segunda-feira, 6 de junho de 2011

Nosso guia no desfiladeiro




Roberto Bolaño



(...) Os escritores escrevem com as mão e com os olhos. Twain, velho e doente, descrente de tudo, inclusive de sua própria literatura, escreve com os pulsos e com os olhos, como se neles se concentrasse sua força de viajante permanente.

Mas esses não são os pulsos de Huckleberry Finn, são os de Tom Sawyer. E essa é a primeira desgraça de Mark Twain e também é nosso deleite, hipócritas leitores, porque parece certo que, se Twain se tivesse convertido em Huck em algum momento de sua vida desgraçada, certamente teria escrito nada ou quase nada, pois os meninos e os homens como Huck não escrevem, ocupados, saciados pela vida real, uma vida onde não se pescam baleias, e sim bagres no rio que divide os Estados Unidos em duas metades: para leste o crepúsculo, a civilização, o que procura desesperadamente ser história e ser historiado; para oeste, a claridade da cegueira e do mito, o que está além dos livros e da história, aquilo que interiormente mais tememos. De um lado a terra de Tom, que se aquietará, que inclusive pode ser que triunfe e que seguramente terá descendentes; do outro a terra de Huck, o selvagem, o preguiçoso, o filho de um alcoólatra e abusador, em suma, um órfão integral, que nunca triunfará e que desaparecerá sem deixar rastro, salvo na memória dos amigos, seus camaradas de desgraça, e na memória ardente de Twain.

Não, Mark Twain não sentia muito apreço pelos homens. Há uma página em As Aventuras de Huckleberry Finn que merece ser escrita com letras de ouro nas paredes de todos os botecos (e escolas) do mundo. Essa página prefigura metade da obra completa de Faulkner e metade da obra completa de Hemingway, e sobretudo prefigura o que ambos, Faulkner e Hemingway, quiseram ser. A página é simples. Narra um duelo e suas posteriores conseqüências. Começa com um bêbado cuja mania é insultar e ameaçar as pessoas. Uma manhã o bêbado vai insultar o comerciante do vilarejo.

"Boggs parou o cavalo na frente da maior loja da cidade, se abaixou para poder olhar por baixo da cortina do toldo, e depois gritou:"Pode ir saindo daí, Sherbun! Sai daí e vem pra rua enfrentar o homem que você roubou. É você que eu vim pegar, seu cachorro, e dessa vez você não me escapa". E continuou falando, xingando Sherbun de tudo que se lembrava, e foi juntando gente na rua para assistir, rindo e achando muita graça naquilo tudo. Depois de algum tempo, um sujeito todo empertigado de uns cinqüenta e cinco anos - e era de longe o homem mais bem vestido que eu vi naquela cidade - saiu da loja, a multidão abrindo alas para ele passar. E ele respondeu ao Boggs, falando devagar e com muita calma: "Já estou ficando cansado desta história, Boggs; mas vou deixar você falar o que quiser até dar uma hora. Mas só até dar uma hora, entendeu? - nem mais um minuto. Se você abrir a boca para dizer alguma coisa contra mim depois disso, pode ir se enfiar onde quiser pois eu vou acabar com você".

Depois Sherbun, que apenas algumas linhas atrás soubemos que é coronel, o velho coronel Sherbun, volta à loja, e Boggs segue circulando a cavalo pelo povoado e insultando-o a plenos pulmões. As pessoas já não dão risada. Quando volta à loja (onde não precisa mais abaixar a cabeça para saber que Sherbun está lá), Boggs segue com as ofensas. Alguns tentam acalmá-lo. Lembram que falta 15 para a uma. Mas Boggs não dá a mínima. Antes viu Huck Finn e lhe perguntou: "De onde você saiu, garoto? Está preparado para morrer?" Huck não responde. E agora algumas pessoas tentam convencer o bêbado a voltar para casa, mas Boggs "jogou o chapéu na lama, fez o cavalo passar por cima e depois saiu de novo pela rua, com o cabelo grisalho solto no vento", uma descrição que sem deixar de ser sórdida, como a situação merece, consegue ao mesmo tempo uma estatura épica, porque Twain sabe que toda a épica é sórdida, e que a única coisa que pode atenuar um pouco a imensa tristeza de toda épica é o humor. E assim Boggs segue para cima e para baixo xingando Sherbun, sem que ninguém consiga fazê-lo descer do cavalo, nem calar-se, até que alguém calha de pensar em sua filha, a única capaz de convencê-lo, e partem em busca da moça, e então Boggs desaparece por alguns minutos e, quando Huck volta a vê-lo, ele já está desmontado, segue a pé, não caminha com muita segurança, e dois amigos o carregam cada um por um braço: "Vinha calado, com ar de preocupação; e não estava resistindo aos amigos - até ajudava os dois a andar mais depressa". Então ouve-se uma voz que grita o nome de Boggs, todos se viram e lá está o coronel Sherbun, e Twain o descreve no meio da rua, quieto, com uma pistola erguida na mão direita, uma pistola que não aponta para ninguém, mas para o céu, como um duelista clássico, e então do outro lado da rua parece a filha de Boggs, mas Boggs e seus camaradas não a veem, estão virado para o outro lado, e a única coisa que veem é Sherbun com a pistola levantada, uma pistola com "os dois canos engatilhados", ou seja, uma pistola de duelista, uma pistola de duas balas, e os companheiros de Boggs se afastam, e só então a pistola de Sherbun abaixa e aponta para o pobre beberrão, e este chega a levantar as duas mãos em um gesto mais de súplica que de rendição e diz: "Oh, meu deus, não atire!", e imediatamente, sem transição nenhuma, se escuta o tiro e Boggs cambaleia para trás, "tentando se agarrar no vento", e Sherbun dispara outra vez, "e aí ele desaba de costas no chão". A partir deste momento, a cena é caótica: a filha de Boggs chora, a multidão se reúne em volta do agonizante, Sherbun jogou a pistola no chão "com ar displicente" e foi embora, as pessoas carregam Boggs até uma farmácia, o deitam no chão, colocam uma bíblia debaixo de sua cabeça e outra aberta, sobre seu peito, e então Boggs morre. E enquanto Boggs morre, as pessoas começam a falar, a comentar o assassinato, a dar suas versões, e depois de um tempo alguém, uma voz anônima em meio à multidão, diz que Sherbun devia ser linchado, e quase imediatamente todos concordam, todo o povo concorda, e todos se dirigem para a casa de Sherbun "furiosos, gritando, arrancando todas as cordas do varal que encontraram no caminho para usar no enforcamento."

E assim acaba o capítulo XXI, onde o leitor tem a sensação de estar assistindo a algo completamente real, não literário, ou seja, profundamente literário, um dos melhores capítulos de as Aventuras de Huckleberry Finn, e partir daí começa o capítulo XXII, em cujas primeiras páginas Twai fala com lucidez sobre o valor e sobre a massa, como se na véspera tivesse lido Massa e Poder de Canetti, e onde também fala sobre a solidão e sobre a dignidade mais desesperada do mundo, e onde Twain se traveste de capitão Ahab.

A cena é, no meio do caos de um linchamento, simples. A turba chega à casa de Sherbun. Há um pequeno jardim. A turba se instala, gritando ("eu nem conseguia ouvir meus próprios pensamentos") atrás da cerca. Alguém grita que derrubem a cerca. "E aí começou um verdadeiro pandemônio, todo mundo quebrando, arrancando e partindo as tábuas". Acabaram derrubando a cerca, e a linha de frente da multidão começou a entrar no jardim como se fosse uma onda."Só então aparece Sherbu. Ele está sobre o telhado do pórtico, segura uma espingarda de dois canos e está imóvel, "perfeitamente calmo e decidido", observando os que destroem sua cerca, que ao vê-lo lá no alto se mantêm, por sua vez, calados. Durante um momento, nada acontece. A imobilidade é perfeita. A turba embaixo e o coronel Sherbun em cima, olhando. Então Sherbun solta uma gargalhada e diz:

"Imagine só, vocês linchando alguém! Eu acho até engraçado. Vocês, achando que iam conseguir linchar um homem! Só porque têm coragem de cobrir de piche e pena as pobres mulheres perdidas que passam por aqui, sem ninguém para defender, acharam que iam ter tutano para botar as mãos num homem? Mesmo nas mãos de dez mil pessoas como vocês, um homem não corre perigo - se for dia claro e vocês não atacarem pelas costas.
"Se eu conheço vocês? Conheço bem até demais, de cabo a rabo. Nasci e fui criado no sul, mas já vivi no norte; e então eu conheço a média. O homem médio é sempre covarde. No norte, deixa qualquer um pisar nele. Depois volta para casa e vai rezar, pedindo a Deus que lhe dê humildade de espírito para suportar tudo aquilo. No sul, já vi um sujeito sozinho parar uma diligência cheia de homens, à luz do dia, e roubar um por um. Os jornais daqui vivem dizendo que vocês são um punhado de bravos, e falam tanto que vocês acabaram acreditando, que eram mesmo mais corajosos que qualquer um - mas na verdade são iguais a todo mundo, não são mais corajosos que ninguém. Por que os júris daqui não mandam enforcar os assassinos? Porque todo mundo fica com medo de tomar um tiro pelas costas, dado de noite por algum amigo do criminoso - exatamente o tipo de coisa que eles fazem.
"E sempre acabam absolvendo o acusado; então vem um homem e sai no meio multidão, com cem covardes mascarados atrás, e acabam linchando o bandido. O erro de vocês foi que não trouxeram homem nenhum; esse foi o primeiro erro, e o segundo foi não ter vindo de noite, e sem trazer as máscaras. Vocês só trouxeram parte de um homem - Buck Harkness, que está ali - e se não fosse por ele para começar alguma coisa, não ia acontecer nada.
"Na verdade, vocês nem queriam vir. O homem médio não gosta de se meter em problemas, e nem de correr perigo. Vocês não gostam de problemas e nem do perigo. Mas basta meio homem - como Buck Harkness, que está ali - gritar "Lincha! Lincha!" para vocês ficarem com medo de recuar - medo de alguém descobrir como é que vocês são na verdade - um bando de covardes - e aí começam a berrar, se penduram no rabo do paletó do meio-homem e vêm até aqui, no maior tumulto, dizendo que vão fazer muita coisa. A coisa mais triste que pode existir é a multidão, e o exército é isso – uma multidão; ninguém está lutando porque tem coragem própria, mas com uma coragem que vem de serem muitos e dos oficiais. Mas a multidão que não é comandada por um homem é coisa tão triste que nem merece pena. Agora, vocês tem é que enfiar o rabo entre as pernas, voltar para casa e ir arranjar um buraco para se esconder. Se algum linchamento for mesmo acontecer aqui, vai ser no meio da noite, à moda do sul; e quando vierem vão estar de máscara, e vão arranjar um homem para trazer. Agora fora daqui – e podem levar este meio-homem com vocês!” - E ao mesmo tempo apoiou o cano da espingarda no braço esquerdo e engatilhou, os dois cano da arma. A multidão recuou na mesma hora, depois se desmanchou e cada um saiu correndo para um lado.

Não há dúvida de que Mark Twain não tinha em grande estima o valor das pessoas. Conhecia e podia distinguir os covardes onde os visse. Não tinha opinião melhor de seus colegas escritores, em quem sentia o aroma da impostura. O coronel Sherbun, que é um homem paciente, também é um assassino que não treme na hora de matar um bêbado fanfarrão que levanta as mãos no instante da morte ("Oh, meu deus, não me mate"), como se tudo tivesse sido brincadeira, uma representação teatral que foi longe demais. Sherbun padece de uma certa inflexibilidade que hoje consideraríamos politicamente incorreta. Mas é um homem e se comporta como tal, enquanto os demais se comportam como massa, os que pretendem linchá-lo, ou como atores, o desafortunado Boggs, disposto a recitar seu papel, mas não a cumprir sua palavra, o mesmo Boggs que, sem descer do cavalo, perguntou a Huck: "De onde é que você saiu garoto? Está preparado para morrer?".

Twain sempre esteve pronto para morrer. Só assim entendemos seu humor.




Trecho do ensaio escrito como prefácio à tradução de “As aventuras de Huckleberry Finn”, publicado pela Biblioteca Universal del Círculo de Leitores. In: Serrote, n. 6. São Paulo: IMS, novembro de 2010. pp. 75-79. Trad. Chico Mattoso.

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