos ou impomos o fato de que há sempre um resto na ausência, um ódio na negação. E que o indesejável, aquele que queremos suprimir até a ausência, será sempre, apesar de si, o sujeito de um desejo.

Texto originalmente publicado na revista Vacarme n° 53, do outono de 2010: http://www.vacarme.org/article1959.html#nb1

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

Imagem: Ferdinando Scianna. Roma, Campo di zingari. 1999.

[1] http://blogs.mediapart.fr/edition/roms-et-qui-dautre

[2] Gustave Flaubert, carta a George Sand, 12 de junho de 1867. In.: Correspondance, Gallimard, Pléiade , tome 5, pp. 653-654.

[3] Rolant Barthes escreve : « É porque o escrito é um Desclassificado que el coloca, com energia, talvez com histeria, o problema do Engajamento: “o mundo “saiu” de mim, eu quero a todo custo nele reingressar” = é o engajamento.», La Préparation du roman, Seuil/Imec, 2003, p. 365.

[4] Anne Grynberg, Les Camps de la honte. Les internés juifs des camps français (1939-1944), La Découverte, 1991. Ela mostra como, em 1940, a França era uma verdadeira terra de campos. A zona sul não tinha menos que noventa e três lugares de internamento onde foram deitdos em condições assustadoras dezenas de milhares de estrangeiros, judeus em sua maioria.

[5] Ver o historiador da Alemanha Jürgen Danyel que diz que criticamos justamente a ritualização do anti-fascismo, os clichês do inimigo que aí eram associados e as tendências de quitação, “sua concepção seletiva da história assim como a paralisia de uma oposição intelectual que ela induziu”. Die geteilte Vergangenheit. Zum Umgang mit Nationalsozialismus und Widerstand in beiden deutschen Staaten, Berlin, Akademie Verlag, 1995, p. 12. Ver também o dossiê O Anti-fascimo revisitado da revista do Centro de estudos e de documentação para a memória de Auschwitz, Kimé, n° 104, juillet-septembre 2009.

[6] Sobre essa matéria ver o artigo de Pierre Cornu, « Le discours de Grenoble, point de non-retour du sarkozysme », Médiapart, 25 août 2010.

[7] Maurice Olender, La Chasse aux évidences. Sur quelques formes de racisme entre mythe et histoire, Galaade Éditions, 2008, p. 202.

[8] « A língua do testemunho é uma língua que não mais significa, mas que, pelo seu não-significar, avança no sem-língua até obter uma outra insignificância, aquela do testemunho integral, daquele que, por definição, não pode testemunhar » Giorgio Agamben, Ce qui reste d’Auschwitz, Rivages, 1999.


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