domingo, 19 de maio de 2013

Fim da história



Certa vez, numa alucinação reveladora, sonhei a morte. Era como se o fim, o impossível, fosse então tocável. Como um voyou désouvré tocava então aquele impossível com a vontade de quem quer desaparecer. Era um suicídio exemplar? Não saberia dizer, mas poderia garantir que quem estava a narrar meu sonho na escuridão da noite era Enrique Vila-Matas. Como o Pasavento que tenta desaparecer, como a esposa-viúva traída que recebe a carta de suicídio de uma das amantes de seu marido morto, como alguém que procura na viagem o meio de encontrar consigo mesmo (um si que se esfacela a todo instante), como um jovem escritor que recebe um manual do romance de Marguerite Duras, eu passava pelo meu sonho como um maquinista que tenta ver o que acontece no último vagão do seu comboio. Escuto agora rumores ensurdecedores: um vizinho com uma TV nas alturas, carros com seus motores explodindo gasolina, meus fantasmas interiores tentando me convencer a escrever estas malditas linhas. Sinto-me condenado e sem rumo, um voyou désouvré que toca a própria morte. Um vagabundo sem obra, um ser qualquer que nada quer. O sonho da morte continua a ser contado por Vila-Matas em meio a este barulho que me atormenta. Qualquer coisa, qualquer mesmo, parece ser menos angustiante que essa ronda dos fantasmas. Sobem à minha cabeça e lá dançam como bailarinas em collants dim. Eis que então pressinto o fim do sonho e vejo meu acordar - que poderia ser este, o de Murilo Mendes:

"Passo a mão pela cabeça
A tempo de ver sumir a última estrela:
A manhã veste a camisa.
Levanto-me vacilando do leito-navio,
Primeiros pássaros oboés.
O monumento do Tempo
Avança feroz para mim.
Sou meu próprio irmão, um homem
Que ainda não foi fuzilado.
Apalpo-me
     Sou eu mesmo
          Quase acordei."

Não resta mais nenhuma saída, pois nem mesmo acordar possibilita-me desaparecer. Suicídio exemplar? Talvez. Mas ainda persistem os fantasmas, ainda há manhãs vestidas de azul, ainda há o som dos pássaros, e dos carros, e dos fantasmas, e nada parece se mover. Fim da história. 

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. O Tempo e a velha. 1810-12. Musée des Beaux-Arts, Lille.    

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