quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Realistas de Madri (Thyssen-Bornemisza, 9 de fev. a 22 de maio de 2016)


 Giorgio Agamben 

A mostra que aconteceu ano passado no museu Thyssen-Bornemisza de Madri marcou uma importante data na história da pintura de nosso tempo, pois, dentre outras coisas, impõe a revogação do singular monopólio que uma difusa tendência museográfica pretende ter sobre o sintagma “arte contemporânea". De fato, as obras dos sete pintores e escultores expostas na mostra cobrem um período que vai do fim dos anos cinquenta do século XX até hoje e, portanto, são, sem sombra de dúvidas, contemporâneas. Igualmente indubitável é o fato de  tratar-se de um grupo, no sentido próprio do termo: amizade e solidariedade de formação e de intentos ligam desde o início as quatro mulheres (Isabel Quintanilla, Amalia Avia, Maria Moreno e Esperanza Parada) e os três homens (Antonio, Francisco e Julio López) em uma intimidade tão estreita que é difícil encontrar um equivalente ao grupo em toda a arte do século XX. Entretanto, justamente por isso, eles sempre declinaram qualquer intenção estratégica de “grupo". “Éramos amigos" e isso bastava, mesmo se a amizade fosse por vezes tão intensa a ponto de se transformar em amor: quatro dentre eles (Isabel Quintanilla e Francisco López – que conheci em Roma na Accademia di Spagna no início dos anos sessenta –, Antonio López e Maria Moreno) se casaram. 
A rubrica “realistas de Madri”, que dá título à mostra, talvez soe incongruente (seria como intitular "realistas venezianos” uma mostra que reunisse quadros de Bellini, Tiziano e Giorgione) e prova mais uma vez, como se fosse necessário, que o vocabulário da crítica de arte de nosso tempo deverá, cedo ou tarde, sofrer uma drástica revisão; todavia, os termos realidad, o qual me lembro de ter escutado  Francisco Lopez pronunciar enquanto modelava na argila suas esculturas, e forma real, com que Antonio Lopez nomeia o objeto de sua pintura, por certo designam a estrela polar por meio da qual esses artistas orientam tenazmente seu olhar.
Francisco Calvo Serraler, no catálogo da mostra, observa que o realismo, que começa na metade do século XIX e ainda hoje continua, é talvez o movimento de vanguarda mais duradouro de nosso tempo. A palavra “realismo”, no entanto, tem sentido apenas caso se especifique o que se entende por “realidade” – o que, em particular, tais artistas têm em mente quando falam de realidade. Uma primeira indicação de resposta pode ser oferecida pela frequência com que eles elegem, como tema de suas telas, desenhos, esculturas, portas e, sobretudo, janelas – pensemos, entre outros, na estupenda Noche (1995), em Puerta roja (1978), em El atardecer en el studio (1975) e em La ventana (1970), de Isabel Quintanilla, em La cocina de Tomelloso (1972), de Maria Moreno, em Ventana de noche (1972), de Francisco Lópes, ou ainda em Quarto de baño, de Antonio López. O próprio Serraler oportunamente lembrou que a equiparação do quadro a uma janela a partir da qual se contempla a realidade remonta a Leon Battista Alberti (De pictura, I, 19). Ainda mais singular é que justamente essa janela se torne aqui o objeto da visão do pintor, quase como se, para ele, não se tratasse de representar diretamente a realidade, mas, antes de tudo, a própria pintura. A especial autorização de modernidade desses artistas não consiste, assim, apenas em ter trazido novamente à vida a janela albertiana que a arte moderna havia pretendido excluir da pintura; antes, fazendo dela o tema de suas telas, eles a colocaram em questão com muito mais radicalidade do que as vanguardas de que eram contemporâneos. A realidade – e tal é a mensagem deles – não é o que a janela da pintura representa: real é apenas a coincidência de pintura e realidade na superfície da tela. Por isso, com uma singular inversão, a janela que eles representam não abre à luz e ao mundo visível, mas – como na Noche, de Quintanilla, e na Ventana di Noche, de Francisco Lópes – às trevas da noite. Com razão Guillermo Solana, em sua introdução, fala de uma arte dos umbrais, uma arte das soleiras: como um ícone bizantino invertido, a tela é aí a soleira que coloca em comunicação dois mundos incomensuráveis – que não são mais o terreno e o divino, o typos e o prototypos, mas a própria arte e a própria realidade.  

Giorgio Agamben. Realistas de Madrid, Thyssen-Bornemisza, Madrid (9 febbraio - 22 maggio 2016). In.: Pictura, n. 2. Macerata: Quodlibet, Junho/2017. p. 265-269. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Maria Quintanilla. La Noche. 1995.       

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A língua da glória - Giorgio Agamben



Da Ética estão disponíveis hoje nas livrarias várias traduções ao italiano, mas nenhuma acompanhada do texto original latino. E a filosofia tem em comum com a poesia o vínculo indissolúvel e quase "musaico"[1] que a liga à língua original (não importa se materna ou adquirida). Isso não apenas porque, como já se disse, a terminologia – tão importante na filosofia – é algo como o momento poético do pensamento, mas também, e sobretudo, porque a operação que a filosofia realiza diz respeito acima de tudo à linguagem, é um caminho na língua, através da língua e em direção à língua. Por isso, ler filosofia sem nem ao menos a possibilidade de verificação no texto ao lado é simplesmente impossível.
É nessa perspectiva que devemos olhar para o latim de Spinoza, aparentemente tão resignado e escolástico, que estudos recentes mostram estar repleto de sintagmas terenzianos[2] – portanto, cômicos e de registro baixo. Esse latim não é de modo algum redutível a uma língua instrumental – a língua dos doutos europeus, por certo mais acessível que o português (provável língua materna do filósofo, mesmo se nos exemplos de Compendium Hebraicae linguae ele parece preferir recorrer ao ladino, o espanhol falado pelos sefarditas) e o holandês, esta que, ainda assim, Spinoza utiliza no Breve tratado. Gilles Deleuze certa vez comparou o latim de Spinoza a uma "embarcação sem idade" que, imperturbável, segue o eterno e incomparavelmente sereno rio de seu pensamento. Não é assim (é o próprio Deleuze a sugerir). A língua aparentemente neutra da Ética está em relação de absoluta intimidade com a operação de pensamento que nela se realiza; operação da língua e operação do pensamento são, aliás, de algum modo discerníveis. Mas de que operação se trata?
O que define a operação mais própria do pensamento de Spinoza, seu gesto característico, é que ele se assemelha de maneira singular a uma inoperosidade, a um desativar, a um aquietar. O próprio Spinoza chama essa inoperosa operação acquiescentia in se ipso e a define "uma alegria nascida disso, que o homem contempla a si mesmo e a sua potência de agir". Já se sugeriu que Spinoza poderia aí ter sido influenciado por Uriel da Costa, que com frequência usa o adjetivo descansada[3] a respeito da alma. É mais provável que nessa plena contemplação da própria potência se possa escutar um eco da menuchah hebraica, do descanso sabático de Deus depois da obra da criação. Filão já havia observado que a inoperosidade (anapausis, Paulo dirá Katapausis ou sabbatismos) de Deus não significa apenas inércia ou apraxia, mas indica uma forma particular de agir. E é notório que, na interpretação rabínica, no sábado estão proibidos apenas as obras produtivas: uma obra de pura destruição seria permitida. A verdadeira festa não é imobilidade e repouso; é, antes, o gesto que desativa e torna inoperosas todas as obras dos homens. Spinoza chama "contemplação da potência” uma inoperosidade interna, por assim dizer, à obra, uma praxe sui generis que consiste em expor e tornar inoperosa toda potência de agir e de fazer. E essa inoperosidade, diz Spinoza, é a máxima felicidade que a mente pode atingir.
Como pensar, então, uma acquiescentia in se ipsa da língua? Se transpomos para a língua a definição spinoziana, teremos aí uma língua que contempla a si mesma e a própria potência de dizer. Uma língua em estado de menuchah e sabatismo, que torna inoperosa e expõe de maneira festiva todas as suas possibilidades de dizer. O simples e escolástico latim de Spinoza (não por acaso uma língua não mais falada, como o hebraico) é essa língua que não quer mais dizer nada, mas contempla a própria potência de dizer. Como um templo em ruínas perdido em uma paisagem desabitada, ela não parece dirigir-se a ninguém e nem mesmo pedir para ser escutada. Repousa em si mesma, beata.
Por isso Spinoza pode escrever – com uma intenção polêmica e ao mesmo tempo irônica, cujo objetivo talvez ainda não tenha sido compreendido – que a “aquiescência" não se distingue da glória (re vera... acquiescentia a gloria non distinguitur). A "glória" que aí está em questão é o kabod da tradição hebraica, o terrível e deslumbrante esplendor que acompanha as aparições de YHWH na Bíblia. A mente e a língua em estado de aquiescência são "gloriosas”, mas se trata de uma glória que perdeu seu caráter ativo e tremendo e agora é simplesmente a auréola imperceptível que mostra sua inoperosidade. O latim da Ética é essa glória.

Giorgio Agamben. La lingua della gloria. In.: Baruch Spinoza. Etica. Texto latino da edição crítica de Carl Gebhardt. Trad.: Gaetano Durante. Prefácio: Giorgio Agamben. Macerata: Neri Pozza, 2014. pp. 7-9.  




[1] N.T.: Referente às musas.
[2] N.T.: Trata-se de uma referência a Terentianus, poeta latino nascido na Mauritânia que viveu provavelmente no final do século II d.c.. Escreve três livros importantes no que diz respeito à gramática latina: De letteris, De syllabis, De metris. No primeiro, trata da escritura e pronúncia das vogais e consoantes, no segundo retoma a temática do primeiro e acrescenta um estudo sobre os ditongos e sílabas e no terceiro, incompleto, expõe a teoria da métrica e breves noções de prosódia.
[3] N.T.: Em português no original.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Por que não assinei o apelo sobre o ius solis? - Giorgio Agamben


Ao que parece, ainda que eu tenha declarado expressamente que não pretendia assinar o apelo sobre o ius soli, meu nome de alguma forma foi nele inserido de modo ilegítimo. As razões de minha recusa obviamente não dizem respeito ao problema social e econômico da condição dos imigrantes, face ao qual compreendo toda importância e urgência, mas à própria ideia de cidadania. Estamos tão habituados a dar por certa a existência desse dispositivo que nem mesmo nos interrogamos sobre sua origem e significado. Parece-nos óbvio que cada ser humano, no momento de seu nascimento, deva ser inserido em um ordenamento estatal e, desse modo, encontrar-se sujeitado às leis e ao sistema político de um Estado que não escolheu e do qual não pode mais se desvincular. Aqui não é o caso de traçar uma história desse instituto, que atingiu a forma que nos é familiar apenas com os Estados modernos. Tais Estados chamam-se também Estados-Nação porque fazem do nascimento o princípio da inscrição dos seres humanos em seu interior. Não importa qual seja o critério processual dessa inscrição, o nascimento de genitores já cidadãos (ius sanguinis) ou o lugar do nascimento (ius soli). O resultado é, em todo caso, o mesmo: um ser humano se encontra necessariamente sujeito de uma ordem jurídico-política, qualquer que seja ela naquele momento – a Alemanha nazista ou a República Italiana, a Espanha falangista ou os Estados Unidos da América –, e deverá, de tal momento em diante, respeitar as leis e receber os direitos e obrigações correspondentes desse Estado.
Estou perfeitamente ciente de que a condição de apátrida ou imigrante é um problema que não pode ser evitado, mas não estou seguro de que a cidadania seja a melhor solução. Em todo caso, a meu ver, ela não pode ser algo de que se orgulhar e um bem a ser partilhado. Se fosse possível (mas não o é), assinaria com prazer um apelo que convidasse a abjurar a própria cidadania. Segundo as palavras do poeta: "a pátria será quando todos seremos estrangeiros”.

18 de outubro de 2017. 

Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-perch-on-ho-firmato-l-appello-sullo-ius-soli (Trad.: Vinícius N. Honesko)
 
Imagem: Filme Fuocammare, direção: Gianfranco Rosi (2016)