quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Arqueologia da obra de arte



Giorgio Agamben


Temo que o que irão escutar não corresponde exatamente ao título um tanto pomposo Lectio magistralis. Eu me limitarei a partilhar com vocês algumas reflexões sobre a situação da obra de arte hoje. Por isso, da minha parte, gostaria de ter intitulado a conferência Arqueologia da obra de arte. A ideia que guia as minhas reflexões é que a arqueologia e não a futurologia é a única via de acesso ao presente.
Como certa vez sugeriu Michel Foucault, as pesquisas sobre o passado, as pesquisas históricas que fazemos sobre o passado, são apenas a sobra que paira sobre uma interrogação dirigida ao presente. É procurando compreender o presente que nós, europeus, encontramo-nos constrangidos a interrogar o passado. Especifiquei “nós, europeus” porque me parece que, admitindo-se que a palavra Europa tenha um sentido – o que não é seguro –, este, como hoje é evidente, não pode ser nem político, nem religioso e muito menos econômico; no entanto, talvez, consista nisto: que o homem europeu, de modo diverso dos asiáticos ou dos americanos, para os quais a história ou o passado têm um significado completamente diferente, pode ter acesso à sua verdade apenas por meio de um confronto com o próprio passado, somente acertando as contas com a própria história. Por isso, creio que a crise que a Europa está atravessando é, antes de mais nada – como deveria ser evidente no desmantelamento das instituições universitárias e na museificação crescente da cultura –, não um problema econômico, mas uma crise da relação com o passado.
Vocês sabem que hoje se fala muito de crise, de economia, e penso que quem quer que tenha um pouco de inteligência terá compreendido que essas palavras não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem para impor e obter restrições e sacrifícios que, de outro modo e com razão, as pessoas não gostariam de fazer; ou, ainda, crise, no fundo, hoje é uma palavra de ordem que significa apenas “obedeça!”, uma palavra vazia de sentido. E, portanto, se há uma crise, se uma crise tem sentido, é justo a crise da relação com o passado. Uma vez que, obviamente, o único lugar em que o passado pode viver é o presente. E se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, as universidades e os museus tornam-se lugares problemáticos. Se a arte se tornou para nós hoje uma figura, ou, talvez, a figura eminente desse passado, então a pergunta que é preciso ser colocada é: “Qual é o lugar da arte no presente?”. São essas as considerações que procurarei fazer.
A expressão Arqueologia da obra de arte, que gostaria que tivesse sido o título da conferência, pressupõe que a relação com a obra de arte tenha se tornado hoje problemática. E se, como estou convencido – como dizia Wittgenstein –, os problemas filosóficos devem ser colocados como perguntas sobre o significado das palavras, o verdadeiro problema filosófico é: “O que significa essa palavra?”. Ora, isso quer dizer que hoje a expressão obra de arte tornou-se opaca ou mesmo ininteligível. A sua obscuridade não diz respeito apenas ao termo arte, que dois séculos de reflexão estética tornaram problemático, mas também, e acima de tudo, ao termo obra. Até mesmo de um ponto de vista gramatical a expressão obra de arte, que usamos com tanta desenvoltura, não é nada fácil de entender. De fato, não está claro se, por exemplo, trata-se de um genitivo subjetivo, isto é, se a obra é feita da arte, pertence à arte, ou de um genitivo objetivo no qual o importante é a obra e não a arte. Em outra palavras, se o elemento decisivo é a obra, a arte ou a não bem definida mistura das duas. Além disso, vocês sabem que hoje a obra parece atravessar uma crise decisiva que a fez desaparecer do âmbito da produção artística, na qual a performance e a atividade criativa do artista tendem cada vez mais a tomar o lugar daquilo a que estávamos habituados a chamar obra de arte. Ou seja, se hoje a arte se apresenta como uma atividade sem obra – hoje, como vocês sabem, os artistas contemporâneos são artistas sem obra, que exibem documentos de uma obra ausente –, isso pôde acontecer porque o ser obra da obra de arte permanecia não pensado. Por isso, penso que apenas uma genealogia do conceito de obra – conceito que julgo fundamental, mesmo se não se apresenta assim nos manuais de filosofia – pode tornar compreensível tal processo (que, segundo o notório paradigma psicanalítico do retorno do reprimido – vocês sabem que Freud dizia que há um trauma, em seguida um recalque e, depois desse recalque, o trauma reaparece na forma mitológica como sintoma – creio, faz da obra, hoje, o grande reprimido da arte contemporânea, o reprimido que retorna em formas patológicas). Naturalmente não posso fazer uma genealogia desse conceito mas, no entanto, limitar-me-ei a apresentar-lhes algumas reflexões sobre três momentos que me parecem extremamente significativos. 
Para começar, será preciso que nos desloquemos à Grécia clássica, grosso modo, aos tempos de Aristóteles, isto é, ao século IV a.C. Qual é a situação da obra de arte – de modo geral, das obras e dos artistas – nesse momento? Muito diferente da que estamos habituados. O artista, como qualquer artesão, está classificado entre os teknites, isto é, entre aqueles que, praticando uma técnica, produzem coisas, produzem objetos. No entanto, a sua atividade jamais é tomada como tal, mas é sempre e apenas considerada do ponto de vista da obra produzida. Esse é um fato difícil de ser compreendido por nós – p.ex., temos muitos testemunhos de contratos de trabalho de artesãos e artistas: o trabalho e o tempo empregado jamais são levados em consideração; trata-se apenas de fornecer a dita obra. Por isso, os historiadores modernos com frequência repetem que em grego falta o conceito de trabalho. Com efeito, um conceito de trabalho e de atividade artística como o nosso não aparece em absoluto. Creio, entretanto, que se deveria dizer que não é que aos gregos falte completamente o conceito, mas que eles não distinguem o trabalho, a atividade produtiva, da obra. Aos seus olhos, a atividade produtiva está por inteiro na obra e não no artista que a produziu. Há uma passagem de Aristóteles em que isso é expresso claramente (é uma passagem da Metafísica dedicada aos seus dois conceitos tão importantes: potência e ato, dynamis energeia). O termo energeia é apenas um termo criado por Aristóteles (e também os filósofos, como os poetas, precisam inventar palavras; ou melhor, creio que se deveria dizer que a terminologia é o momento poético do pensamento). Como Platão inventa a palavra ideia, Aristóteles inventa essa palavra, energeia, que simplesmente provém de ergon, que significa obra, e, portanto, significa o ser em obra, ser em ato, operação, o ser em obra de algo. E é curioso que para sublinhar a posição entre potência e ato, Aristóteles se sirva exatamente de um exemplo retirado de uma atividade definida como artística. Ele diz que Hermes encontra-se em potência na madeira ainda não esculpida e, ao contrário, em energeia, em obra, na estátua esculpida. A obra de arte pertence de modo constitutivo à esfera do ser em obra, da energeia. E aqui, leio rapidamente com vocês a passagem. Aristóteles escreve que o fim é sempre a obra (o ergon), e que a obra é sempre energeia, é sempre ser em obra, operação. “De fato, o termo energeiaescreve Aristóteles, “deriva de ergon (de obra) e tende, por isso, à completude – a um estado em que atinge a própria completude. Há casos em que o fim último se exaure no uso. Por exemplo, na vista, quando usamos os olhos, tudo se exaure na visão; não há produção de qualquer outra coisa. Há ainda outros casos, por exemplo, a arte de construir, na qual além da operação do construir produz-se também outra coisa: a casa. Nesses casos, o ato de construir reside na coisa construída. Ela vem a ser e está junto da casa. Em todos os casos em que é produzido algo além do uso, a energeia, o ser em obra, está na coisa feita. Como o ato de construir está na casa construída, assim também o ato de tecer está no tecido. Quando, ao contrário, não surge uma obra externa, além do uso, então a energeia, o ser em obra, estará nos próprios sujeitos. Como, por exemplo, a visão naquele que vê e a cognição naquele que conhece.”
Paremos por um momento nessa passagem extraordinária que, creio, mostra o quanto a concepção grega de uma obra de arte é diferente da nossa. Está claro que os gregos privilegiam a obra em relação ao artista ou ao artesão. Nas atividades que produzem alguma coisa, a atividade produtiva é verdadeira e própria, diz Aristóteles, não está no artista, mas na obra. A operação de construir uma casa, na casa, a operação de fazer uma estátua, na estátua, e não no artista. Portanto, compreendemos também por que os gregos, em geral, não podiam levar em grande conta o artista ou o artesão. Enquanto a contemplação, o ato do conhecimento, está no contemplador e no cognoscente, o artista, para os gregos, é um ser que tem o seu fim fora de si, na obra. Isto é, ele é um ser constitutivamente incompleto, que jamais possui o seu fim e ao qual falta o seu fim. Por isso, os gregos consideravam o teknites – o artesão e o artista – como um banausos, um termo que significa pessoa vulgar, não exatamente decente. Isso não significa que os gregos não poderiam ver a diferença entre um sapateiro e Fídias, mas, aos seus olhos, eles tinham seu fim fora de si: no sapato e na estátua do Parthenon respectivamente. Em todo caso, a sua energeia não lhes pertencia.
Essas são as atividades que produzem obra. Há outras que são sem obra e que Aristóteles exemplifica, como vimos, na visão e no conhecimento. É evidente que, para um grego, essas são superiores às outras. Mais uma vez: não por que não fossem capazes de apreciar a obra de arte em relação ao conhecimento ou ao pensamento, mas por que nas atividades improdutivas como o pensamento, o sujeito possui perfeitamente o seu fim. A obra, o ergon, é de algum modo um ultraje, que expropria o agente da sua energeia, e não está nele, mas nas obras. Por isso a práxis, a ação, que tem em si mesma o seu fim é para Aristóteles de algum modo superior à poiesis, à atividade produtiva cujo fim está na obraenergeia, a operação perfeita, é sem obra e tem seu lugar no agente.
Parece-me que essa concepção do agir humano contenha em si o germe de um problema, de uma aporia, que diz respeito exatamente ao lugar da atividade humana: em um caso, na poeisis, está na obra e, no outro, no agente. Que se trate de um problema não superável, é provado pelo fato de que, em uma outra passagem de outra obra, Aristóteles se pergunta se existe algo como um ergon, uma obra, próprio do homem. Existe uma obra do homem enquanto tal (assim como existe a obra do sapateiro, que faz o sapato, uma obra do flautista, que toca a flauta, uma obra do carpinteiro, que faz a cama)? Aristóteles crê que também existe uma obra do homem em si, do homem enquanto tal. Logo na sequência, ele deixa a hipótese de que o homem seja um ser sem obra de lado. Eu, da minha parte, acho tal ideia interessantíssima. Ou ainda, diria que o homem é um animal constitutivamente sem obra e que lhe falta, de maneira diversa dos outros animais, uma vocação específica inscrita no seu destino, assinalada pela espécie. O homem é um animal que não tem uma atividade própria. E é, talvez, justo por isso que, diferentemente dos outros animais, pode encontrar a própria verdade em uma atividade como a arte que, como é notório, é privada de uma finalidade (de uma finalidade ao menos definível).
Dizia-lhes que Aristóteles deixa de lado o problema de ser o homem sem obra ou de ter ele uma obra, e responde que a obra do homem existe e é ser uma obra da alma segundo a razão. Mas, se nos perguntarmos, por outro lado: o que é do homem enquanto tal? Existe uma obra do homem enquanto tal? Ou ainda: é o homem um ser condenado à cisão, porque há nele duas obras diversas (uma que lhe compete enquanto homem e outra, mais segura, que lhe compete enquanto sapateiro, flautista, escultor etc.)? Se confrontarmos essa concepção da obra de arte com a nossa, podemos rapidamente dizer que o que nos separa dos gregos é que, num certo ponto – e podemos fazê-lo grosso modo coincidir com a modernidade –, a arte saiu da esfera das atividades que têm a sua energeia fora de si, numa obra, e se deslocou ao âmbito das atividades que, como o conhecimento, têm em si mesmas seu ser em obra. O artista não é mais um banausos, um artesão, constrangido a perseguir a sua completude fora de si na obra mas, como filósofo, como pensador, reivindica o domínio e a titularidade da sua atividade criativa. Mas o que ganhou de um lado, a independência em relação à obra, vem, por assim dizer, pela falta do outro. Se ele possui em si mesmo a sua energeia, e pode assim afirmar a sua superioridade, de certa maneira, sobre a obra, esta torna-se para ele de algum modo acidental. Transforma-se em um resíduo de alguma maneira não necessário à sua atividade criativa. Enquanto na Grécia o artista é uma espécie de resíduo embaraçante, um pressuposto da obra, na modernidade a obra é de algum modo um resíduo embaraçante da atividade criativa e do gênio do artista. É como se o gênio, a atividade criativa, procurasse firmar-se para além daquilo que produz, ou seja, firmasse seu valor além da obra que produz.
A hipótese que gostaria de sugerir é que obra e operação criativa são duas noções complementares que formam com o artista como seu meio o que lhes proponho chamar de máquina artística da modernidade. E jamais é possível separar um desses três elementos. Juntos formam algo como os anéis de Borromeo (três círculos unidos de tal modo que nenhum deles pode ser separado sem que separe também os outros). Obra, artista e operação criativa estão ligados juntos numa espécie de máquina de três faces que hoje, de alguma maneira, gostaria de colocar em dúvida.
Gostaria de fazer um salto de vários séculos e da Grécia deslocar-nos para a Alemanha, ao início dos anos vinte do século XX. Não às desordens e tumultos que, como vocês sabem, naqueles anos marca a vida das grandes cidades alemãs, mas ao silêncio e recolhimento da abadia beneditina de Maria Lach, na Renânia. Ali um obscuro monge chamado Odo Casel publica em 1923, o mesmo ano em que Duchamp termina, ou melhor, abandona em estado de incompletude definitiva o Grande Vidro, um livro denominado A Liturgia como festa mistérica, que se tornaria uma espécie de manifesto daquilo que seria depois chamado de movimento litúrgico. Vocês sabem que os primeiros trinta anos do século XX foram corretamente batizados de A idade dos movimentos. Tanto à direita quanto à esquerda do quadro político, os partidos cedem lugar aos movimentos (vocês sabem que tanto o nazismo quanto o fascismo se definiram antes de mais nada como movimento). Mas também na arte e nas ciências – por exemplo, quando em 1914 Freud procurava um nome para sua criação, não sabia se a chamava escola psicanalítica até que, a um certo ponto, decidiu chamá-la de movimento psicanalítico. Em todo aspecto da cultura os movimentos substituem as escolas e as instituições. É nesse contexto que também na Igreja Católica começa esse grande movimento chamado movimento litúrgico. A aproximação que fiz entre a prática das vanguardas e a liturgia, entre os movimentos da vanguarda e o movimento litúrgico, não é um pretexto. Na base da doutrina desse monge, Casel, está a ideia de que a liturgia, a atividade litúrgica – notem que a palavra pertence originariamente ao vocabulário político; etimologicamente significa obra pública, obra para o povo –, seja de modo essencial um mistério. Mistério, no entanto, não significa um ensinamento escondido, uma doutrina secreta e assim por diante. Na origem, segundo Casel, como nos mistérios de Elêusis que eram celebrados na Grécia, mistério significa uma atividade, uma práxis, uma espécie de ação teatral feita de gestos e palavras que se realizam no tempo e no mundo para a salvação do homem. Segundo Casel, o cristianismo não é uma religião, uma confissão no sentido moderno do termo, isto é, um conjunto de verdades e de dogmas que se trata de reconhecer e professar. Em absoluto não; a religião cristã é um mistério, isto é, uma ação litúrgica, uma performance cujos atores são Cristo e seu corpo místico, ou seja, a Igreja. E tal ação é sim uma práxis especial, mas ao mesmo tempo constitui a atividade humana mais universal e mais verdadeira, na qual em jogo está a salvação dos que a realizam e daqueles que dela participam. Vejam que a liturgia, nessa situação, deixa de ser a celebração de um rito exterior que tem a verdade em outro lugar, num dogma. Ao contrário, segundo Casel, apenas na realização aqui e agora dessa ação absolutamente performática que realiza a cada instante o que significa, o crente pode encontrar a sua verdade e a sua salvação. De acordo com Casel, por exemplo, a missa, a celebração do sacrifício eucarístico, não é uma representação ou uma comemoração do evento salvífico, mas é ela mesma o evento. Não se trata de uma representação [rapresentazione] em sentido mimético, mas de uma reapresentação [ripresentazione], na qual a ação salvífica de Cristo é tornada efetivamente presente por meio dos símbolos e das imagens que a significam. Por isso se diz que a ação litúrgica age ex opere operato, pelo próprio fato de ser realizada, naquele momento e naquele lugar, de modo independente, por exemplo, das qualidades morais do celebrante (vocês sabem que, por exemplo, se um padre é um criminoso e quer batizar uma mulher para abusar dela, o batismo é, entretanto, válido justo por que é independente do ator, age de maneira performática). É a partir dessa concepção mistérica da religião, segundo Casel, que gostaria de lhes propor minha hipótese de que entre a ação sagrada da liturgia e a práxis das vanguardas artísticas da assim chamada arte contemporânea haja algo mais do que uma simples analogia. É fato que uma especial atenção por parte dos artistas já tinha aparecido nos últimos decênios do século XIX, em particular nos movimentos artísticos e literários que se definem absolutamente com termos vagos como simbolismo, estetismo e decadentismo que, como vocês sabem, são parte do caldo cultural do qual nascerão as vanguardas. Pari passu ao processo que com a primeira aparição da indústria cultural seguidora de uma arte pura em direção às margens das produções sociais, artistas e poetas – basta tocar no nome de Mallarmé – começam a observar a sua prática como a celebração de uma liturgia. Liturgia no sentido próprio do termo, enquanto comporta tanto uma dimensão soteriológica de salvação, na qual parecerá estar em questão exatamente a salvação espiritual do artista, quanto uma dimensão performática, na qual a atividade criativa assume a forma de um verdadeiro ritual, desvinculado de todo significado social e eficaz pelo simples fato de ser celebrado. Em todo caso, é justo esse segundo aspecto que foi assumido de modo decidido pelas vanguardas do século XX, que constituem a extremização daqueles movimentos – e, algumas vezes, são também uma paródia dos movimentos. Creio não anunciar nada de extravagante sugerindo a hipótese de que a vanguarda e os seus modelos contemporâneos devem ser lidos como a lúcida e com frequência consciente retomada de um paradigma essencialmente litúrgico. Como, segundo Casel, a celebração litúrgica não é uma imitação ou uma representação do evento salvífico mas é ela mesma o evento, do mesmo modo, o que define a práxis da vanguarda do século XX e de seus modelos contemporâneos é o decidido abandono do paradigma mimético representativo em nome de uma pretensão genuinamente pragmática. Trata-se de uma performance, de uma ação. A ação de um artista se emancipa do seu tradicional fim produtivo, ou reprodutivo, e torna-se uma performance absoluta – uma pura liturgia que coincide com a própria celebração e é eficaz ex opere operato e não pelas qualidades do artista.
Numa célebre passagem da Ética, Aristóteles tinha distinguido o fazer, poiesis, que objetiva um fim externo, uma obra, da práxis, que tem em si mesma o seu fim. Entre esses dois núcleos, liturgia e performance artística, insere-se uma forma de híbrido, de terceiro, no qual a própria ação quer representar-se como obra.
Neste ponto, para o terceiro e último momento desta minha sumária arqueologia, gostaria de convidá-los a ir a Nova Iorque, por volta de 1916. Aí há um senhor, que não saberia como definir – talvez um monge, como Casel –, de nome Marcel Duchamp que com uma escolha – por certo, nesse ato não um artista – inventa o ready-made. Vocês sabem que Duchamp, propondo aqueles atos existenciais e não obras de arte, que são os ready-made, sabia perfeitamente que não operava como um artista. Sabia também que a estrada da arte tinha sido bloqueada por um obstáculo intransponível que era a própria arte, então constituída pela estética como uma realidade autônoma. Nos termos desta minha arqueologia, diria que Duchamp tinha compreendido que o que bloqueava a arte era exatamente o que defini como máquina artística, que havia atingido, a partir da liturgia da vanguarda, a sua massa crítica. O que faz Duchamp para explodir ou ao menos desativar a máquina obra-artista-operação criativa? Ele toma um objeto qualquer de uso, ou mesmo um mictório, e, introduzindo-o num museu força-o a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente, exceto pelo breve instante que dura no efeito de estranhamento e da surpresa, na realidade, nada surge aqui à presença. Não a obra, pois se trata de um objeto de uso comum produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de modo algum poiesis, produção, e nem mesmo o artista, pois aquele que assina com um irônico nome falso o mictório não age como artista, mas como filósofo, como crítico ou, como Duchamp amava dizer, como alguém que respira, um simples vivente. Como vocês sabem, o que ao contrário depois surgiu é uma associação, infelizmente até agora ativa, de hábeis especuladores e espertalhões que transformaram o ready-made em uma obra de arte. Não que eles tenham conseguido recolocar verdadeiramente em movimento a máquina artística – e esta, diria, gira hoje no vazio –, mas a aparência de movimento consegue movimentar, espero que ainda não por muito tempo, os templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea.
Gostaria agora de concluir esta minha brevíssima arqueologia sugerindo-lhes, de algum modo, abandonar um pouco a máquina artística ao seu destino. E, com isso, abandonar também a ideia de que haja alguma coisa como uma suprema atividade artística do homem que, por meio de um sujeito, realiza-se numa obra ou numa energeia e que extraia destas o seu incomparável valor. Diria que é preciso redesenhar desde o início o mapa do espaço em que a modernidade situou o sujeito e as suas faculdades. Artista ou poeta não é quem tem a potência ou a faculdade de criar, que um belo dia, por meio de um ato de vontade ou obedecendo uma injunção divina, decide, como o deus dos teólogos, não se sabe como e por quê, executar algo. Assim como o poeta e o pintor, também o carpinteiro, o sapateiro, o flautista, enfim, todo homem, não são o titular transcendente de uma capacidade de agir ou de produzir obras. Ao contrário, são viventes que no uso, e apenas no uso de seus membros – como do mundo que os circunda – fazem experiência de si e constituem-se como formas-de-vida. A arte é apenas o modo no qual o anônimo que chamamos artista, mantendo-se em constante em relação com uma prática, procura constituir a sua vida como uma forma-de-vida. A vida do pintor, do músico, do carpinteiro, nas quais, como em toda forma-de-vida, está em questão nada menos do que a sua felicidade. Gostaria de concluir com as palavras de um grande pintor de Scicli, que à pergunta “para o senhor, Piero Guccione, pintar é mais que viver?”, apenas respondeu: “Pintar é certamente para mim a única forma de vida, a única forma que tenho para defender-me da vida.”      
     

Conferência de Giorgio Agamben em Scicli, Sicília, em 06 de agosto de 2012. Transliteração e tradução ao português: Vinícius Nicastro Honesko. 

O vídeo da conferência está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=A7NrMgIoEfg

Imagem: Piero Guccione. Interno, esterno, 1962.                      

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