quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Inesquecível


- A criatura humana não vale muito e sua memória está cheia de buracos que nunca será capaz de tapar. Mas quanta coisa não se deve fazer daquilo que se esquece para sempre. Só assim o que se realizou serve de apoio ao pouco que para sempre se guarda. Todos esqueceram sua vida cotidiana. No meu caso, ela constava de multidão de móveis que tive de limpar todo santo dia, o sem-número de pratos que deviam ser lavados e, como todo mundo, sentei-me diariamente para comer. Mas, como para todo o mundo, isso é coisa que se sabe mas da qual não me recordo realmente, como se ela tivesse acontecido sem atmosfera, com bom ou mau tempo. O próprio prazer que me coube tornou-se um espaço sem atmosfera, e ainda que me reste a gratidão por este elemento da vida, os nomes e as feições que outrora significavam gozo e até amor somem diante de mim. A cada dia, a parte que deles desaparece, transformando-se numa gratidão parecida com um copo vazio, aumenta. Copos vazios, copos vazios! E no entanto este vazio não existiria, nem esse esquecimento, caso não tivesse sido criado o que não pode ser esquecido. Com mãos vazias, o que se esqueceu carrega o inesquecível, e este nos carrega. Com o esquecido alimentamos o tempo, alimentamos a morte; mas o inesquecível é um presente que a morte nos faz, e no momento em que o recebemos ainda estamos na realidade aqui, mas, ao mesmo tempo, já chegamos lá, onde o mundo cai nas trevas. Pois o inesquecível é uma fração do futuro, uma fração da intemporalidade que nos é outorgada antecipadamente, que nos suporta e abranda nossa queda na escuridão, fazendo-nos pairar suavemente. (...)


Trecho do conto “Narrativa da Criada Zerline”. In: BROCH, Hermann. Os Inocentes. [Die Schuldlosen]. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 104-105. Imagem: Francesco Salviati. Detail einer Wand: Kairos, fresco (1552-1554). Palazzo Sacchetti, It.

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