Jamais se pode dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Para saber duvidar do que se vê é preciso ainda saber ver, ver apesar de tudo. Apesar da destruição, do esfacelamento de todas as coisas. É preciso saber olhar como olha um arqueólogo. E é por meio de tal olhar - de tal interrogação - sobre o que vemos que as coisas começam a nos olhar desde seus espaços enterrados [enfouis] e seus tempos evadidos [enfuis]. Caminhar hoje em Birkenau é deambular por uma paisagem pacífica que foi discretamente orientada - balizada por inscrições, explicações, em suma, documentada - por historiadores desse "lugar de memória". Como a história terrificante que teve este lugar como teatro é uma história passada, gostar-se-ia de crer nisto que se vê agora, isto é, que a morte se foi, que os mortos não estão mais aqui.
Mas é exatamente o contrário o que se descobre pouco a pouco. A destruição dos seres não significa que eles se foram para outro lugar. Eles estão aqui, exatamente aqui: nas flores dos campos, na seiva das bétulas, neste pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Lago, água dormente que exige do nosso olhar um alerta máximo a cada instante. As rosas colocadas pelos pelegrinos sobre a superfície da água flutuam ainda e começam a apodrecer. As rãs saltam por toda parte assim que me aproximo da borda do lago. Abaixo estão as cinzas. Aqui é preciso compreender que se caminha no maior cemitério do mundo, um cemitério cujos "monumentos" são apenas os restos dos aparelhos precisamente concebidos para o assassinato de cada um separadamente e de todos ao mesmo tempo.
Os "conservadores" desse muito paradoxal "museu de Estado" se depararam também com uma dificuldade inesperada e dificilmente manejável: na zona ao redor dos crematórios IV e V, à margem da mata de bétulas, a própria terra faz constantemente ressurgir os traços dos massacres de massa. A lixiviação das chuvas, em particular, faz ressurgir incontáveis lascas e fragmentos de ossos à superfície do solo, de modo que os responsáveis pelo lugar se viram obrigados a colocar terra para recobrir essa superfície que recebe ainda o chamado do fundo, que vive ainda do grande trabalho da morte.
Georges Didi-Huberman. Écorces. Paris: Minuit, 2011. pp. 61-62. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Lago das cinzas em Birkenau.
Um comentário:
Que precioso texto, Vinícius... Estar de olhos abertos para enxergar para além daquilo que está esfacelado ou arruinado. Conseguir perceber o que o mundo, com toda sua realidade e poesia, revela e está diante de nós.
Raquel
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