domingo, 18 de novembro de 2012

O retrato dos Arnolfini


Que ninguém ouse duvidar da verdade deste ícone: "Johannes de Eyck fuit hic 1434", o maior pintor de Flandres dele é testemunha. A extraordinária potência da sua téchne, que soava prodigiosa tanto aos cavalheiros do outono medieval da corte de Borgonha quanto aos doutos humanistas e aos banqueiros e mercadores da Toscana, não apenas "faz", mas desvela, manifesta o real, abre as cortinas que o escondia. Ao seu olhar nada resiste, nenhum ente é suficientemente distante, nada suficientemente infinitesimal para não poder ser trazido à luz. Vibrações imperceptíveis do seu pincel e dos seus pigmentos descobrem qualquer detalhe e tudo colocam sub specie aeternitatis. A "miséria" do nosso olho é como que abolida: próximo e distante, luz e sombra, o brilho de uma pérola assim como as amplas superfície de um manto se correspondem e ressoam ao mesmo tempo. Basta a pupila do decrépito cônego Georgius de Pala refletir a Virgem no trono, speciosior sole, candidez da Luz eterna na grande mesa de Bruges. Todo átomo de matéria pode ser "bom" para ser como espelho de um mundo. Todo ente chega à potência de speculum sine macula. Tudo fulgura a partir do esplendor da pedra preciosa quando ela é perfeitamente cortada.
E assim, como partícipe de pleno direito da luz de um tal mundo, quis ser retratado o mercador de Lucca Giovanni Arnolfini junto à esposa Giovanna Cenami. O mercador tinha sido capaz de muito navegar, antevendo as coisas futuras e prestando atenção nas visões (para exprimir-se com as palavras da famosa epístola de Marsilio Ficino a Giovanni Rucellai), e então, por fim, da sua prudência, paciência, magnitude, da sua virtus, da sua merecida paz, chamava a dar testemunho eterno o maior dos pintores. O mercador pedia verdadeiramente o próprio ícone, a imagem do próprio rosto verdadeiro, além das máscaras da vida aparente e da fadiga que custa para adaptar-se aos seus casos. Sabe bem o mercador - mas então é o fundamento da própria existência que quer que se exprima, aquela razão de ser que a torna exemplar e como que intransponível.
Sub metaphoris corporalium o pintor devia revelar a força do espírito que tinha sido capaz de atingir o equilíbrio, construir a permanência, medir com todo cuidado o espaço, merecer a boa fortuna. E como os santos nos "velhos" ícones estão em Nenhum-lugar, envoltos pela luz escatológica, essa nova figura de uma nova santidade devia aparecer no mais sagrado dos lugares, no seu próprio templo, na casa, ou melhor, no quarto [na estância] onde ele, sozinho com sua mulher, celebra os ritos mais secretos e necessários. É ali que ele convidou o pintor junto de uma outra testemunha, cuja figura se entrevê no espelho convexo pendurado na parede.
E eis o evento: um solene gesto de confirmação, um juramento sagrado e inviolável. Giovanni levanta a mão direita (fides levata) e com a outra apoia e mostra a mão da mulher que a ele se entrega. Nela vemos a palma da mão puríssima, que nada esconde, que nada possui. Com a outra mão, Giovanna "protege" o próprio ventre, promessa de vida. O ritmo que essas mãos desenham entrelaça toda a obra: daquela levantada, no alto, ao lado do perfil do homem, até o aéreo encontro das duas palmas, "sobe-se" mais uma vez ao dorso fusiforme da mão esquerda de Giovanna; eis a "progressão": pronúncia da promessa - benção - sua escuta - e, por fim, o seu custodiar-se no ventre da mulher.
Giovanni jura a própria fidelidade e a mulher, anima nuda, crê perfeitamente nele. Giovanni não tem coração dividido, não é homem de duas cabeças. Tem fé, é fiel, e, por isso, será estável (Is, 7,9). Erigido sobre o fundamentum inconcussum da própria fé, dá certeza e fé. A mulher a ele se fia já que ele está, ontologicamente, parado sobre a própria fé. Como poderia ela crer em quem fosse inquieto no seu coração? Como crer em quem poderia sempre cair nos pecados do desespero e da acedia? Giovanni é imagem da fé; isso é o "espiritual" que a sua aparência significa. E fé é fundamento da esperança. A mulher é aquela que espera porque se baseia sobre a fé em quem é perfeitamente fiel. A relação entre as duas figuras exprime, portanto, sub metaphoris corporalium, as núpcias entre Fé e Esperança.
Que se trate dessas núpcias diz todo verbum dessa obra. Uma única vela acesa: o lumen do Filho que o candelabrum da Virgem segura ("ipsa enim est candelabrum et ipsa est lucerna, Christus, Mariae filius, est candela accensa"). Como a luz do dia que entra pela janela ilumina a aparência do evento, assim aquela vela, que sempre arde e tudo vê, manifesta-lhe o sentido interior: esse homem é autêntica certeza de fé e a mulher é verdadeira esperança. Por isso suas figuras podem ser colhidas no speculum sine macula colocado sobre a parede às suas costas, speculum humanae salvationis, ao redor do qual giram as imagens dos momentos da Paixão. Espelho que não mente, espelho de vidro puro, transparentíssimo, do qual são feitos vasos e as jarras que de modo tão frequente acompanham os ícones de Maria: como a luz atravessa o vidro sem quebrá-lo, assim Maria deu a luz ao mundo.
Nenhum signo está "só". Nenhum "joga" por si. Já que jamais quem tem fé está só, e isso que toca ou diz respeito a todo ente, assume valor do símbolo. Aqueles frutos inteiros, maduros sobre o peitoril, são gaudia paradisii, antes da mordida fatal. Os calçados deixados de lado lembram que esse lugar é terra santa (Ex, 3,5). Nada que seja profano, ou melhor, nada de profano que não se transfigure no "colar" de contas e na luz que a revela. O retrato do mercador toscano, que a devotio moderna "converteu", eleva-se à simbólica dignidade e, a cada instante, o símbolo se encarna. Todo ente é "salvo"- e, por isso, "belo", no sentido etimológico do kalón grego. O meu mundo, este mundo - diz o mercador e testemunha o Mestre - não está condenado a morrer. É meditatio vitae.
Mas é próprio das obras extremas, como esta, constranger a uma interrogação que as ultrapassa. Uma vez que, quando uma obra "cumpre" um mundo, é necessário mostrar também seu limite. Realmente, a fé do homem consiste unicamente no Amém que a sua mão levantada pronuncia e a aliança com a mulher, que aqui é celebrada, por certo resolveu em si a inquietude dos anos do êxodo? Suspendamos por um instante a busca dos "significados" da obra e "lembremos" a primeira e claríssima nítida impressão que dela tínhamos recebido: uma infinita distância se concentra, aqui, no sagrado recinto do quarto nupcial. O que sabe o olhar do homem a respeito da presença da mulher? Só de maneira imperceptível sua cabeça "dobra-se" para o lado de Giovanna. E Giovanna, por sua vez, toca apenas com seu olhar a figura do homem, mas parece também, a cada vez, retrair-se, como a Virgem de tantas Anunciações diante ao Anjo. Uma distância que não é colmatada une essas figuras. Modéstia de ambas? Querem ambas obedecer apenas à própria forma, a sua medida e aos seus limites? Modéstia apenas? É realmente tão estranha à cena toda dissonância? Decerto, a mais perfeita solius mentis inspectio pode ter imaginado a forma da cabeça de Giovanni (como será para os rostos e chapéus de Piero), mas se observarmos separadamente a parte superior e a inferior do rosto uma potente dúvida nos surge: duro, impenetrável, apathés aparenta seu olhar, enquanto um levíssimo sorriso parece animar os lábios joviais. No olhar ele já tudo consumou, tudo pode observar com distanciamento e desencanto: éthos da renúncia, melancolia viril. Sobre os lábios uma sombra de sorriso move, ao contrário, lentamente para a esperança da mulher. Também os Anjos da Anunciação às vezes mostram essa facies. 
E poderá, então, Giovanna confiar-se de modo sereno a um tal Anjo? Ela não é dupla no rosto: o mesmo sorriso dos lábios revive a modéstia do olhar. Gostaria de pedir, talvez - mas a mão que jura do homem é a mesma que lhe impõe silêncio. Equidistante do centro do espelho, que reflete e em si concentra a cena, estão a mão levantada de Arnolfini e a boca da sua esposa. A sua conversa está custodiada no mais fechado silêncio, a sua relação na mais firme distância. Que as bocas permaneçam seladas - tal é o sigilo autêntico das núpcias. A boca fechada, o olhar que não se encontra, os olhos voltados a um invisível Não-onde (e como poderia ser diferente, já que é do Invisível que a fé argumenta?): a tudo isso deve confiar-se a Esperança - quia mitis est. Humilde, deverá obedecer ao jugo dessa severa e dura certeza de fé, entrelaçada entre renúncia e silêncio. Será leve o seu jugo?
Falta uma palavra para que nisso se possa crer. Falta a Palavra. Fé e Esperança aqui aparecem sozinhas. E, por isso, distantes, inexoravelmente distantes, ainda que na ordem comum do seu lugar. Onde se manifesta e como se exprime o que é mais do que tais palavras e sem a qual elas são apenas nada? Onde lampeja, no recinto sagrado do mercador, Agape e Caritas? É essa a sua "estância" ou não se mede aqui toda a sua di-stância? Talvez apenas sobre a palma da mão vazia da mulher; talvez apenas por meio das imperceptíveis dissonâncias que a "grande forma" dessa obra esconde re-velando intuamos os seus traços.
Ou talvez devemos dizer: justo aqui, onde o símbolo quer perfeitamente se encarnar, onde significado e aparência querem vir às "justas núpcias", justo aqui Agape deve transformar-se em inapreensível ideia. Spiritualia sub metaphoris corporalium, dissemos - mas qual pode ser a metáfora de Agape? Como "fechar" Agape em uma imagem? Não se resolve Agape no sopro de luz que tudo anima e que em nenhum ponto verdadeiramente aparece? Podia compreendê-lo o mercador Arnolfini? Podia ou poderá jamais compreendê-lo qualquer téchne - mesmo a dos antigos Mestres? Eles não têm pares no representar, manifestar, produzir. Nisso consiste a sua arte. E o mercador Giovanni Arnolini queria "imitá-la". De tudo pode ser desvelamento, tudo pode aletheúein a téchne de Johannes de Eyck, toda coisa poderá trazer à luz. Mas não Agape. Esperança e Fé são representáveis. Mas da suas núpcias Agape participa na forma da ausência. 
A medida de uma fria paixão domina a cena. Daí pode ter início apenas um amor intellectualis, uma caritas more geometrico demonstrata, em suma, uma Ethica. Assim edifica no coração e na mente dos mercadores da Toscana a devotio moderna dos flamengos. E todo "ardor seráfico" se retira - in interiore mulieris, talvez, na ou-topía do sorriso de Giovanna, no vazio da palma de sua mão.

Massimo Cacciari. Il Ritratto degli Arnolfini. In.: Tre Icone. Milano: Adelphi, 2008. pp. 43-51. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko).

Imagem: Jan van Eyck. O Retrato dos Arnolfini. 1434. National Gallery, London.
            

Um comentário:

Anônimo disse...

ótimo texto do Cacciari, Vinicius, obrigado! abração! Davi.