quinta-feira, 23 de junho de 2011

Agudezas


Às vezes era uma sensação angustiante, outras tantas era como um alívio. Porém, o arrepio no alto do abdomem sempre era produzido em horas precisas: na cama, nos primeiros minutos do sono, no momento em que consciência e inconsciência parecem entrar em sintonia ou, no mínimo, numa indistição. Aqueles momentos em que ora falta o chão, ora temos com que asas de Ícaro a derreter pelo sol dos sonhos, ora nos retorcemos como que a procurar o amor ausente. Mas a sensação era pontiaguda, uma flechada intoxicante, cujos odores de veneno eram mais fortes do que os perfumes de damas da noite oníricas.
De que se tratava? Quem além de mim sentia aquilo? O que sentia? Talvez, e hoje caminhando pensava em respostas para a sensação, essa sensação biológica pudesse ser tão somente o reflexo da agudeza de saber-se finito. O momento da dor, do incômodo, da angústia consciente-inconsciente é um átimo no qual a finitude transpassa a carne, em que sabemos (e talvez como diria João da Cruz: um entender não entendendo, toda ciência transcendendo) o ser mortal que nos habita ou o ser mortal que habitamos ou a morte que habita nossa vida. É quase tão inexplicável quanto o é a vida: espontânea, gratuita, fortuita. A sensação aguda de finitude é um algo desses momentos insólitos, é um algo que aparece e faz palpitar o coração no ritmo alucinado das vozes do mundo que estão do lado de fora da janela, que faz com que a fissura entre consciência e inconsciência seja apenas uma criação à toa para recobrir a crueza da mecânica dos movimentos cotidianos. Acho que é algo que surge quando a obscenidade da vida entra em cena: morte, a dama que zela pelo momento oportuno.
Talvez a voz tônica e suave de Nina Simone cantando I wish I could break all the chains holding me possa ser uma imagem do grito impossível de ser dado no momento em que a sensação crônica da finitude me assalta. Porém, esse sonho de liberdade infinita talvez seja a fantasia criadora do instante em que o coração se acelera e o despertar do umbral em que não sabemos mais o que é saber e não-saber nada mais seria do que o gesto gratuito do existir com o qual não deveríamos nos angustiar, mas nos deixar levar pelo seu suave embalo finito.

Imagem: Andrea Mantegna. San Sebastiano, 1506. Galleria Franchetti, Ca d´Oro, Venezia.

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