segunda-feira, 31 de março de 2014

Pequeno parágrafo sobre a dor


Lanço fogo em uma pilha de velhas cartas, tentando queimar mais a memória do que os papeis que agora viravam cinzas. Vulnerável em face de minhas próprias figuras e imagens que, em brasa, subiam com a fumaça e, tal qual a voz de Billie Holiday bêbada em Newport, declamavam as cartas como se elas fossem poemas perdidos. Sorrio com a vitória do fogo sobre o papel, mas incendiar a memória é o que mais desejo. Paul Auster e seu inventor da solidão ainda queimam meus dedos: Por que não abandonei a leitura desse doente por memória? Por que não queimei esse livro junto com as cartas? Não bastaria; e parece que estou sobre a mesa de ferozes algozes que examinam o melhor modo de cortar-me em pedaços para me dar uma lição (e não é a pedagogia produto de algozes?): "você queimará com suas memórias, sejam elas inventadas ou não; só resta a você, tolo e ingênuo que tenta apagar o que é você mesmo, o martírio por tamanho disparate: sua memória é sua culpa." Solto um grito de exasperação - e Deleuze, sufocado sem possíveis, é alento -, deixo aos meus assassinos minha carne em prantos e tento me entregar a um presente que arde em chamas sem cartas, sem mapas, sem outros caminhos senão os delírios de um esquecimento tão difícil quanto inevitável.

Imagem: Caravaggio. Júpiter, Netuno e Plutão. 1597-1600. Casino Boncompagni Ludovisi, Roma.  

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