quinta-feira, 6 de março de 2014

Inequivalência


O mundo democrático se desenvolveu no contexto – ao qual, na origem, está ligado – da equivalência geral. Tal expressão – mais uma vez, de Marx – não designa apenas o nivelamento geral das distinções e a redução das excelências na mediocrização [médiocrisation] – tema que dominou, como se sabe, a análise heideggeriana do “se” [“on”] (em que é possível designar um dos impasses sintomáticos da filosofia em face da democracia – e isso, aqui, sem prejulgar em nada a análise exata que disso é conveniente fazer). Ela designa primeiramente a moeda e a forma mercantil, isto é, o coração do capitalismo. É preciso retirar daí uma lição muito simples: o capitalismo, no qual ou com o qual, ou ainda como o qual a democracia se engendrou, é, antes de mais nada, no seu princípio, a escolha de um modo de valorização: pela equivalência. O capitalismo revela uma decisão de civilização: o valor está na equivalência. A técnica, também ela desenvolvida no e por efeito dessa decisão – do mesmo modo que a relação técnica com o mundo é de modo próprio e na origem aquela do homem –, é uma técnica submetida à equivalência: a de todos seus fins possíveis e, também, de maneira ao menos tão flagrante quanto no registro do dinheiro, a dos fins e dos meios.
A democracia pode então se tornar tendencialmente o nome de uma equivalência ainda mais geral do que aquela sobre a qual falava Marx: fins, meios, valores, sentidos, ações, obras e pessoas de todo cambiáveis, pois todos relacionados a nada que possa distingui-los – relacionados a uma troca que, longe de ser uma “partilha”, segundo a riqueza própria dessa palavra, é apenas substituição dos papeis ou permuta dos lugares.
O destino da democracia está ligado à possibilidade de uma mutação do paradigma da equivalência. Introduzir uma inequivalência nova que não seja, por certo, a da dominação econômica (cujo fundo permanece sendo a equivalência), dos feudalismos e das aristocracias, nem aquelas dos regimes de eleição divina e de salvação, tampouco a das espiritualidades, dos heroísmos ou dos estetismos, tal é o desafio. Não se tratará de introduzir um outro sistema de valores diferenciais: tratar-se-á de encontrar, de conquistar, um sentido de valoração, de afirmação valorativa que dê a cada gesto de valoração – decisão de existência, de obra, de direção – a possibilidade de não ser ele mesmo de antemão medido por um sistema dado, mas, ao contrário, de ser a cada vez a afirmação de um “valor” – ou de um “sentido” – único, incomparável, insubstituível. Apenas isso pode deslocar a suposta dominação econômica, que é apenas o efeito da decisão fundamental pela equivalência.
De modo contrário àquilo que mostra o individualismo liberal, o qual produz apenas a equivalência dos indivíduos – assim compreendidos desde que os batizamos “pessoas humanas” –, é a afirmação de cada um que o comum deve tornar possível: mas uma afirmação que não “valha”, precisamente, senão entre todos e, de algum modo, para todos, que remeta a todos como à possibilidade e à abertura do sentido singular de cada um e de cada relação. Apenas isso sai do niilismo: não a reativação de valores, mas a manifestação de todos sobre um fundo no qual o “nada” significa que todos valem incomensuravelmente, absolutamente e infinitamente.
A afirmação do valor incomensurável pode parecer devotadamente idealista. Entretanto, é preciso entendê-la como um princípio de realidade: ela não se livra a um devaneio, nem propõe uma utopia, nem mesmo uma ideia reguladora, mas enuncia que é desse valor absoluto que é preciso partir. Jamais de um “tudo se vale” – homens, culturas, palavras, crenças –, mas sempre de um “nada se equivale” (salvo o monetário, que pode sempre tudo se tornar). Cada um – cada “um” singular de um, de dois, de muitos, de um povo – é único de uma unicidade, de uma singularidade que obriga infinitamente e que se obriga a ser colocada em ato, em obra ou em trabalho. E, ao mesmo tempo, a estrita igualdade é o regime em que se partilham esses incomensuráveis.

Jean-Luc Nancy. Vérité de la démocratie. Paris: Galilée, 2008. pp. 44-47. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Paul Klee. Dream City, 1921.

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