domingo, 19 de julho de 2015

Pequeno parágrafo sobre as cartas V



Li, numa bela e secreta história, que o maior problema dos mapas é que eles não resistem à ação do tempo. E, por não gravarem o tempo, são gravados de infâmia: os mapas circulam no universo do entretenimento, são os rabiscos de uma busca que, colocando-se diante de um olhar ansioso por movimento, tenta dar, num mundo sem bússolas ou rosa dos ventos, as marcas da mão divina. Mas o que é entreter-se defronte a um mapa? Como tenho-me entre um mapa? Porque talvez a única forma possível de estar entre seja mesmo um mapa que, com simplicidade, alguém poderia dizer que nada mais é que uma carta sempre a caminho de olhos outros. Os mapas podem assim ser folhas passíveis ao vento dos tempos. Certa vez, em algumas notas que se tornaram uma carta aos destinatários impossíveis do futuro, Fernando Pessoa gravou: "Toda a gente é a caricatura d'uma única pessôa que não existe. Nenhum de nós poderia figurar n'um romance realista. Somos todos falsos, inteiramente irreaes." A infâmia com a qual as cartas são gravadas é também o ônus que carregamos pela nossa irrealidade, por sucumbirmos, também nós, ao tempo. Falamos (mapeamos, cartografamos) porque certa vez acreditamos em nossa realidade e, desde então, tentamos escapar ao tempo. Mas, nesse escape está nosso entre-ter-se e tal é nossa condenação: estamos condenados à linguagem (nosso lápis à mesa de desenho). Aliás, resta-nos o contentamento de simplesmente poder dizer: somos irreais à medida em que falamos; somos irreais desde o momento em que, colocados diante da criação, a ela atribuímos nomes; somos irreais porque insistimos em cartografar um mundo; somos irreais pois a realidade é muito pouco para poder ser dita. Assim, estamos sempre entre a mão que endereça cartas e os olhos que nestas lerão apenas a distância que tentamos preencher, cartografar, com nosso toque de irrealidade: nossa linguagem - mais que feita carne, como num delírio divino - feita carta. 


Imagem: Girolamo Ruscelli. Ptolemai Cognita. 1574  

2 comentários:

Juliana Cardoso disse...

Olá, por favor, li um texto seu e gostei, queria saber seu nome, quem é você por favor. Obrigada, um abraço. Juliana Cardoso Franco

Juliana Cardoso disse...

se for possivel peço que me envie um email por favor, pois nao sei usar blogs muito bem. Meu email é ju.cardosof@gmail.com
muito obrigada