terça-feira, 20 de novembro de 2012

Da Crítica da Razão Cínica


Desde que a sociedade burguesa começou a estabelecer a ponte entre o saber de cima e o aqui debaixo, e anunciou a ambição de erigir a sua imagem de mundo totalmente com base no realismo, os extremos fundiram-se um no outro. Hoje, o cínico apresenta-se como um tipo das massas: um caráter social medíocre na superestrutura elevada. Ele é o tipo vulgar - não só porque a civilização industrial avançada produz o solitário amargurado como fenômeno de massa. Pelo contrário, as próprias cidades grandes tornaram-se borras difusas, cuja força para criar figuras públicas universalmente aceitas se perdeu. A pressão por individualização diminuiu na atmosfera da cidade grande e na mídia. Assim, o cínico moderno - como há na Alemanha em grande quantidade, principalmente desde a Primeira Guerra Mundial - não fica mais à margem. Ele definitivamente não entra em cena como um tipo plasticamente evoluído. O cínico de massa moderno perde o ímpeto individual e poupa-se do risco de evidenciar-se. Há muito renunciou a expor-se à atenção e ao escárnio alheio para provar sua originalidade. O homem com o "olhar mau" e claro desaparece na multidão; apenas o anonimato torna-se o grande espaço do descaminho cínico. O cínico moderno é um associal integrado, páreo para qualquer hippie na falta de ilusões subconscientes. A ele próprio, seu olhar mau e claro não surge como defeito pessoal ou como mania amoral a ser justificada por ele mesmo. Instintivamente, ele compreende seu modo de existir não mais como algo que tem a ver com ser-mau, mas enquanto partícipe de uma maneira de ver, coletiva e realisticamente conformada. Essa é a forma corrente por meio da qual as pessoas esclarecidas não se veem como aquelas que continuam sendo tolas. Parece mesmo haver algo de saudável nisso - exatamente em favor disso fala a vontade de autoconservação. Trata-se da postura daqueles que se conscientizaram que os tempos da vaidade se foram.
Psicologicamente, o cínico do presente deixa-se compreender como um caso limite de melancolia, que mantém seus sintomas depressivos sob controle e, em certa medida, pode permanecer apto para o trabalho. Sim, é isso que importa ao cinismo moderno: a capacidade de trabalho de seus representantes - apesar de tudo, e mesmo depois de tudo. Há muito os postos-chave da sociedade pertencem ao cinismo difuso, em diretorias, parlamentos, conselhos, gerências, leitorados, consultórios, faculdades, chancelarias e redações. Certa amargura refinada acompanha seu agir. Pois cínicos não são bobos, e olham simplesmente para o nada e novamente para o nada a que tudo conduz. Entretanto, seu aparato psíquico é suficientemente elástico para integrar em si, como fator de sobrevivência, a dúvida perene acerca da própria atividade. Sabem o que fazem, mas o fazem porque as ramificações objetivas e os impulsos de autoconservação a curto prazo falam a mesma língua e lhes dizem que, se assim é, assim deveria ser. Dizem-lhes também que, de qualquer maneira, ainda que eles não o fizessem, outros o fariam, talvez pior. Desse modo, o novo cinismo integrado tem frequentemente o sentimento compreensível de ser vítima e fazer sacrifícios. Sob a fachada dura desse jogo árduo, ele facilmente leva muitos a infortúnios nocivos e às lágrimas. Nisso há algo de tristeza acerca de uma "inocência perdida" - a tristeza de um saber melhor, contra o qual todo agir e todo trabalho estão direcionados. 
Isso resulta em nossa primeira definição: cinismo é a falsa consciência esclarecida. Ele é a consciência infeliz modernizada, da qual o Esclarecimento se ocupa ao mesmo tempo com êxito e em vão. Ele aprendeu sua lição sobre o Esclarecimento, mas não a consumou, nem a pôde consumar. Ao mesmo tempo bem instituída e miserável, essa consciência não se sente mais aturdida por nenhuma crítica ideológica; sua falsidade já está reflexivamente conformada.
"Falsa consciência esclarecida": escolher tal formulação significa aparentemente desferir um golpe contra a tradição do Esclarecimento. A frase mesma é um cinismo em estado cristalino. Contudo, ela manifesta uma pretenção objetiva de validação; o ensaio em questão desenvolve o teor dessa pretensão e sua necessidade. É lógico que se trata de um paradoxo, pois como é que uma consciência esclarecida poderia ser ao mesmo tempo falsa? É disso que se trata aqui.
Agir contra o "saber melhor" é hoje a relação superestrutural em nível global; tal agir sabe-se sem ilusões e, apesar disso, depreciado pelo "poder das coisas". Assim, o que na lógica é tomado como paradoxo e na literatura como chiste surge, na realidade, como um estado de coisas. Isso constitui um novo posicionamento da consciência diante da "objetividade".
"Falsa consciência esclarecida": essa fórmula não se quer episódica, mas um ponto de partida sistemático, como modelo diagnóstico. Assim, ela se obriga a revisar o Esclarecimento; deve demonstrar claramente sua relação com o que a tradição chama de "falsa consciência"; mais ainda, deve reconsiderar a trajetória do Esclarecimento e o trabalho da crítica ideológica em cujo decurso foi possível que a "falsa consciência" absorvesse o Esclarecimento. Tivesse o ensaio um propósito histórico, este seria o de descrever a modernização da falsa consciência. Mas o propósito da apresentação como um todo não é histórico, mas fisionômico: trata-se da estrutura de uma falsa consciência reflexivamente suprimida. Entretanto, gostaria de salientar que a estrutura não é assimilável sem situá-la em uma história política de reflexões contenciosas. 
Sem sarcasmo, nos dias de hoje não pode haver relação saudável entre o Esclarecimento e sua própria história. Só temos a escolha entre um pessimismo "lealmente" vinculado às origens, que lembra a decadência, e uma falta de respeito serena na continuação das tarefas primordiais. Diante disso, só na infidelidade resta fidelidade ao Esclarecimento. Em parte, isso se explica pela postura dos herdeiros que se voltam aos tempos "heroicos" e mantêm-se necessariamente mais céticos diante dos resultados. No ser-herdeiro há sempre certo "cinismo postural" - típico das histórias de herança dos capitais de família. Claro que essa postura retrospectiva não esclarece por si só o tom singular do cinismo moderno. No Esclarecimento, a decepção não é de forma alguma apenas um sinal de que os epígonos podem, e devem, ser mais críticos que os fundadores. O ranço característico do cinismo moderno é de natureza essencial - uma disposição da consciência que padece de esclarecimento e que, instruída pela experiência histórica, não admite otimismos baratos. Novos valores? Não, obrigado. Após as esperanças obstinadas, propala-se a monotonia dos egoísmos. No cinismo novo coopera uma negatividade aclarada que quase não nutre esperanças por si mesma, quando muito um pouco de ironia e compaixão.
Em última instância, trata-se dos limites sociais e existenciais do Esclarecimento. Imposições da sobrevivência e desejos de autoafirmação humilharam a consciência esclarecida. Ela padece da imposição de aceitar relações previamente dadas, das quais desconfia, de ter que se adaptar a elas e, por fim, até mesmo resolver seus negócios. 
Para sobreviver, deve-se ir para a escola da realidade. Por certo. A linguagem dos que têm as melhores intenções chama isso de tornar-se adulto. E há nisso algo de verdadeiro. Mas não é tudo. Sempre um tanto inquieta e irascível, a consciência partícipe olha ao redor à procura de ingenuidades perdidas, para as quais não há mais retorno, porque conscientizações são irreversíveis. 
Foi certamente Gottfried Benn, ele mesmo um dos mais proeminentes porta-vozes da estrutura moderna do cinismo, que forneceu a esse mesmo cinismo a formulação do século, inequívoca e desavergonhada: "Ser tolo e ter trabalho: isso é a felicidade." A inversão do sentido da frase apenas demonstra seu conteúdo pleno: ser inteligente e, todavia, realizar seu trabalho - eis aí a consciência infeliz em sua forma modernizada, acometida de esclarecimento. A consciência não pode tornar a ser "tola" e ingênua - inocência não se restabelece. A consciência apega-se à fé na força de coesão entre as relações às quais se vê atrelada por seu instinto de autoconservação. Se assim for, que seja. Com um salário líquido de dois mil marcos por mês, começa silencioso o Contra-Esclarecimento; ele aposta que cada um que tenha algo a perder arranje-se por conta própria com sua consciência infeliz ou a encubra com "atividades engajadas".

Peter Sloterdijk. Crítica da Razão Cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendonça Cardozo, Ricardo Hiendlmayer. pp. 32-36.

Imagem: Heinrich Hoerle. As máscaras. 1929. 

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