segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Amor é uma casa vazia


"Fais comme chez toi", responde ao marido a ex-professora de piano Anne, protagonista de "Amour", logo após terem eles retornado de um concerto de um seu ex-aluno. Ao chegarem em casa, Georges, seu marido, convida-a para mais uma taça de vinho e, diante da resposta negativa da companheira, insiste dizendo que tomaria sozinho. E então escutamos: "Fais comme chez toi". Na intimidade do espaço em comum, da morada em comum, ainda assim há uma distância, um vazio, que faz com que a mulher diga o "sinta-se em casa". Amor é a marca desse vazio e, como tal, é a única insígnia possível da partilha do prazer. A eudaimonia cumpre-se, portanto, nesse vazio, nesse espaço em que compartilhamos uma dimensão do sensível: a linguagem. No filme de Haneke tal espaço se arranja visualmente como apartamento. A casa como um lugar em que se marca a intimidade e a estraneidade, a partilha e o impossível. E é ela, a casa, que ganha, como contorno e intransponível no filme, a dimensão de hábito, de veste à relação amorosa. O amor, portanto, como vazio, é um habitus, é uma forma da morada humana e, desse modo, é uma das faces da ética. Ethos, na Grécia antiga (onde a partilha do mundo, do mundo-casa, era a medida da possibilidade da eudaimonia, da vida feliz), é a morada habitual, a instância (estância) na qual há a experiência da felicidade. E, assim, nessa prova dos nove, o confortável apartamento parisiense de Anne e Georges faz-se lugar do desconforto, do disagio, da experiência da intimidade e do estranhamento: os abajures são as aconchegantes luzes do lugar mais interno, intimus, em que a partilha parece quase se tornar simbiose; a água, na pia da cozinha, na chuva que atrai à morte, no recipiente para dar de beber a doentes, é o fora que inevitável e insistentemente força a entrada. Entretanto, há no amor um intransponível que faz com que o jogo eudaimônico carregue consigo não a ideia de soma-zero, tão corrente na nossa tradição das plenitudes, mas a ideia do resquício, que já é sempre o sinal da falta (resquícios que não são restos de uma totalidade perdida e obstinadamente buscada, mas o próprio impossível de constituir-se como Um). Não se contorna a falta, estamos dentro dela (estamos, de alguma maneira, na linguagem). Habitá-la é, de certo modo, ser ético. Habitá-la é, assim, amar. O amor é uma casa vazia...

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