terça-feira, 1 de outubro de 2013

Dom e dever



Entrevista com Roberto Esposito
O senhor elaborou o conceito de “impolítico” compreendido não como anti-política, mas como tentativa de uma política mais radical...
O tema do impolítico nasce da sensação de que as categorias do léxico político contemporâneo estejam, de algum modo, exauridas e não iluminam realmente aquele âmbito do agir humano que chamamos “política”. As causas de tais exaurimentos são múltiplas e têm diversas origens, mas encontram um ponto de enraizamento irruptivo na crise dos anos 20 e 30 deste século [séc. XX], que não por acaso é o período em que, no âmbito da filosofia, Heidegger opera a desconstrução da metafísica e Wittgenstein realiza uma tentativa similar no âmbito da linguagem científica. Naqueles anos, na obra de escritores como Hermann Broch ou Maurice Blanchot, de filósofos como Simone Weil, Georges Bataille e Hannah Arendt, de teólogos como Karl Barth, emerge uma linha de pensamento que, ainda que na extrema diversidade existente entre eles, procura tomar os conceitos e a realidade da política “pelas costas”, isto é, observá-los também desde o lado que normalmente o pensamento político clássico deixa à sombra ou, de modo decisivo, esconde. Essa tentativa é justamente o que defini “impolítico”, escolhendo tal termo também para marcar a diferença do que emerge desses autores em relação a outras noções, em aparência afins, como, p.ex., a anti-política. A relação impolítica, como aliás demonstram as biografias de quase todos os autores que pesquisei, não é, com efeito, contrária à política, não é portanto anti-política, mas é uma forma de radicalização do engajamento político no pensamento. O impolítico, em substância, é a relação intelectual que por um lado observa a realidade política – isto é, os conflitos de interesse, o poder – de modo muito realista, enquanto, por outro lado, não considera essa realidade mesma um valor em si, não lhe fazendo nenhuma apologia e, assim, ausentando toda teologia e filosofia da política. O impolítico, em suma, é uma maneira desconstrutiva de observar a política que traz à luz como, geralmente, a tradição filosófico-política sempre insistiu no problema da ordem – isto é, em como ordenar a sociedade –, em qual seja o melhor regime e, assim, sempre acabou por evitar a questão de fundo da própria política, qual seja, o conflito. No pensamento filosófico-político moderno, por exemplo, já em Hobbes, que é seu iniciador, a irredutibilidade do conflito é substancialmente recalcada. Hobbes diz, com efeito, que para que haja ordem todo tipo de conflito deve desaparecer, portanto, é preciso um soberano que exercite o poder sem deixar espaço não apenas a alguma forma de conflitualidade, mas, de fato, a qualquer forma de agregação. A ordem, desse modo, foi pensada como radicalmente contraposta ao conflito que, assim, foi visto como eliminável. Ao contrário dessa concepção, o impolítico procura fazer reemergir a realidade, a irredutibilidade, do conflito pois, como já dizia Platão, “em cada homem, em cada alma, há uma luta entre diversas partes, cavalos que levam a biga em direções opostas”. O conflito, como sabiam também santo Agostinho ou Maquiavel, é uma realidade originária, um costume irrenunciável da realidade e da civitas, pois está dentro de cada um de nós.

Mas a ideia do contrato, como é compreendida pelo liberalismo, não leva em conta essa originalidade e irredutibilidade do conflito?
A ideia do contrato, formulada por Hobbes, por Rousseau e por outros pensadores, e que é em grande parte transferida ao liberalismo, parte do pressuposto de que originariamente, ao menos do ponto de vista lógico, os homens entre si estejam numa posição de absoluta igualdade e podem, desse modo, firmar um contrato que, como tal, portanto, implica uma substancial paridade entre os contraentes. Autores como o já citado Maquiavel, Vico e o próprio Hegel, objetam contra tal concepção dizendo que, assim como na realidade essa igualdade originária jamais existiu, é preciso estar ciente de que as relações de força precedem e determinam a forma da contratação, fato que, dentre outras coisas, significa que o direito tem a ver com a força. Tendo em conta tudo isso, é preciso então reconhecer que por certo o liberalismo propõe-se como uma teoria que elimina, ou ao menos neutraliza, as relações de força por meio da lei, mas isso não suprime o fato de que, na realidade, mesmo o liberalismo de algum modo legitima as relações de força preexistentes. Essa legitimação é devida também ao fato de que o liberalismo coloque como seu fundamento um modelo individualista do ser humano, e o modelo individualista é, ao menos no início, um modelo não solidário. Não por acaso Hobbes sustenta que antes do contrato as relações entre os indivíduos sejam aquelas do homo homini lupus, isto é, relações agressivas. Também na origem da tradição liberal, portanto, há essa consciência de que os indivíduos estão em perpétua competição, e, com efeito, o liberalismo ao mesmo tempo certamente regula e legitima as  forças existentes. No liberalismo esses dois aspectos são, para mim, inseparáveis, mesmo se tendo a acentuar o segundo, sobretudo em relação àqueles que apresentam o liberalismo como um Éden, como a solução definitiva.

Se o conflito não é de nenhum modo reduzível, e se as relações sociais são portanto marcadas pela força, então também a democracia só pode ser uma técnica de gestão de tal conflito e não um sistema centrado sobre valores partilhados...
Também com respeito à democracia, como ao contrato social, existem duas grandes opções teóricas. Uma é aquela que, a partir de Rousseau, chegando, por certos caminhos, também a Marx, considera a democracia positivamente, entendendo-a como o sistema social baseado sobre o valor da igualdade. Por consequência, tal sistema seria mais do que um simples sistema de regras, pois conteria em si uma opção, um valor, sempre por ser atingido e que, enquanto tal, orienta-o. A outra linha de pensamento, em particular Weber, mas também Kelsen, Schumpeter e tantos outros, sustenta, ao invés, que a democracia não pode ser centrada sobre um valor porque não é possível definir, justo por reconhecer a igualdade entre os membros da sociedade, qual seja o valor supremo enquanto faltar qualquer instância superior. Para tais pensadores, portanto, a democracia só pode ser uma técnica, isto é, um conjunto de regras e de procedimentos que regulam o confronto político, em cujo interior os valores sustentados pelos diversos grupos sociais remetem-se entre si. Creio que o que deve ser evidenciado, em relação a essas duas diferentes opções, é que entender a democracia como valor – ou ainda, como o maior valor a ser cumprido –, mesmo que ela seja o contrário do totalitarismo, pode causar o risco de um deslocamento para uma forma totalitária. Isso acontece porque compreender a democracia como a encarnação de um valor implica, de algum modo, que deva haver alguém que assim encarne aquele valor e o faça ser respeitado também por aqueles que não se sentem representados por tal valor.
Dito isso, entretanto, não se pode esquecer que também a democracia compreendida como técnica, como conjunto de regras ou de procedimentos, tem fortíssimos limites. Não se pode esquecer, com efeito, que mesmo a técnica não é neutra, antes de mais nada porque existe quem tem os instrumentos práticos e conceituais para gerenciá-la e quem, por outro lado, de tais instrumentos está privado. Exatamente por considerar os riscos e os limites dessas diversas concepções da democracia que nasce a minha tese, que, por um lado, interpreta a democracia de modo essencial como um conjunto de regras, mas, por outro, sustenta que justo por isso ela sempre deve ter como pano de fundo um chamado a um “outro de si”, isto é, o chamado impolítico à comunidade. O que procuro indicar, em suma, é um modo de manter a própria democracia em um difícil equilíbrio e impedir tanto que ela seja vista como um valor insuperável quanto que o simples fato de ser uma técnica, que por vezes gerencia os valores sociais, possa ser visto como uma solução em si.

Mas falar de “comunidade” não é de per se contraditório em relação à ideia de política, de polis?
Ao contrário, é preciso estar atento em relação aos termos. A polis, a esfera política, é o âmbito, o espaço público, que se constitui colocando em relação entre si os sujeitos, os indivíduos enquanto tal, sem se perguntar de onde tais indivíduos vêm, onde se origina a sua “consistência” que a polis deveria colocar em relação. A comunidade, ao menos no modo como procurei delineá-la no meu último livro, é, ao contrário, aquilo que coloca em crise a forma do sujeito, mas que a este também é subjacente, pois há comunidade onde algo da subjetividade, compreendida como uma forma plena e realizada, rompe-se, e é apenas nessa ruptura que realmente se situa a comunicação. A comunicação não pode ser, e não é, aquela da esfera pública, pois na esfera pública a comunicação vem como contratação – no melhor dos casos, como diálogo, isto é, como reconhecimento recíproco –, enquanto o pensamento radical da comunidade implica algo a mais, algo que precede a própria constituição da subjetividade. Em suma, comunidade é o munus, isto é, o “dom” que é também “dever”, que se mostra quando os sujeitos sentem que não são realmente “proprietários” de si mesmos, que não são “feitos por si”, mas que são “criaturas”; que aquilo que os faz ser “sujeitos” não depende deles e que, portanto, a identidade não é uma propriedade. A comunidade, desse modo, sempre tem a ver com o impróprio, com o anônimo, e justo porque é dom e dever anônimo, por um lado, jamais existe, jamais é plenamente realizada, enquanto, por outro lado, sempre existe, pois originariamente somos em comum, somos lançados em um mundo que nos precede.
Por tudo isso, a comunidade não é realizável como forma política – quando isso aconteceu, quando uma forma política diz de si mesma “Eu sou a comunidade, eu a realizo plenamente”, como sabemos, chegou-se ao totalitarismo, mas sempre por isso, todavia, a comunidade é também o horizonte que a política deveria afrontar de modo contínuo.
De fato, se devêssemos procurar um lugar onde a comunidade pode emergir, é mais fácil que tal lugar seja aquele em que haja situações de extremo mal estar, por exemplo, um campo de refugiados, mais do que em um parlamento.
O confronto parlamentar, com efeito, é possível apenas enquanto se baseia na identificação dos sujeitos individuais com seu papel – parlamentares, deputados, líderes de partido –, de modo que é um confronto no qual a identidade não está em jogo, justo por basear-se naquela identidade, que, pelo contrário, eles falam e contratam. De modo oposto, em um encontro improvisado, em um encontro entre indigentes em um hospital, por exemplo, as identidades não são mais máscaras, não exprimem mais um papel, e é exatamente quando a institucionalidade se fragmenta, rompe-se, que a comunidade, destituindo a instituição, emerge. Tudo isso no plano teórico, pois nas relações normais certa institucionalidade está sempre presente, mas o importante é a consciência de que essa institucionalidade não é o todo.

O seu apelo à comunidade como horizonte da política é, em certo sentido, um modo para manter constantemente aberto o jogo entre o que define os indivíduos e a representação que deles é feita...
Que o nosso “existir” [esserci] seja sempre um “ser com”[essere con], isto é, que nenhum de nós tenha em si a sua origem, parece-me um fato evidente que reivindico e defendo, mas é também verdade que, justo em virtude desse originário “ser com”, esse nosso próprio “existir”[esserci] apenas pode ser sempre representado. Dizíamos antes: não se sai do papel, daquilo que somos para os outros, e essa impossibilidade faz parte da nossa historicidade, esta que, entretanto, não exaure o elemento originário do nosso “existir” [esserci]. Isso, em outras palavras, quer dizer que no ato do nascimento ou no átimo da morte, isto é, nos dois momentos decisivos da nossa existência – mas também no instante da absoluta dor – o ato da representação, do papel, daquilo que alguém representa, quase falta por completo e deixa apenas aquilo que é. Essa é claramente uma condição limite, uma condição que na vida efetiva é quase ausente, porém, é uma condição de algum modo pensável. A comunidade é aquilo que nesse pensamento-limite se mostra, é o munus – do qual advém, justamente, communitas, comunidade –, o dom/comprometimento, que nos determina mas que sempre nos foge, nos ultrapassa. É por isso que a dimensão da comunidade é sempre marcada pela ausência, pelo vazio, pelo risco, e não por uma presença cuja apropriação nos seria possível.

A comunidade, ao menos como o senhor a trata, parece assim uma dimensão dificilmente atingível nas sociedades contemporâneas, estas que são de todo conformadas nos paradigmas da modernidade e centradas sobre a técnica...
Sem dúvidas tenho a tendência a ver comunidade e modernidade em termos prevalentemente opositivos, pois o que a comunidade indica contrasta com o paradigma fundante da modernidade. De fato, enquanto a comunidade apela constantemente ao originário “ser com” e ao seu caráter inapreensível, a modernidade, pelo contrário, afirma-se segundo o paradigma da imunização e da concretização. Com a modernidade, o indivíduo começa a pensar sua existência como autofundada por completo, portanto, como substancialmente bastante a si mesma e que deve salvaguardar como tal e, para tanto, para operar essa salvaguarda, torna-se necessário construir recintos ao seu redor e é preciso imunizá-la do contágio e do contato com os outros. Seria possível até mesmo dizer, pensemos na Aids e também na imigração, que o problema central que emerge no nosso tempo é o da imunologia em sentido médico, jurídico e político.
Dito isso, entretanto, ainda estou convicto de que, hoje, pensar a comunidade não quer necessariamente dizer vê-la desde uma perspectiva nostálgica, como um retorno ao pré-moderno ou a uma fase pré-técnica. Não creio que comunidade, modernidade e técnica – esta que não me parece remeter apenas à modernidade – sejam necessária e radicalmente contrapostas, mas, ao contrário, sou levado a pensar que é preciso imaginar essa ideia de comunidade tanto nos valores da modernidade quanto na própria técnica.
Por certo, como expuseram Heidegger e outros pensadores, a técnica, e em particular a técnica moderna, constituiu-se a partir de uma lógica orientada ao domínio e, desse modo, tem em si elementos potencialmente destrutivos e impositivos. De outro lado, entretanto, é também verdade que a dimensão técnica provavelmente é ligada à nossa própria origem como homens. Um homem fora da dimensão técnica não é pensável.

No fundo, não realiza também um gesto técnico o homem primitivo de Rousseau quando apanha a maçã da árvore, isto é, um gesto lançado em vistas de um fim?
Em substância, estou convencido de que pensar a técnica apenas em sentido negativo, vê-la como má, não nos leva a nenhum lugar. É por isso que fui levado a presumir que possa existir uma técnica não destrutiva da pietas constitutiva da comunidade; isto é, uma técnica não agressiva. A dimensão de poder e de domínio presente na técnica está ligada à prevalência assumida pelo “saber fazer” sobre o simples “fazer”, ou seja, no predomínio que a sistematização e a operatividade do saber têm hoje em relação à capacidade do agir humano. Mas se nós conseguíssemos retirá-la do “saber” e a reconduzisse ao simples “fazer”, não seria de algum modo possível à centelha que a técnica apagou fulgurar novamente? No fundo, é um pouco daquilo que dizia também Heidegger quando afirmava que a salvação mora ao lado do perigo. Tudo isso, contudo, é um discurso aberto; não tenho convicções definitivas sobre o assunto, apenas sugestões.

Talvez o problema esteja no fato de que a técnica, a partir de certo momento, não foi mais vista como o necessário fazer do homem, mas como um operar a serviço de outra coisa como, por exemplo, a economia...
Em relação a isso estou claramente de acordo: a economia é, com efeito, a esfera constituída exclusivamente pelo proprium, pela propriedade, pela apropriação, e é por isso que estou convencido de que uma comunidade jamais possa ser pensada em sentido econômico, portanto, segundo as categorias que a “ciência econômica” formaliza e segundo as lógicas inauguradas pelo pensamento da economia como um espaço separado. São lógicas e categorias tão arraigadas que também o comunismo, nascido pela necessidade de a ela se opor, acabou por assumir como seu centro as mesmas categorias de produção e produtividade que queria combater. A comunidade, ao contrário, é por natureza ineconômica, aneconômica, justo porque é o que se mostra de um “dom” e de uma “obrigação” que, como tais, sempre escapam à reificação, portanto, também à reificação econômica. A única economia pensável no plano da comunidade é, como Bataille justamente sublinhava quando falava da dépense, aquela do desperdício, a economia paradoxal que inclui de modo constitutivo a perda, a não rentabilidade do agir econômico.

E ainda assim a racionalidade de tipo econômico invade sempre mais todo âmbito, mesmo aquele da política...
Não há dúvidas de que a política tenha sido “economizada”, isto é, seja sempre e em toda parte gerida com base em considerações econômicas, isto que, de fato, está radicalmente em contraste com a ideia de comunidade. A comunidade, sendo perda, esvaziamento da subjetividade, é algo que todos, também nós que dela falamos positivamente, temem, pois se colocar em comum, colocar-se em jogo, é um risco. Uma das maneiras de responder a tal temor é a economização. Não por acaso as sociedades contemporâneas, sobretudo as ocidentais, que justo em virtude dos valores da modernidade sentem de modo profundo o risco comunitário – o contínuo emergir de uma exigência comunitária –, tendem a disso se salvaguardar acumulando recursos e/ou apropriando-se dos recursos de outrem, isto é, como dizia antes, com a presumida imunização representada pela acumulação.

Mas onde se situaria, nas sociedades ocidentais, tal exigência comunitária?
Para mim, parece que nas milhões de pessoas que voluntariamente fazem com que essa exigência seja tão facilmente visível. O voluntariado só se explica com essa exigência comunitária, mesmo se não quero dizer que apenas esta exista. Para mim, parece que justo porque o político já foi inteiramente sugado pelo econômico e pelo técnico-especializado é que hoje tenha ficado de todo descoberto o social, este que (de modo óbvio, sem enfraquecimento) se tornou o lugar onde, talvez, de maneira mais fácil, seja possível voltar a praticar uma política que não seja só tática ou puro jogo entre representações sempre mais distante daquilo que deveriam representar. Além de tudo, o terreno social é justo aquele em que hoje acontece o encontro com as culturas não ocidentais, e isso remete, mais uma vez, ao munus que, como dizia antes, acomuna todos os homens. Por certo uma realização efetiva e completa da comunidade não é possível, mas levando em conta aquilo que ela indica, é possível notar como muito do que acontece no terreno social seja particularmente significativo. Paris, por exemplo, é uma cidade que, mesmo com todas as suas contradições e violências, me faz pensar que no seu interior de algum modo a comunidade lampeje. Em Paris, por uma série de motivos históricos, culturais e de outros gêneros, realizou-se uma efetiva fusão entre as várias culturas e civilizações; o amarelo, o negro, o branco estão em todas as dimensões sociais e, pelas ruas, é possível ver com frequência rapazes negros abraçados com moças brancas. Com isso, repito, não quero dizer que em Paris esteja sendo realizada “a comunidade”, mas por certo dela se tem o sentido, sobretudo em alguns ambientes. Para que isso aconteça não basta colocar juntas as diversas culturas, pois também nas cidades americanas as culturas são tantas mas, diferentemente de Paris, estão restringidas dentro de pedaços definidos da cidade, de modo que há o bairro chinês, o japonês e assim por diante, cada um fechado em si mesmo e tendencialmente em conflito com os outros, como se viu bem durante as desordens de Los Angeles. Procurando colocar-se desde o ponto de vista da comunidade, a questão do multiculturalismo é particularmente complexa e deve ser tratada com muita atenção. O meu livro sobre a comunidade nasce também um pouco em polêmica com o neocomunitarismo americano, que se preocupa apenas com a definição de quais deveriam ser as relações permitam a coexistência das diversas culturas, tomando a existência destas como um dado de fato que é aceito em si, no seu aparente fechamento, do mesmo modo com o qual o liberalismo, como vimos no início, aceita as relações de força que preexistem ao contrato. Mas se “multiculturalismo” significa apenas que toda parte deve ter os seus direitos, que deve ter sua bandeira, parece-me que está indo na direção de todo oposta àquela comunitária, para a qual, ao invés, “multiculturalismo” só pode significar a efetiva fusão, a contínua contaminação, entre os homens e as culturas.

Entrevista com Roberto Esposito (realizada por Franco Melandri e Sergio Sinigaglia), publicada originalmente me Una Città, n. 71, 1998, Disponível em: http://www.unacitta.it/newsite/intervista.asp?id=304 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)



Imagem: Francisco de Goya e Lucientes. A forja. 1819. Frick Collection, New York.      

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