Em Le Thor, Heidegger dava o seu seminário num jardim sombreado por altas árvores. Mas, por vezes, saía-se do vilarejo caminhando em direção de Thouzon ou do Rebanquet, e o seminário acontecia então diante de uma cabana perdida em meio a um olival. Um dia, quando o seminário já estava chegando o fim e os alunos, ao seu redor, não paravam de lhe fazer perguntas, o filósofo simplesmente responde: "Vocês podem ver o meu limite, eu não." Anos antes, tinha escrito que a grandeza de um pensador se mede pela fidelidade ao próprio limite interno, e que não conhecer esse limite - e não conhecê-lo pela sua proximidade ao indizível - é a doação secreta que o ser, raras vezes, pode fazer.
Que uma latência seja mantida para que possa haver ilatência e um esquecimento custodiado para que possa haver memória: isto é a inspiração, o transporte suscitado pela musa que acorda o homem à palavra e ao pensamento. O pensamento está próximo à sua coisa somente se se perde nessa latência, se não vê mais a sua coisa. Isto é o seu caráter de ditado: deve haver a dialética latência-ilatência, esquecimento-memória, para que a palavra possa vir e não simplesmente ser manipulada por um sujeito. (Eu - é claro - não posso inspirar-me.)
Mas essa latência é, também, o núcleo tartárico em torno ao qual se adensa a obscuridade do caráter e do destino, o não-dito que, crescendo no pensamento, precipita-o na loucura. O que o mestre não vê é a sua própria verdade: o seu limite é o seu princípio. Não vista, não exposta, a verdade entra no seu ocidente, fecha-se no próprio Amanthis.[1]
"É concebível que um filósofo caia nesta ou naquela forma de aparente incoerência por amor deste ou daquele compromisso: ele próprio pode estar consciente disso. Mas aquilo de que ele não é consciente, é que a possibilidade deste aparente compromisso tem a sua raiz mais profunda numa insuficiente exposição do seu princípio. Se, portanto, um filósofo verdadeiramente recorreu a um compromisso, os seus discípulos devem explicar com base no íntimo e essencial conteúdo da sua consciência o que, para ele mesmo, tomou forma de consciência exotérica."
A insuficiente exposição do princípio o constitui como limite musaico, como inspiração. Mas, para poder escrever, para poder tornar-se também para nós inspiração, o mestre teve de abandonar a sua inspiração, teve que a esgotar: o poeta inspirado é sem obra. Este apagar da inspiração, que traz o pensamento da sobra do seu ocidente, é a exposição da Musa: a ideia.
Giorgio Agamben. Idea della Musa. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 39-40. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Cosmè Tura. Uma Musa. 1455-60. National Gallery, London.
[1] Nome que os antigos egípcios davam ao lugar de permanência das almas.
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