sábado, 23 de fevereiro de 2013

Verbum caro factum




No tempo de uma breve nota, para a ocasião, analisamos esta proposição central para o cristianismo: verbum caro factum est (no grego do texto do Evangelho de João: logo sarx egeneto). É a fórmula da "encarnação" pela qual Deus se faz homem, e essa humanidade de Deus é, decerto, o traço decisivo do cristianismo e, por meio deste, um traço determinante para toda a cultura ocidental – até o núcleo do seu "humanismo", marcando-o de maneira indelével, mesmo que não o funde (por meio de uma inversão da "divinização" do homem, para ser muito sumário). 
O termo "encarnação" é, na maior parte do tempo, compreendido no sentido da entrada de alguma entidade não-corporal (espírito, deus, ideia) em um corpo e, de modo mais raro, como a penetração de uma parte do corpo por uma outra parte, ou por uma substância, de início estrangeira, como dizemos de uma "unha encarnada"[1]. É uma mudança de lugar, a ocupação de um corpo como um espaço de todo modo não conatural à realidade dada, e tal sentido se estende facilmente até a noção de “figuração” (o ator “encarna” o personagem). Segundo a acepção corrente (e que por certo não é a acepção teológica maior), a encarnação é um modo de transposição e de representação. Estamos no espaço de um pensamento por meio do qual o corpo está necessariamente em posição de exterioridade e de manifestação sensível, de modo distinto de com uma alma ou com um espírito dado na interioridade e não diretamente figurável.
É suficiente ler de maneira literal a fórmula do credo cristão para se dar conta de que ela definitivamente não leva, por si só, a tal interpretação. Se o verbo foi feito carne, ou ainda se (em grego) ele tornou-se, ou se ele foi engendrado ou se engendrou como carne, é porque não teve que penetrar no interior dessa carne dada, de antemão, fora dele: ele próprio o é que se tornou a carne. (A teologia despendeu esforços sobre-humanos – é o caso de dizê-lo – para pensar esse devir que produz, numa só pessoa, duas naturezas heterogêneas.)
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Acrescentemos aqui – com reservas para análises futuras – dois dados suplementares cuja lembrança não é vã: com nuances, isto é, diferenças importantes entre os cristianismos “católico”, “ortodoxo” e “reformado”, a maternidade humana do logos (com ou sem virgindade da mãe) e a “transubstanciação” (real ou simbólica, pouco importa aqui) do corpo do Cristo em pão e vinho de uma “comunhão” representam dois desenvolvimentos ou duas intensificações da encarnação: de uma parte, dando ao homem-deus uma proveniência já no corpo humano e no corpo da mulher (em um sentido, a encarnação leva em conta os sexos), e, de outra parte, dando a seu corpo divino a capacidade de se converter ainda em matéria inorgânica (fazendo assim ser investida por “deus” tanto uma ínfima parcela do espaço-tempo, quanto uma realidade – pão e vinho – como matéria de uma transformação da natureza pela técnica humana).
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Nesse sentido, o corpo cristão é totalmente diferente de um corpo que serve como envelope (ou prisão, ou tumba) para a alma. Ele não é outra coisa que o próprio logos que se faz corpo enquanto logos e segundo sua lógica mais própria. Esse corpo não é outra coisa que o “espírito” saído de si mesmo ou de sua pura identidade para se identificar não ao homem mas como o homem (e a mulher, e a matéria). Mas essa saída de si do espírito não é um acidente que lhe sobrevém (permitiremos aqui uma vasta elipse ao redor da questão do pecado e da salvação, que provisoriamente podemos manter afastada). Em si, o espírito cristão já está fora de si (é sua natureza trina), e sem dúvidas é preciso voltar até o deus monoteísta comum às três religiões “do Livro” para considerar que ele já é essencialmente um deus que se coloca fora de si para e numa “criação” (que não é em nada uma produção, mas, precisamente, o colocar-se-fora-de-si).
Nesse sentido, o deus cristão (leia-se, monoteísta) é o deus que se aliena: ele é o deus que se ateíza ou que se ateologiza, caso possamos, por um instante, forjar tais palavras. (Foi Bataille que, por sua conta, cunhou a palavra “ateológico”.) A ateologia enquanto pensamento do corpo será, portanto, um pensamento disto: que o “deus” se fez “corpo” enquanto esvaziou-se de si mesmo (outro motivo cristão é o da kénôse paulina: o devir-vazio de Deus ou seu “esvaziar-se de si”). O “corpo” torna-se o nome do a-teu, no sentido de “nenhum-deus”. Mas “nenhum-deus” quer dizer não a autossuficiência imediata do homem ou do mundo, mas isto: sem presença fundadora. (De maneira mais geral, o “monoteísmo” não é a redução dos numerosos deuses do “politeísmo” a “um”: sua essência é o desaparecimento da presença, dessa presença que são os deuses das mitologias.) O “corpo” da “encarnação” é, portanto, o lugar, ou mesmo o ter-lugar, o evento desse desaparecimento.
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Nem prisão da alma (corpo sensível ou caído), portanto, nem expressão de uma interioridade (corpo “próprio” ou “significante”, o que eu nomearia, de fato, como o corpo “revelado” de uma certa “modernidade”), nem, entretanto, presença pura (corpo-estátua, corpo esculpido, corpo re-divinizado ao modo do politeísmo no qual a estátua é ela mesma toda a presença divina): mas estendido, espaçamento, separação do próprio desaparecimento. Corpo como verdade de uma “alma” que cai (caída, veste caída: desnudada por uma fuga infinita).
Mas essa síncope que o corpo é – e ele o é numa única tomada, estendida entre um grito de nascimento e um suspiro de morte, uma tomada que se modula num fraseado singular, o discurso de “uma vida” – não é simplesmente uma perda: ela é, como na música, um batimento; ela junta (syn-) cortando (-cope). Ela junta o corpo a si mesmo e os corpos entre si. Síncope da aparição e da desaparição, síncope de enunciação e de sentido, ela é também síncope de desejo.
Desejo não é tensão melancólica em relação a um objeto faltante. É tensão em direção ao que não é objeto: a saber, a própria síncope, enquanto ela tem lugar no outro e enquanto ela só é “própria” sendo no outro e do outro. Mas, o outro, entretanto, é apenas este outro corpo aqui, que na sua separação com o meu toca ele próprio a separação, o corpo que dá acesso à verdade sincopada.
Uma erótica (socrática) atravessa aqui a encarnação (do Cristo) como por uma dobra interna no logos: é essa erótica que quer que o amor dos corpos leve a “conceber a beleza em si”, o que, em Platão, não é nada mais que a tomada da – ou ser tomado pela – única das Ideias que seja por si mesma visível[2].
Assim, um círculo reconduz infindavelmente da visibilidade da Ideia – isto é, da manifestação do sentido – à síncope da alma – ou seja, à fuga da verdade. Uma na outra e uma pela outra, no corpo a corpo no qual o corpo treme, sofre e goza. 


Jean-Luc Nancy. Verbum caro factum. In.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 125-128. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Caravaggio. A ceia de Emaús. 1606. Pinacoteca di Brera, Milano.                  




[1] N.T.: Ainda que em português utilizemos o termo “unha encravada”, preferi manter a referência francesa “ongle incarné”, uma vez que seu sentido não se perde na tradução e, ademais, mantém a ideia que o autor quer trazer ao texto.
[2] Fedro, 250d; cf. também, obviamente, o Banquete, 210a-211b.

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