terça-feira, 14 de maio de 2013

O medo


Envenenam as tripas com pó sabor baunilha, com desejo de suplemento, e arrancam as tetas com medo do câncer. Tomam seus cafezinhos com o doce de duas ou três gotas de sabe-se lá o que, e asseiam-se com pastas brancas contra o sol. Viram as mercadorias (que, como todas, são vazias) em busca das informações nutricionais, e enchem os pulmões com monóxido de carbono. Ah, gente submissa! A vida com medo da vida - pois a morte é seu par inseparável - e não se dão conta das cadeias que colocam para si. Ah, gente submissa! Não há defesa contra a vida, que ninguém nem mesmo sabe o que é. Cerram as portas de seus seres com medo de todo vilipêndio, e não se dão conta que se vilipendiam até o cerne. Servem, sim, servem como ferramentas à disposição de um deus sem rosto. E quão atual é o velho-jovem La Boétie:

"Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem - como eu disse outrora passando o tempo em nossas rimas francesas. Pois escrevendo a ti, ó Longa, temo misturar meus versos que nunca te leio para que, aparentando contentamento, não me faças sentir-me todo glorioso. Em suma, se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com o protesto de um desejo contrário - que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo? (...)
É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força; mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como náo pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento. E no entanto não há herdeiro tão pródigo e despreocupado que às vezes não corra os olhos nos registros de seu pai para ver se goza de todos os direitos de sua herança ou se não o usurparam ou a seu predecessor. Mas o costume, que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão grande quanto a seguinte: ensinar-nos a servir - e como se diz de Mitridates que se habituou a tomar veneno - para que aprendamos a engolir e não achar amarga a peçonha da servidão."

Imagem: Pieter Bruegel. Cristo carregando a cruz (detalhe), 1564.  Kunsthistorisches Museum, Vienna.

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