sábado, 27 de dezembro de 2008

Sudoreses


Repetidamente a idéia (imagem, sensação.. ou qualquer metáfora aproximativa para tratar de algo irrepresentável) da morte me surge. Ela não aparece de forma premeditada, como os preparativos para uma experiência de pensamento já de antemão preparada, nem vem revestida do pavor que comumente é associado à figuração da finitude por alguém também finito (propiciadora de estupor a todos nós, ‘desgraçadamente’ na clareira humana, na condição de viventes). Insinua-se como um pequeno sobressalto físico, um mal-estar próximo à náusea (nau-sía, esta afetação marítima...) em terra firme e demarcada. Estes sintomas físicos são os preparativos insones (esqueci de mencionar, não raro ocorrem no meio da madrugada) para um lampejo profano e de vigília de que, na infinidade impossível de contingências não catalogáveis, da genealogia de um plano cosmológico (não restrito apenas ao cosmos terrestre) e da história profunda e inconseqüente do tempo humano sobre a terra, de maneira miraculosamente banal, alguém (eu?) nasceu. Não estaria aqui para contar isso e nem pensar como “individualidade” não fosse a filigrana de um conjunto de arbitrariedades, saltos, constantes e derivas abissais (não é nada trivial o fato dos séculos de humanismo filosófico ocidental centrarem-se justamente neste conceito tão fastasmático e, por isso aterrador, concretamente presente, de sujeito). Mas meu cataclismo psíquico noturno (tão físico e prosaico como uma polução ou incontinência urinária, tão devastador como a impossível visão do nada) se dá na imediata seqüência - e ainda utilizarei uma metáfora - desta figuração. Após a consciência furtiva de toda esta travessia do ser, esta fenomenologia inapreensível para uma singularidade que fala, sonha, sofre, come, defeca, vive... dói muito saber que é preciso, sim é preciso!, morrer.



Imagem: Larry Towell, 1996. Canadá. Kent County. Mennonite. Magnun Photos.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Falar a jovens

Ao ser convidado para falar a respeito da importância da pesquisa no cenário contemporâneo comecei a me questionar sobre o quê falaria. Num primeiro momento pensei em fazer algum tipo de apresentação sobre o que venho estudando, o caminho que percorri – ainda que não tenha muita idade –, o que me levou a fazer mestrado, doutorado etc... No entanto, vi que tais reflexões, além de autoindulgentes, poderiam se passar por exibicionismo e egocentrismo banal de um jovem com pretensões que lhe ultrapassam em muito a competência. Comecei então a pensar em temas: talvez o problema do ensino superior no Brasil, ou ainda as perspectivas do cenário político-educacional hodierno, ou quiçá levantar uma discussão sobre os critérios de seleção e qualidade de trabalhos e textos acadêmicos (isto é, o problema dos TCCs, das monografia, dissertações e teses; problema este que se manifesta de diversas formas: a compra por parte de trabalhos prontos por parte de alunos inescrupulosos, a falta de preparo dos profissionais de educação nas orientações – lembro que mestrado e doutorado hoje podem ser encarados apenas como meros requisitos formais para se lecionar – etc. isso tudo a despeito da melhor possibilidade de acesso a livros, informações e trabalhos nas diversas áreas do conhecimento). Porém, também aqui percebi que estaria acendendo velas enquanto os refletores ainda estão ligados...
Continuei a pensar sobre o que poderia falar. Não sabia para que público falaria, portanto, não poderia me restringir a algum assunto específico. Assim, comecei a fechar várias portas e a entrever alguns tópicos que, segundo penso, seriam interessantes para uma reflexão sobre o problema da pesquisa, isto é, do estudo em nível superior. Porém, ainda não me satisfiz com a idéia. Lembrei-me então de uma conversa que tive com meu irmão por telefone, na qual ele me alertava sobre o quê deveria falar: “Cara, não precisa tomar um tema e escrever algo complexo. Apenas converse com os alunos a respeito de tuas experiências nas atividades de pesquisa; tente partilhar algo com eles, fale sobre algo que alunos e professores – enfim, a comunidade acadêmica – têm em comum. Ou seja, fale da pesquisa.”
Tais alertas de meu irmão me serviram, mais uma vez, para pensar a respeito do que não falar. Entretanto, ainda me restava pensar sobre o que falar para vocês sem cair em pedantismo ou sem chover no molhado (aliás, penso ser esta a prática mais contundente, contumaz e repetida da pesquisa nas universidades brasileiras). Diante deste problema, comecei a me questionar: o que hoje é fundamental e de interesse geral para o público das universidades? Talvez, ao menos suponho, o que se passa no dia-a-dia seja motivo de preocupações e indagações por parte daqueles que serão a elite privilegiada de uma sociedade em que apenas poucos têm acesso ao ensino superior. Então, eis que algumas questões de extrema atualidade me pareceram tópicos interessantes sobre os quais falar: a crise econômica mundial, as eleições municipais e as eleições norte-americanas.
Neste momento vocês devem se perguntar: mas o que há em comum entre a crise econômica, as eleições municipais e as eleições norte-americanas? Ou ainda, com certeza, alguns já pensaram o seguinte: “Ah, claro! Ele acabou de dizer que a pesquisas nas universidades não fazem mais que chover no molhado e começa sua fala justamente com o óbvio ululante.” Ou ainda alguém: “mas é claro que existe muita coisa em comum, pelo menos no que diz respeito à crise econômica e a disputa presidencial norte-americana.” Bem, como eu não poderia deixar de notar, vocês de certo modo têm razão ao emitirem tais juízos. É óbvio que existem especulações a respeito da política econômica que será adotada pelo novo governo democrata de Barack Obama nos E.U.A. e os rumos que a crise financeira tomará de janeiro de 2009 em diante; é também evidente que as eleições municipais brasileiras refletem o contentamento ou descontentamento dos eleitores brasileiros em relação aos seus governos municipais e que, em medida um pouco mais flexível, o contentamento ou descontentamento indireto em face da política de governo do Palácio do Planalto, isto é, do governo Lula (basta lembrar que, em São Paulo capital, não foi novidade alguma a derrota da ex-prefeita Marta Suplicy para Gilberto Kassab, levando-se em conta que no último pleito, 2006, Lula foi derrotado na capital paulista; também é importante lembrar que principalmente nos pobres municípios do interior brasileiro – aqueles cujo principal empregador é a prefeitura e nos quais as medidas paliativas anti-miséria do governo Lula (bolsa escola, bolsa família etc.) têm grande influência – os principais candidatos à prefeitura sempre tentaram colar suas imagens àquela do presidente Lula – isto é, um sinal da alta aprovação do governo[1]). Isso quer dizer: também as eleições municipais se conectam, ainda que indiretamente, com os problemas da economia mundial.
De todo modo, tenho que fazer anotações a respeito dos três problemas por mim avançados:
1) Em relação à crise econômica e seu reflexo na economia brasileira: não vou me ater ao modo de atuar específico do governo brasileiro, tampouco às intervenções do Banco Central e em que medidas estas ajudarão a chamada economia real – isto é, da micro-empresa de fundo de quintal que sobrevive de financiamentos na Caixa Econômica Federal (essas que podem estar instaladas em qualquer pequeno município ou grande metrópole) às mega-corporações (Petrobrás, Vale do Rio Doce, Gerdau etc.).
2) Também não me proponho a falar especificamente a respeito da nova configuração da política norte-americana (que, a meu ver, não é tão nova assim. Basta lembrar que toda a equipe de transição escalada por Obama é composta por ex-membros do governo Clinton) e de seus desafios e perspectivas.
3) Não vou tratar dos problemas atinentes à crise econômica mundial e suas conjunturas. Uma, não sou especialista em economia e falaria bobagens se a respeito disso me dispusesse a tecer algum tipo de comentário; duas, basta ler qualquer grande meio de comunicação para nos saturarmos de dados, gráficos, valores etc. a respeito da crise.
Sugeri três problemas; falei que eles têm em maior ou menor medida algo em comum; disse também que são questões importantes para quem se pretende estudante universitário; apontei que, a partir destes problemas, poderia fazer um discurso que não fosse pedante, nem que repetisse o já demasiadamente dito; porém, ao final, digo que não falarei de nenhum deles em especial. Ora, não estou sendo incongruente? Sobre o que falarei então?
Bem, lembrando mais uma vez a conversa que tive com meu irmão e pensando a respeito daquilo que lhes propus (isto é, falar sobre estes problemas contemporâneos: crise e política), suponho que um modo diverso de falar destes assuntos comuns seja analisando uma questão de fundo; ou seja, devo verificar com vocês a própria compreensão de uma palavra que está presente como eixo desses três problemas por mim trazidos, verificação essa que auxiliará uma reflexão e um estudo sobre esses e diversos outros problemas contemporâneos. Trata-se da palavra comum.
Não por acaso sugeri três temas que têm muito em comum. Porém, o que quer dizer comum? Segundo o dicionário Aurélio comum significa: “Adj. 2 g. 1. Pertence a todos ou a muitos. 2. Vulgar, trivial, ordinário. 3. Habitual, normal, usual, geral. 4. Feito em sociedade ou em comunidade. S.m. 5. Qualidade ou caráter de comum. 6. A maioria. 7. Aquilo que é comum, habitual, normal.”[2] Etimologicamente a palavra portuguesa comum (assim como a italiana comune, a francesa commun, o alemão kommun, o inglês common) deriva do latim munus. Por sua vez o sintagma latino munus, de acordo com o Lexicon Totius Latinitatis[3], têm três significados diversos: onus, officium e donum.[4] Tanto o primeiro como o segundo significado (isto é, ônus e ofício) têm uma carga semântica ligada a dever, obrigação, função, cargo. Por outro lado, donum, ou seja, dom, carrega um significado diferente dos dois primeiros: enquanto estes trazem de modo evidente a idéia de dever, dom traz essa idéia (de dever) de modo implícito. Ou seja, donum é uma espécie do gênero munus. Falo aqui de um dom obrigatório, o que à primeira vista parece algo contraditório. No entanto, alerto a vocês que esse dom é de uma categoria especial. De fato, trata-se de um dom cujo elemento de obrigatoriedade está presente. De acordo com Roberto Esposito, “uma vez que alguém aceitou o munus, está obrigado (onus) a retribuí-lo, seja em termos de bens, ou em termos de serviços (officium).”[5] Lembro, de relance, os importantes estudos sobre o dom efetuados no início do século XX pela recém-inaugurada etnologia francesa (com Marcel Mauss), que reverberou por todo o debate acerca da comunidade e sobre o trabalho humano nas ciências humanas.[6]
Assim, munus, enquanto dom, é o dom que se dá porque deve ser dado, e não o que se dá porque se pode dar, de um modo tão forte que o laço biunívoco pressuposto de uma relação de dever acaba por ser modificado e munus indica então o dom que se dá e não aquele que se recebe. Isto é, na transitividade do dar a dinâmica do dom se completa, gerando por conseguinte a idéia de que não há uma estabilidade na posse do dom, mas apenas perda, subtração; por fim, pode-se dizer que se trata da gratuidade que exige nova doação.[7] Ou ainda, nas palavras de Georges Bataille, “o valor de troca do dom resulta do fato de que o donatário, para apagar a humilhação e relevar a perda, deve satisfazer a obrigação, contratada por ele quando da aceitação, de responder ulteriormente por um dom ainda mais importante, isto é, de dar com usura.”[8] No fundo, a idéia que por trás deste comum – este dom – se esconde é justamente aquela de falta.
Basta, portanto, esse resgate etimológico do comum para podermos começar a ver as coisas com uma lente diferente (coisas que sugeri como temas problemáticos do contemporâneo).
Porém, propus questões a respeito das eleições, isto é, do meio através do qual em determinado território (município, estado, país), nos lugares ditos democráticos (ou seja, que têm como meio de eleição de seu governo o pleito, a formação por um consenso numerário), determinado povo organiza a formação de seu poder político (novamente, o governo do município, estado, país). No caso, p.ex., das eleições municipais: em determinado território os munícipes, através do pleito, elegem a classe política que se constituirá como autoridade poder instituído desta determinada comunidade. Com isso quero ressaltar que quando se fala em comunidade sempre são suscitadas idéias de pertencimento, identidade e propriedade (somente os habitantes de uma porção determinada de território podem eleger aqueles que exercerão o poder apenas neste território).
Assim, a idéia de comunidade – ou ainda, de modo geral, a de município – parece sempre atrelada àquelas características: pertencimento, identidade, propriedade. E os exemplos se disseminam: para os habitantes dos bairros de um município – que reclamam a sua identidade –, ou ainda para as chamadas tribos urbanas (emos, punks, hardcores, a galera do hip hop dentre tantos), ou ainda, de modo mais geral, para a própria formação da nacionalidade (sou brasileiro porque tenho tais e tais propriedades...). Na verdade, quando ressalto todas estas peculiaridades é a respeito de um discurso específico que estou falando: o discurso nacionalista (isto é, trata-se da lógica do moderno estado-nação[9]). De outro modo, posso ainda salientar que tal discurso se forma não a partir de uma lógica comunitária (de um com-munus – uma reunião de comuns, uma reunião de falta, já que comum é o que pertence a todos) como uma possível leitura banal poderia fazer, mas de uma lógica imunitária (do i-munus, daquilo que resguarda uma propriedade – o não-comum). Ou seja, ainda que os discursos políticos cotidianos insistam em falar na importância da comunidade, na defesa dos interesses do povo, na formação de uma cultura nacional identitária, não é de comunidade que se fala. Comunidade implica falta, risco, expropriação; ao contrário, a imunidade é a asseguração da propriedade, é a reserva em face do outro, é o pleno e não a falta (pleno de si).[10] Assim, se communitas “obriga os indivíduos a um empenho que os força a dar algo de próprio, ou ainda a si mesmos, a segunda [immunitas] reconstitui as suas identidades protegendo-lhes de uma contigüidade arriscada com o outro que não si mesmo, abrigando-os de todo ônus nos seus confrontos, fechando-lhes na concha de suas identidades subjetivas.”[11] A ingenuidade, portanto, desse discurso nacionalista (identitarista), que ainda se imagina portador da palavra da comunidade, se dá primeiramente por um incauto descuido etimológico:

'comum' é exatamente o contrário de ‘próprio’: comum é aquilo que não é próprio, nem apropriável por parte de alguém; que é de todos, ou ainda, de muitos – e, portanto, que não se liga ao mesmo, mas ao outro. (...) Isso significa que os membros da comunidade, mais que por um pertencimento, são vinculados por um dever de dom recíproco, por uma obrigação doadora, que os obriga a lançar-se fora de si, literalmente a expor-se, para ir ao encontro do outro e quase expropriar-se em seu favor.[12]

Diante disso, é-nos possível abrir o campo de análises dos problemas contemporâneos, suscitados no início, numa outra perspectiva: relendo o princípio fundacional do Estado-nação moderno (e que contemporaneamente parece ganhar força). Não é necessário que eu entre em considerações a respeito deste fundamento do Estado moderno, isto é, a respeito do Contrato (o contrato social hobbesiano). Porém, traço alguns detalhes, a partir desse problema etimológico apresentado (a questão do munus, do comum) para podermos sair de uma leitura dogmática e repetitiva, tão constante nos léxicos e manuais de introdução à teoria geral do estado.
O Estado moderno rege-se por um princípio não comunitário, mas imunitário. Isto é, quando Hobbes cria o Leviatã (o grande monstro Estado) o faz ao perceber que os homens podem ter em comum não é uma propriedade (uma natureza humana), mas o fato de que todos podem matar e serem mortos por todos. Hobbes percebe que a comunidade traz como princípio implícito uma falta, um dom, qual seja: um dom de morte (daqui a idéia da guerra de todos contra todos, o homem é o lobo do homem e tantas outras indiscriminadamente utilizadas). O que se torna inevitável é a neutralização da comunidade, isto é, a imunização (caso o indivíduo moderno queria manter sua propriedade[13]). Tal imunização é o rompimento com a dimensão originária (natural) e a instituição de uma origem artificial, ou seja, o contrato. O que se imuniza aqui é portanto o dom, o munus i-munus; contrato é antes de tudo o que não é dom. Diante do risco da comunidade – do esvaziamento e do risco de morte implícito nessa comunhão – uma outra lógica – justamente essa do contrato – deve entrar em ação: não mais o risco, o contato com o outro, mas o fechamento em si mesmo em troca de proteção do Estado Leviatã. A relação é verticalizada num eixo proteção-obediência. Não se funda o com-munus, o com-o-outro, mas as relações se abrem como não-relações com o outro, cuja única possibilidade se dá pela via do contrato – isto é, pela radical neutralização do comum e na defesa da propriedade-individualidade.
A instância contratual que preenche o vazio do comum na modernidade é justamente aquilo que interdita a vida em comum; lendo de outra maneira podemos ressaltar: o contrato hobbesiano (ou seja, o Estado tal como o compreendemos e no seio do qual vivemos) não é uma operação que se dá uma única vez (num hipotético estágio de passagem: do estado de natureza para o estado civil – lembremos que o estado de natureza não é uma época real, datável e localizável, mas uma hipótese aventada para explicitação do estado civil), mas é algo que opera a todo instante nas relações (diria, i-relações) quotidianas, principalmente na modernidade. Ao suposto estado civil em que vivemos, portanto, este que estaria sob a égide do contrato (da imunização do comum), é possível adicionar, como seu núcleo escondido, um estado natural que lhe sobrevive. Explico: ao contratarmos, ao nos imunizarmos, eliminamos o risco de morte violenta no compartilhamento das experiências comuns e fundamos a regularidade da nossa propriedade (individualidade) – isto é, traçamos limites, fechamos e demarcamos um espaço no qual poderemos viver sem a ameaça de morte porque este direito – o direito natural de impingir ao outro a morte – é cedido para um soberano (o Estado). Porém, contrariamente ao que podemos ingenuamente pensar, a instituição do Estado (a superação do estado natural no estado civil) não é a regularização estável da vida pela via do contrato (a imunização se dá em relação ao outro cidadão). O soberano (o leviatã, isto é, o Estado) conserva seu direito natural de fazer qualquer coisa em relação a qualquer um – isto é, tem o jus puniendi (a pretensão estatal de punição). O que de fato está em jogo nesta superposição da imunidade sobre a comunidade?
A fundação do estado moderno (nessa idéia do contrato) visa sacrificar a possibilidade do delito (isto é, do assassínio) que está implicada na idéia da comunidade. Ao risco de morte do estado de natureza sobrepõe-se a imunidade, desde que cessado este direito natural entre os súditos e preservado no soberano (o Estado). Mas outro paradoxo acaba aparecendo de modo evidente: se a instituição do estado é a supressão do com da comunidade, não é a supressão da própria possibilidade de existência do homem que se vê atacada (da vida comunitária)? Dito de outra forma: ao nos imunizarmos totalmente (os exemplos podem ser os mais variados pois se proliferam a esmo nos dias atuais: do fechamento em condomínios residenciais cada vez mais “vigiados” até o isolamento individual dito “patológico”, a “não-cordialidade” corriqueira nas ruas etc.) não estaríamos ao mesmo tempo que salvaguardando o nosso corpo biológico (e político) também impedindo o desenvolvimento das relações humanas? Ou seja, não seria o sacrifício de uma vida em detrimento de uma sobrevivência? (talvez a esterilidade da vida contemporânea possa ser um bom parâmetro para começarmos a nos sintonizar nestes problemas...)
A figura do contrato que institucionaliza as relações (as estataliza) não pode ser vista, neste sentido, sem as devidas críticas. Importante não é ressaltar a cessão dos direitos naturais por vontade dos súditos (isto é, os cidadãos – súditos – são livres e abstêm-se de determinado direito por vontade própria); muito mais relevante é a conservação deste direito natural violento por parte do soberano (este que retém em suas mãos a decisão sobre a proteção ou negação da vida dos súditos); a vontade não é o elemento primordial do contrato, e tampouco este é um evento único e definido que marcaria a passagem intransigente da natureza ao Estado. Ao contrário, a própria vida dos súditos é que é colocada como elemento fundamental da formação do Estado cuja fundação não pode ser vista, portanto, como fruto de um contrato (no sentido de acordo de vontades), mas como a manutenção constante de decisões soberanas sobre a vida (aqui a quase intransponibildade dos impasses suscitados pelos debates contemporâneos mais atuais: a eutanásia, o aborto etc., isto é, os limites de ingerência do Estado na própria vida privada dos indivíduos).
O mecanismo de imunização, portanto, se completa com a formação do Estado moderno este que, em que pese as ilusórias tentativas das filosofias e discursos neocomunitários, não é de modo algum uma comunidade, mas sim aquilo que sacrifica a comunidade. Entretanto, há retorno (se é que esse é o verbo correto) para uma comunidade? Bem, os intentos comunitários do século XX (os ditos comunismos reais) parece que comprovaram a impossibilidade desta assunção da comunidade. Mas, por outro lado, estamos fadados à imunização total, que transforma nossa vida em sobrevida (que produz vida humana em série)?
Na realidade penso que é hora de começarmos a pensar para além das aspirações por sonhos de um evento comunitário passado (uma elegia – um lamento – por algo que nunca se deu: talvez valha lembrar que as miticizações excessivas de um passado glorioso e a expectativa de revivê-lo atingiram seu apogeu na Alemanha nazista e revivem hoje em discursos neo-nacionais) e das intenções imunitárias ilimitadas dos discursos neo-liberais (uma lógica que tem levado à exacerbação total do sistema imunitário, lançando todos numa guerra intestina e ao pânico do contato). De fato, é a partir destes cruzamentos entre exclusão e inclusão, abertura e fechamento que é preciso começar a pensar; de fato, é preciso, a partir dessas coordenadas, tentar abrir para novas buscas no modo de se pensar a política e o contemporâneo.
Bem, retomo os problemas que suscitei no início: a crise econômica, as eleições norte-americanas e as eleições municipais. A equação destes três problemas sempre está atrelada pelo fio condutor chamado política. Algumas perguntas fundamentais da política são: como pode o homem viver numa polis (isto é, numa cidade, compartilhar sua vida com a dos demais homens)? Quais os modos possíveis de vida em comum? É possível ao homem viver junto aos seus semelhantes? Assim, quando uma crise – como a atualmente em trânsito nos mercados de capitais – eclode, na atual conjuntura sistemática global, o Estado (o Leviatã) passa a ser o grande salvador (com isso o nacionalismo toma corpo e a separação e fechamento imunitários ganham força); salvador este que deve ter uma governo exemplar (aí a figura quase messiânica que ingenuamente tomou forma em Barack Obama nos últimos meses condiz com a posição do maior estado-nacional contemporâneo: os E.U.A.), que possa reparar os fios em curto-circuito e novamente armar a máquina imunizadora; toda essa conjuntura global (digo mais, estatal global) toca diretamente na vida dos homens que, vivendo em metrópoles ou em pequenos municípios interioranos brasileiros, verão suas economias ruírem ou resplandecerem de acordo com o ritmo das atividades estatais. Ou seja, no fundo o problema que sempre permanece intocado, impensado é sempre a questão da necessidade intransponível do Estado, como se este monstro (lembro que o Leviatã é a metáfora utilizada por Hobbes – ou seja, o monstro do caos da mitologia fenícia) fosse além de indestrutível, o último guardião da humanidade. De fato, somente levando às últimas conseqüências um pensamento para além da comunidade estatal (do paradoxo de uma comunidade que é risco de morte e de uma imunização que, ao tentar suprimir este risco, acaba por elevá-lo à máxima potência), isto é, provando um pensamento do não-Estado, um pensamento da singularidade (não do totalmente comunitário, nem da individualidade) é que poderemos começar a entrever algo além do marasmo paradoxal de discursos que fulguram como cânticos glorificantes do Mesmo (as expectativas por um mundo vindouro, as expectativas pelo progresso salvador da humanidade e toda sorte de esperanças plasmadas por um princípio estatal-consensual que - ingênua ou intencionalmente - se supõe como única via possível para o homem).
Depois deste longo excurso a respeito do comum, da comunidade e dos problemas atinentes à formação política moderna, posso terminar não dando respostas (não teria tamanha pretensão) para os problemas que levantei, mas oferecendo novas vias de acesso aos problemas; isto é, tento uma outra perspectiva, diversa daquela do dogmatismo acadêmico tacanho, que incita à repetição e à reprodução irrefletida de discursos prontos e de fundo alienante. Ainda assim, para finalizar, gostaria de aventar uma idéia que talvez seja também ela interessante para pensarmos o nosso tempo e refletirmos sobre os problemas inicialmente propostos: a amizade. Talvez um modo de pensarmos para além da communitas e da immunitas esteja presente no modo em que condividimos nossas vidas numa relação de amizade. Nada de comum nos une efetivamente numa amizade; “os amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto); eles são com-divididos pela experiência da amizade.”[14] Isto é, não tomam a vida como um objeto sobre o qual decidem o que é comum em relação às demais vidas, mas são eles mesmos (os amigos) condivididos pela experiência da amizade. “A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para dividir é o próprio fato de existir, a própria vida.”[15] A política, portanto, não a comunitária (no sentido de participação num comum), tampouco a imunitária (a do Estado moderno), tem como núcleo originário a relação de amizade, esta pura condivisão da vida, da existência. Obviamente que tentar pensar num mundo como esse em que vivemos uma política para além do Estado, para além da comunidade não é tarefa fácil. Talvez, como sugeria meu irmão, o fato de compartilhar algo da própria existência com seus pares, seja um passo para podermos encarar esta empresa; talvez encarando a universidade como o espaço onde se pode iniciar uma condivisão da experiência de estarmos vivos com uma seriedade que ultrapasse os limites das formalidades (preenchimento de currículos para ganhar pontos em concursos, atrelamento incondicional a ditames produtivistas como meio de 'ultrapassar' as metas para o ano etc.) seja um bom início para quem se pretende estudante universitário. Ou seja, não há fórmulas para interpretarmos o mundo, assim como não há fórmulas para vivermos neste mundo. Resta-nos apenas a certeza de que existimos e, uma vez aqui, não há essência comum nem reduto imune que nos garanta uma existência com o outro que não seja simulação, ora de uma paraíso perdido, ora de um inferno que parece não ter fim...

[1] Conforme notícia publicada no Estadão em 29/09/2008, em setembro, a aprovação do governo Lula subia 8% de junho até setembro de 2008, atingindo a impressionante marca de 80%, enquanto a desaprovação caía de 24% para 17%, de acordo com o CNI/Ibope. Cf. http://www.estadao.com.br/nacional/not_nac250214,0.htm Ou ainda, por estes dias: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u479636.shtml
[2] DICIONÁRIO AURÉLIO BÁSICO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1988. p. 165.
[3] FORCELLINI, Aegidio. Lexicon Totius Latinitatis. Tom. III. Patavii: Typis Seminarii, 1940. p. 313.
[4] Exemplos de palavras derivadas de munus: município e suas derivações - munícipe, municipal -, comunidade, comunhão, dentre outras.
[5] ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2003. p. 27. “una vez que alguien ha aceptado el munus, está obligado (onus) a retribuirlo, ya sea en términos de bienes, o en términos de servicio (officium).”
[6] Não poderia deixar de agregar aqui a figura de Georges Bataille e de seu famoso ensaio La notion de dépense, publicado pela primeira vez na revista La critique sociale nº7, de janeiro de 1933. Aqui Bataille traça uma idéia da noção de gasto a partir do Essai sur le don de Marcel Mauss, publicado no Anée sociologique em 1925.
[7] ESPOSITO, Roberto. Idem. p. 28.
[8] BATAILLE, Georges. La Notion de Dépense. In: La Part Maudite. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 33. “La valeur d´échange du don resulte du fait que le donataire, pour effacer l´humiliation et relever le défi, doit satisfaire à l´obligation, contractée par lui lors de l´acceptation, de répondre ultérieurement par um don plus important, c´est-à-dire de rendre avec usure.”
[9] Ainda que alguns possam dizer: “Ah, mas isto é balela, pois estamos na era da globalização, da aldeia global etc.” relembro apenas o problema da crise financeira mundial: Quem está resgatando bancos e empresas à beira da falência? Quem intervém? A resposta é clara: os Bancos Centrais dos Estados-nacão, isto é, os governos nacionais. Além disso, basta ver a expressiva votação norte-americana. Digo expressiva com relação ao número total de eleitores votantes (o maior da história). À toa? Não. É o discurso nacionalista que se rearma em nova chave.
[10] Importante lembrar que este termo immunitas, contraposto aqui à communitas, é o mesmo utilizado pelos léxicos médicos (aliás, diga-se, é no mesmo período de formação do estado-nacional moderno que as ciências médicas começam a se definir com bases nas idéias de contágio e de exposição à riscos; é também aqui que começam as políticas de higiene nacionais – basta lembrar Foucault); no Brasil, ou seja, fora do centro, na colônia, vemos os reflexos desta política de higiene ainda no século XX – basta lembrar da revolta da vacina de 1904, durante o governo de Rodrigues Alves (Oswaldo Cruz o médico responsável).
[11] ESPOSITO, Roberto. Il dono della vita tra “communitas” e “immunitas” In: Umano Post-umano. Potere, sapere, etica nell´età globale. A cura di Mariapaola Fimiani, Vanna Gessa Kurotschka, Elena Pulcini. Roma: Editori Riuniti, 2004. pp. 64. “obliga gli individui a un impegno che li spinge a donare qualcosa di proprio, o addirittura se stessi, la seconda ricostituisce la loro identità proteggendoli da una contiguità rischiosa con l´altro da sé, sollevandoli da ogni onere nei suoi confronti, richiudendoli nel guscio della loro identià soggettiva.”
[12] Idem. pp. 63-64. “’comune’ è esattamente il contrario di ‘proprio’: è comune ciò che non è próprio, né appropriabile da parte di qualcuno; che è di tutti, o quantomeno di molti – e dunque che non si rapporta allo stesso, ma all´altro. (...) Ciò significa che i membri della comunità, piuttosto che da un´appartenenza, sono vincolati da un dovere di dono recíproco, da un obbligo donativo, che li spinge a sporgersi fuori di sé, letteralmente a esporsi, per rivolgersi all´altro e quase a espropriarsi in suo favore.”
[13] Lembremos também desta noção que a nós parece tão comum: indivíduo. De fato, indivíduo é quem se mantém in-diviso, fechado, absolutizado em si mesmo, que tem seus limites bem delimitados em relação aos demais. Isso se dá somente quando estamos liberados da dívida que nos vincula mutuamente; isto é, liberados do contato e do possível contágio; liberados do que ameaça nossa identidade, nosso próprio. Imunizados.
[14] AGAMBEN, Giorgio. L´amico. Roma: Nottetempo, 2007. p. 19. “Gli amici non condividono qualcosa (una nascita, una legge, un luogo, un gusto): essi sono com-divisi dall´esperienza dell´amicizia.”
[15] Idem. “L´amicizia à la condivisione che precede ogni divisione, perché ciò che ha da spartire è il fatto stesso di esistere, la vita stessa.”

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Libelo


Acusar e julgar são termos hoje gastos por sua indiscriminada apropriação por funcionários estatais que talvez façam tudo em suas engrenagens menos julgar (quiçá justamente por isso fazem o que fazem sem o menor escrúpulo de auto-análise).

Partindo da premissa de que toda acusação pressupõe um julgamento, no sentido kantiano e não estupidamente decisionista do termo, explica-se de imediato a quase completa inexistência de críticas (e, portanto, acusações contundentes) ao nosso tempo de catástrofes humanas banalmente aceitas como “fatos naturais” com os quais “necessariamente” se deve “conviver”.

O próprio local irredutível da crítica quer se dar ares, em suas paródicas simulações no presente, de função profissional (inclusive catalogada em “currículos oficiais”), em uma má-consciência que chega aos fastígios do cômico. O “intelectual” salaud médio nada mais quer do que buscar seu local (devidamente sitiado) no estado de coisas exatamente pré-formatado pelo mundo tal qual é, em sua insipidez estéril de horizontes, quaisquer que sejam. A “crítica” quer ter seu espaço no estabelecido e ainda ser nele louvada. Não só a potência constituinte da crítica efetiva é capturada, mas principal e diretamente a vida que pretenda expô-la de forma imanente. Ou melhor, a “crítica” - mesmo não doutrinária e não metafísica - pode prosperar e até receber ouvintes (pagantes!) massivos caso permaneça no plano seguro da doutrina e da metafísica. A vida danificada permanece intocável em sua parcialidade claustrofóbica. Aqui se manifesta o alto teor de má-fé ou, quando esta inexiste, vertiginosa inquietação, que toda “crítica” teórica no presente inevitavelmente carrega consigo. Por outro lado, torna-se extremamente perigoso ousar viver demasiadamente (não distinguindo muito bem o “cânone de separação” entre o logos e a vida).

Restituir ao mundo dos dispositivos “socialmente inalteráveis” seu caráter aleatório e de avaliações (integralmente humanas e de poder humano) genericamente aceitas (ao ponto de sua esclerose!) seria pensar uma política que, retirando o juízo de seu torpor, desative e profane a pura forma fetichista da administração (policialesca) travestida em política, assim como nos faça despertar do pesadelo dogmático do sempre-foi-e-assim-permanecerá, ousando pensar uma “história” que nunca se exaure e um presente dilatado ontologicamente imprevisível.

Mesmo que de andaimes frágeis e propiciadores de vertigem a seus ocupantes é imperioso não se escusar das acusações que o nosso tempo exige.



sp, ano 40 pós 68.



imagem. Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). Los Caprichos, Plate 39 Asta su Abuelo.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Les salauds”


A esterilidade da vida cotidiana e “metropolitana” da espécie de “animal laborans” hoje disseminada em escala ubiquamente planetária está ligada sobretudo à quase total impossibilidade, o que transfere um desespero adorniano a qualquer indivíduo minimamente lúcido, de escape frente aos horizontes estabelecidos pelo espirit de sérieux nela incrustado. Sobre como se manifesta este espírito de seriedade, respeitabilidade, mediocridade e simulações farisaicas, Hannah Arendt, em ensaio de 1946, nos dá alguns acenos: “o homem ‘sério’ é aquele que pensa em si mesmo como diretor de sua empresa, como membro da Legião de Honra, como membro da faculdade, mas também como pai, como marido ou como qualquer outra função seminatural, semi-social. Assim fazendo, concorda com a identificação de si mesmo com uma função arbitrária que lhe foi atribuída pela sociedade.” De 1946 até os dias que correm é impossível não constatar a catastrófica universalização do “espírito de seriedade”, domesticando inclusive os últimos redutos “oficiais” de não alinhamento: o espaço institucional das artes, progressivamente dominadas por uma mercantilização e “profissionalização” inauditas (nada mais que um epifenômeno do grande fluxo estrutural de generalização e sofisticação da sociedade contemporânea do espetáculo) e o espaço da chamada intelectualidade, ou daquilo que nas últimas décadas se viu drasticamente reduzir ao entorno dos campi universitários (e, nesses locais, salvo exceções, aos diminutos espaços dos departamentos de “ciências humanas”). É preciso ressaltar, contudo, que a novidade deste massivo “espírito de seriedade” não se evidencia equivalente à empáfia ou presunção do “homem de gênio” que outrora ligava diretamente sua vida a uma atividade que consideraria “superior” frente aos imperativos da vida anônima da “plebe inculta” ou não iniciada. A síndrome do homem sério e médio se revela no “sintoma psíquico”, hoje epidêmico, de vincular todas as dimensões do “mundo da vida” à esfera laboral ou atividades adjacentes ao labor (como o estudante, em uma vida intermediária e iniciática à religião mor do mercado de trabalho), representando a instância do trabalho um qualificador privilegiado, senão único, do “ser no mundo”. Ser professor, ser político, ser advogado, ser gari, ser operador de telemarketing... Este é o bios, desesperadamente trivial e prosaicamente operoso, da vida humana sobre a terra.

(Nada mais do que tentou Sartre exprimir em “A Náusea” com a figura do “salaud”, ou, em português mais chulo, o salafrário, usada para intitular os respeitáveis, ou figurões, de uma determinada cidade interiorana).


Mas além da figura do “homem sério” é possível observar outro “modelo antropológico” dominante que aparentemente se colocaria em posição antagônica ao primeiro, mas que, em verdade, apenas exporia a outra face, menos ingênua e mais niilista, do respeitável “salaud” (e que até não impediria sua concomitância). É o que também Sartre buscou delinear com a figura da má-fé. O individuo que age com má-fé consegue perceber a insuficiência e arbitrariedade de tais máscaras como instâncias de definição da vida socialmente permitida. Porém, seja por covardia, preguiça ou oportunismo, simplesmente age como se estivesse frente a uma heteronomia vinda das leis naturais. Hipocritamente serve-se desta forma de partilha do próprio mesmo que ao preço de ver sua própria vida cotidianizada, sitiada e insossa (com a contínua percepção pessoana de ser “uma cadáver adiado que procria”).

Uma pequena suspensão e comentário final. O espirit de sérieux da versão de capitalismo do presente (ousando uma tão abrangente transposição de conceitos) se dirige às mais heteróclitas multidões do mundo, inclusive àquelas que sobrevivem na lei marcial do relógio ponto e das decisões dos gendarmes gerenciais especializados em (sintagma que poderia facilmente ser incluído no vocabulário fascista) “recursos humanos”, vivendo diariamente na roldana marcada “nos vãos entre as plataformas e os trens”, no sono curto e intranqüilo e nos finais de semana dedicados ao entretenimento (entorpecedor e servil ao tempo vazio e homogêneo do trabalho, como o todo entretenimento). Sem adentrar no comentário de Marx de que o proletariado é a classe que não possui fronteiras nacionais ou, em termos mais correntes, “identitárias” definidas (i.e. o nuclear são suas condições materiais), e mesmo utilizando o conceito de proletariado em termos meramente operativos, estas multidões são justamente aquelas que não conhecem uma propriedade também no sentido amplo de um pertencimento mundano ou, em outros termos, aquele grupo de pessoas que estaria mais exposto a ser reduzido, em sua própria rotina, à figura da pura vida biológica enquanto tal. E é justamente esta massa que mais de perto vê e fisicamente sente tanto a fragilidade, violência e unidimensionalidade do bios contemporâneo, tendo que se amoldar às figuras mais bizarras e impessoais de qualificação (algo que o séc. XIX já conhecia mas que em nosso tempos chega ao paroxismo), como a direta vinculação desta qualificação parcial com sua própria presença na terra. Basta pensar no drama de um indivíduo economicamente assimilado e dependente do mercado (como todos somos até os nervos no presente), porém pobre e desempregado.


É desta impropriedade da situação da vida dos vencidos que talvez restem fagulhas potencialmente incendiárias para desmentir e profanar a propriedade séria e respeitável enquanto tal. Aí se elucidaria, de forma oblíqua, a enigmática alusão de Marx de que não se pode falar de um “proletariado” sem falar de sua própria (e potencial) abolição.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Inesquecível


- A criatura humana não vale muito e sua memória está cheia de buracos que nunca será capaz de tapar. Mas quanta coisa não se deve fazer daquilo que se esquece para sempre. Só assim o que se realizou serve de apoio ao pouco que para sempre se guarda. Todos esqueceram sua vida cotidiana. No meu caso, ela constava de multidão de móveis que tive de limpar todo santo dia, o sem-número de pratos que deviam ser lavados e, como todo mundo, sentei-me diariamente para comer. Mas, como para todo o mundo, isso é coisa que se sabe mas da qual não me recordo realmente, como se ela tivesse acontecido sem atmosfera, com bom ou mau tempo. O próprio prazer que me coube tornou-se um espaço sem atmosfera, e ainda que me reste a gratidão por este elemento da vida, os nomes e as feições que outrora significavam gozo e até amor somem diante de mim. A cada dia, a parte que deles desaparece, transformando-se numa gratidão parecida com um copo vazio, aumenta. Copos vazios, copos vazios! E no entanto este vazio não existiria, nem esse esquecimento, caso não tivesse sido criado o que não pode ser esquecido. Com mãos vazias, o que se esqueceu carrega o inesquecível, e este nos carrega. Com o esquecido alimentamos o tempo, alimentamos a morte; mas o inesquecível é um presente que a morte nos faz, e no momento em que o recebemos ainda estamos na realidade aqui, mas, ao mesmo tempo, já chegamos lá, onde o mundo cai nas trevas. Pois o inesquecível é uma fração do futuro, uma fração da intemporalidade que nos é outorgada antecipadamente, que nos suporta e abranda nossa queda na escuridão, fazendo-nos pairar suavemente. (...)


Trecho do conto “Narrativa da Criada Zerline”. In: BROCH, Hermann. Os Inocentes. [Die Schuldlosen]. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 104-105. Imagem: Francesco Salviati. Detail einer Wand: Kairos, fresco (1552-1554). Palazzo Sacchetti, It.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Murilo Mendes por Murilo Mendes

(B)
Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das idéias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. Sou contemporâneo e partícipe dos tempos rudimentares da matéria - desde 900 bilhões de anos? -, do dilúvio, do primeiro monólogo e do primeiro diálogo do homem, do meu nascimento, das minhas sucessivas heresias, da minha morte e mínima ressurreição em Deus ou na faixa da natureza, sob uma qualquer forma; do último acontecimento mundial ou do acontecimento anônimo da minha rua. Na gruta de Altamira disse; eu estava aqui na época em que gravaram estes bichos. As portas da percepção abriram-se no momento-luz inicial dos tempos; talvez nunca se fechem. O minúsculo animal que sou acha-se inserido no corpo do enorme Animal que é o universo. Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão.
(C)
De substrato pagão; covarde; oscilante; incapaz de habitar o faminto, o leproso, o pária; aterrorizado ante a cruz trilíngüe - máximo objeto realista - oclusa ao olho dos doutores, travestida pela montagem teatral de Roma barroca-poliédrica; obsedado pelo Alfa e o Ômega; bêbado de literatura, religião, artes, música, mitos; imbêbado de política, economia, tecnologia; expulso dos teoremas; tachado de analfabeto pelo físico nuclear e pela história, dama agitadíssima; consciente da força agressiva do mundo moderno, da espantosa ambigüidade da natureza humana, indecisa entre adorar a matéria ou destruí-la; dinâmico na inércia, inerte no dinamismo sou.
MURILO MENDES, Poesia Completa e Prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 46.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Estratégias antropofágicas

Flávio de Carvalho, Nu Feminino, 1972
Usar a antropofagia como estratégia, tal como fazem as vanguardas, é ater-se ao movimento das relações com o exterior – com o outro – e, além disso, a ruptura com a tradição e com a memória. Porém, no mesmo instante em que o abandono da tradição é conclamado, uma outra idéia de tradição é posta em cena: não mais a proposição dicotômica do particular/universal (que, ontologicamente se reflete na agonia do ser ou do nada), do primitivo-natural/civilizado, mas aquela do homem natural tecnizado, do ser singular (o ser qualquer); é nesse sentido que, como coloca Agamben, “a singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal.”[1]
Às posições marcadamente cindidas e estruturadas da tradição lógico-conceitual ocidental – a civilização esquizofrênica, diria Warburg –, nas quais os campos filosófico e poético (assim também como o pensamento e a política, a ontologia e a práxis) são compartimentados em seus respectivos domínios, cujas fronteiras são a todo instante marcadas (decididas), a antropofagia expõe sua estratégia pela negação dessas decisões: como o arqueólogo que lê na fratura entre as palavras e as coisas a assinatura – a impressão, o vestígio, a deformação imagética – e a partir desta rearranja as coordenadas da rede histórica de uma civilização, assim também o antropófago, ao dar ouvidos ao homem nu e pela devoração pura e eterna, busca uma saída aos impasses da construção de um homem natural tecnizado. Colocando-se como única lei do mundo, a antropofagia se lança como tentativa de supressão da aporia ser/não-ser e reabre a pergunta do príncipe da Dinamarca: “Tupi or not tupi. That is the question.” Nem um, nem outro, nem particular, nem universal: o mundo é singular e indecidível; o mundo está suspenso no próprio mundo; o mundo é o que resta do mundo – é imaginação do mundo. Neste salto dimensional ler a história da humanidade (de suas humanidades: as artes, a política) é partir de um pathos que não faz contas da distinção entre um trabalho da razão (universal, etnocêntrico, europeu) e uma mitologização (particular, antropológica, indígena), mas que no espaço entre ambas tenta ler e ver a abertura de um possível. Ler e ver a possibilidade num mundo impossível.
[1] AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. Tradução: Antônio Guerreiro. p. 11.

sábado, 27 de setembro de 2008

Bilboquet nº 2

Antonin Artaud, Le théâtre de la cruauté

Nós escrevemos raramente sobre o plano do automatismo que preside o cumprimento de nossos pensamentos.

A Arte suprema dá, pelo intermédio de uma retórica bem aplicada, à expressão de nosso pensamento a tensão e a verdade de suas estratificações iniciais, assim como na linguagem falada. E a arte reconduz esta retórica ao ponto de cristalização necessário para fazer apenas um com certas maneiras de ser, reais, do sentimento e do pensamento. - Numa palavra o único escritor durável é aquele que terá sabido fazer se comportar esta retórica como se ela fosse já do pensamento, e não o gesto do pensamento. E Jean Paulhan, que no Le Pont traversé fixou algumas maneiras do nosso pensamento se comportar em relação aos sonhos, revelou tais estratificações do pensamento humano com infinitamente mais tato, qualidade e certeza do que Maeterlinck tais contingências da alma, - por uma maior submissão à matéria, e pela exata elucidação desta matéria.

Antonin Artaud, Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. p. 45. Tradução livre: Vinícius N. Honesko


quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Exterioridades puras



A formação de uma exterioridade não é a simples passagem da imanência à transcendência. Exterior é o plano que se expõe em sua imanência puramente irredutível e monadológica. A transcendência não passa de um efeito aparente, uma dobra, que transborda de um continuum que a tudo perpassa. Não há e nem pode haver - e isso foi formulado de forma pungente em Espinosa e Deleuze - uma imanência pensada como plano imanente a algo (à vida, ao Sujeito, à consciência, etc.). “É quando a imanência é imanência apenas a si que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o plano transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito nem por um Objeto capaz de o conter.”[1] Bento Prado Jr., na conferência em que analisa o conceito de plano de imanência a partir do opúsculo “O que é a Filosofia” de Deleuze/Guattari, propositadamente intitulada “Plano de Imanência e Vida”, assevera que se o plano de imanência, como instância que precede a própria relação entre sujeitos e objetos (sendo simultaneamente contemporâneo e quase coextensivo à formação de conceitos na instauração filosófica[2]) fosse imanente à vida, ele perderia imediatamente sua aseitas (na expressão escolástica “um ser que contém em si próprio a razão de seu ser”), transformando-se em mera abaleitas (o ser que depende de outra instância - ou outro ser - para sua existência). Contudo, “o imanente que não é imanente a nada específico é ele mesmo uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, uma imanência absoluta: ela é potência e beatitude completas.”[3] Este empirismo radical, indeterminado e indeterminável de uma vida (o artigo indefinido evidencia-se no qualificativo que invalida toda e qualquer qualificação) é a forma de uma exterioridade indômita que avassala próteses de exterioridade fundadas em não-lugares místicos, fantasmáticos ou mantidos à base de armas. É o que sempre está lá e se manterá mesmo quando os últimos ventos da catástrofe soprarem, ponto de velocidade e passividade infinitas... Um menino brincando com algumas pedras.


[1] DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... (Tradução de Alberto Pucheu e Caio Moreira). p. 161.
[2] Pois o plano de imanência, “sem os conceitos que nele inscrevem ossatura e coluna vertebral” dissolver-se-ia em “puro fluxo sem consistência e, no limite, em puro caos.” PRADO JR., Bento. Erro, ilusão, loucura. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 151.
[3] DELEUZE, Gilles. Idem. Ibidem.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

A Arca Russa - A elegia de Sokurov

Por Giorgio Agamben (In.: Las Ranas. Arte, Ensayo y Traducción. Buenos Aires, Abril de 2006, Ano 2, nº2. p. 81)

El contenido original de la elegía es el lamento - lamento fúnebre, según las noticias más antiguas. Y sin embargo, las primeras elegías conservadas en la poesia griega tienen un contenido claramento político y son exhortaciones a da la vida en defensa de la ciudad.
La ambigüedad de la elegía se sitúa en este dificil cruce entre política y lamento. En este sentido, los títulos obstinadamente elegíacos de las películas de Sokurov deben ser tomados literalmente. ¿A quién y qué cosas lamentan estas elegías? ¿La Unión Soviética, la libertad de Vilnius, la vieja Rusia, Europa? Todo esto, pero no solamente esto. El objeto del lamento de Sokurov es el poder o, más precisamente, su vacío central, que en la Unión Soviética empieza a aparecer implacablemente a partir de 1989, fecha de la primera elegía.
Este vacio se fija en los rostros inmóviles de la nomenklatura y, finalmente, en el rostro de El´cin frente al televisor.
La contemplación del poder - en cuanto es contemplación de un vacío - no puede ser sino elegíaca: ésta es la lección de Sokurov. En este punto, sus elegías rozan por un segundo el cine de Debord.
Pero, en el mismo instante, muestran su límite. Porque si el arca del poder está vacia, si justamente este vacío es el verdadero y último arcanum imperii, entonces la elegía debe romper su forma. Ella no tiene literalmente nada que lamentar. Acaso por ese motivo, evocando el "Arca" de Rusia, Sokurov ha debido introducir en la elegía la figura irónica de un extranjero, en cuyos labios el lamento se rompe incesantemente en balbuceo y en sonrisas.
Y el ruso, a cuya mirada debemos todo lo que vemos, es el signo de un presente que debe permanecer invisible, y al cual la posibilidad del lamento le ha sido vedada para siempre.

domingo, 14 de setembro de 2008

Um poema


Tenho pena do poema que sai de mim
Sai amargo e desconsolado
Sai bandido
Numa falange de palavras tortas
Sai sabendo que não vai voltar.

Sinto muito
(e é só o que sinto!)
Poema desespero
Angústia calada
Na calada da noite
gelada
como a cerveja que bebo...

Longe da estética,
Da métrica,
Do compasso
E da melodia

Assim sai o poema
Sombrio, escondido do sol
Sem Si, sem Ré, nem rima
Sem dó!
Ignorando,
passando por cima.

Sob o céu escuro
Sob a chuva de palavras
Encaro a tempestade...
E o poema segredo
é medo sob os pingos
É sozinho
E isso é escuridão
Mas abro meus olhos
E mesmo sem ter coragem

Tenho poema do medo que sai de mim.



Piter Walter Zander
Poeta radicado nos Campos Gerais do Paraná

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Images malgré tout...

Albrecht Dürer, Cristo no limbo, 1510

A questão das imagens está no coração desta grande agitação do tempo, nosso “mal-estar na cultura”. Seria preciso saber olhar nas imagens aquilo a que elas são as sobreviventes. Para que a história, liberada do puro passado (este absoluto, esta abstração), nos ajude a abrir o presente do tempo.

Didi-Huberman, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2005. p. 226. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Imagens de perguntas

Painel 31 do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg


Qual a recomposição material implícita na exposição de imagens de si nos espaços virtuais? Digo, quais os mecanismos de encadeamento-ligação entre a imagem exposta na internet, p.ex., e os objetos reais, cujos traços refletidos pela luz foram capturados e impressos na memória virtual de uma máquina e daqui lançados na rede virtual como imagem? Existe neste decalque de objeto, a imagem, ainda algum traço real do objeto? Quais as funções desta falta de objeto neste espaço que, por si só, implica relações outras de tempo e espaço? Os dados nos quais se converte a imagem no instante da sua transimissão pelo tempo-espaço desarranjado da virtualidade (e que se re-convertem em imagem nos mais diversos espaços-tempo, estes vinculados às irrupções que saltam a partir dos cliques dos receptores) são as fagulhas da imagem que deverá reemergir, ou outros objetos autômatos que re-criam a imagem fora de suas condições de extração originária? O que isso tudo tem a ver com a história que escreve (ou, que desenha) o homem? Há no jogo das virtualidades da internet o rompimento com a meretriz do "Era uma vez...", ou trata-se apenas de uma folguinha dada pelo cafetão? O que de mais carrega a instância das multiplicidades sincrônicas? É possível dizer que o lugar incerto do pulular das imagens esgota a história? O que na história de nossas sociedades muda com estas concomitâncias a que se submentem as imagens - seu aparecimento, sua dissolução, seu reaparecimento, seu registro virtual, seu esquecimento? Será que este aparente presente intenso e inesgotável se desvencilha da imagem como representação dos objetos? Ou ainda, será que o que se abre é realmente um presente intenso e inesgotável? Não seria uma pseudo-imagem aquela que ainda pretende representar os objetos? Qual a verdade por trás de uma imagem? Há uma verdade por trás de uma imagem? Isto é, há um objeto? Há um objeto histórico? As imagens históricas são imagens de objetos históricos? Não há um enredo que encadeiou tais imagens para que se pudesse expô-las como imagens de objetos históricos? A história é um objeto ou é imaginada? E esta imaginação: é ela referencial de um objeto ou é uma corda solta que, sem objetos à mão, apenas joga com imagens?

É preciso que a humanidade se desvencilhe das imagens - que se objetificam na forma de fantasmas que acompanham os homens em sua jornada (cada vez mais fantasmáticas) e de quem estes se tornam cada vez mais reféns - e tente uma imaginação liberada das imagens. Ao mesmo tempo, este é o próprio movimento de custódia e resguardo das imagens, agora porém imagens...

sábado, 30 de agosto de 2008

Anônimo (III)


Mas o que é este campo virtual e estilhaçado que chamamos linguagem? Será mesmo algo que exista como ato, configurado em estruturas palpáveis (mesmo que não totalmente lógicas nem sistemáticas), ou um mero pressuposto insubsistente que paira simplesmente pela acomodação dos tempos culturais? Não será o dizer (o enunciar) possível apenas nesta falha (ilusória) a ser sempre suturada em um tecido (inexistente)? Não precisamos dispor de mitos a todo instante para expor uma vida que pulsa irredutível a todo mito, e nisso torná-la anônima mas, simultaneamente, dotada de permanência? O que é a linguagem senão um nada que precisamos a todo momento mover, fazer falar, adquirir “vida” própria (que chega a simular uma presença independente dos atos concretos de sua produção e possibilidade), a ponto de produzir a grande estereotipia do léxico, da sintaxe e da gramática como um todo? A linguagem, este fantasmagórico e astucioso Golem causador de transtornos e deslumbres a seu criador. Nada.

Imagem. Henri Cartier-Bresson MEXICO. Popocatepetl volcano. 1963.

Anônimo (II)

Um dia, em um instante de insana lucidez, alguém ousou este salto (para fora do anonimato humano, lingüístico, gregário). Foi o precursor desavisado de inúmeras e variadas expedições de colonização. A brecha por onde este sujeito pulou é considerada uma das tantas dessimetrias (assimiláveis e posteriormente louvadas) do tecido. Ergueram, como culto à memória deste desconhecido, uma estátua. Tomaram-no por poeta, filósofo, inclusive “humanista”. Decoraram a fissura de seu pulo com tantos adornos e costuras que ela se tornou um cânone de escalagem (vigiada sob a patrulha de técnicos e assistentes especializados em percorrer e catalogar sinuosidades). Há tempos só resta o pó deste sujeito representado em pose solene na estátua. Ele não imaginava que causaria tanto burburinho, talvez ousasse uma travessia mais arriscada (ou mesmo permaneceria inerte) se pudesse antever o estranho espetáculo.
Contudo, o que os técnicos de escalagem, notáveis representantes do rebanho, célebres e festejados anônimos produzidos pelo discurso esquecem é que a matriz que eles buscam tanto preservar está crivada por buracos. Em todo canto é possível encontrá-los (mesmo que não sejam discerníveis a olho nu). Os especialistas em fissuras e escalagens são aqueles que têm maior dificuldade em encontrá-los, pois se resumem a catalogar e a conhecer profundamente os já existentes (ou quando não são movidos por simples má-fé ao preservar o “eternamente ontem” do já dado, ou medo de ver perdido seu reconhecimento anônimo como catalogador mor da rachadurazinha que a ninguém incomoda). Os demais estão muito preocupados em andar pelos caminho já conhecidos, seguros, onde se morre de forma quase imperceptível.
Porém, alguns solitários, extraviados, sentem náuseas e vertigens pela imensa instabilidade que a tudo circunda. Esta nau-sía (uma virtude marítima) é o supra-sumo da saúde. Foi movido por um asco parecido que o sujeito da estátua tentou evadir-se. Não foi extremo o bastante. Deixou muitas pistas e rastros atrás de si.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Anônimo


Anônimo é todo aquele que se propõe “orientar-se” nas assimetrias da linguagem. Pois a linguagem é formada por arestas, dobras, frestas, fraturas, declives. Virtualidade com topologias próprias, extratos, camadas superpostas (onde “meta-linguagem” e ”linguagem objeto” são indiscerníveis); uma geografia acidentada e distendida: simulando o infinito na condição de vetá-lo... Mares inóspitos - de liberdade - policialmente cerceados. Neles se localizam águas coaguladas (até mortas); de uso comum; paraísos; rotas de bucaneiros, salteadores e contrabandistas; zonas de leves marolas; correntes turbulentas e mortais. Porém, mesmo o mais “selvagem” destes espaços não deixa de ser desde sempre patrulhado; é preciso acima de tudo evitar o risco do nada (caos?) situado fora do universo linguageiro (mesmo os presságios e suposições sobre este não-lugar são arriscados): onde o aventureiro arrisca a se transmutar em lunático, enfeitiçado por sereias, opiômano ou lotófago, parvo, degredado da “comunidade dos homens” (convivendo e compartilhando da condição das bestas, animais, mitos e demais entidades inumanas). Odisseu quando nomeia a si mesmo “Ninguém” é aquele que, no limite, ainda preserva uma identidade de discurso e expõe o mais elementar (e portanto exemplar) estado desta instância: o anonimato.



Imagem The Collective Invention. René Magritte. 1933.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Texto-teste... sans tête

A arte da conversa, Magritte

Diante do gigantesco monumento (será um monumento? será um vestígio de alguma civilização?) em que pedras e mais pedras se empilham e nos dão a impressão de um peso inimaginável, dois homenzinhos dialogam. De que falam? Podem falar das impressões que tal monumento lhes causa. Um deles talvez pode falar da idéia que tem diante de tal grandeza. O outro pode se dizer atônito com o fato de que nunca tinha visto nada semelhante; ou talvez pode achar que está apenas diante de um dessaranjo imenso, ao que seu amigo (será seu amigo?) pode dizer que não... Ou ainda ambos podem ter notado que à base da grande montanha exista algo como uma inscrição (uma formação) na qual se lê: RÊVE, ou, em português, SONHO. Talvez ambos vejam este sonho que se afunda como única clareza da massa de pedras. Talvez não seja a única. Um deles pode ter percebido e mostrado ao outro: "TRÊVE", trégua, que, não com tanta clareza, também ajuda a sustentar as pedras. Com um pouco mais de atenção, e depois de discutirem um pouco sobre o monumento (ou será uma ruína?), um dos dois senhores diz: "CRÈVE" - morte - "...também leio morte". Sonho, trégua e morte portanto são as palavras-pedras que dizem mais do que as duas pequenas personagens (e suas vozes inaudíveis) na sua longa conversa (será que eles realmente tiveram uma longa conversa?). Foucault percebe que ao caos do monte certa ordem é dada pelas pedras arranjadas em forma de SONHO, TRÉGUA E MORTE. Diz o filósofo francês que o silêncio das pedras domina estes dois tagarelas e assim o faz justamente dizendo: sonho, trégua e morte. Através de seu mutismo, as coisas - estas pedras - compõem palavras que nada pode apagar (daí talvez a solidez das pedras de Magritte ser um potente símbolo deste caráter inapagável das palavras). À revelia dos dois homens as pedras expõem suas palavras que àqueles se impõem no jogo cotidiano das conversas. A muda conversa dos dois homens está, portanto, diante de uma imensidão inorgânica que, em seu mutismo, é perfeitamente audível. As pedras do monumento-ruína (as pedras que no meio do caminho do poeta se encontram; as pedras-ruínas que se cristalizam no mundo como restos históricos, como traços-vestígios de civilizações; as pedras que se formatam como monumento) carregam em si, na sua conformação enquanto imagem histórica, uma assinatura, um algo que lhes permitem legibilidade. Tal é o efeito da tríade SONHO, TRÉGUA E MORTE no quadro de Magritte. No jogo do pintor é trazida à luz - numa modulação que (de)forma uma imagem, que subitamente ordena aquilo que parecia inordenável; dá leitura a um ilegível - uma distância, um descarte entre a imagem pictória das pedras (sua fulguração no quadro; seu dar-se como significante) e sua referência discursiva (o(s) significado(s): sonho, trégua e morte). É neste espaço que a inaudível conversa das pequenas personagens se encontra. Leituras das pedras; melhor dizendo, trata-se do espaço próprio das enunciações. Mais do que a colocação das pedras de modo a formar as palavras e menos do que o significante que tais palavras carregam em si, tal espaço é, talvez, justamente o ponto em que a imagem do quadro se forma (entre sua materialidade pictória e sua forma-quadro). Não se trata de um jogo de meta-linguagens (o discurso formado nas pedras em relação às próprias pedras, o discurso dos senhores em relação às pedras, o discurso dos observadores do quadro etc etc...), nos quais a justaposição de significados restaria sempre adstrita e fechada num sistema de referencialidade hermético (o jogo semiótico/semântico), mas da exposição do limiar entre as palavras e as coisas - limiar este que se configura como um índice (indicium, que, como nos lembra Agamben, remete ao latim dico, mostrar com a palavra, portanto, dizer). O que se mostra com a palavra não é um objeto exterior à linguagem (o que novamente revelaria seus dois planos: semiótico/semântico), mas é o próprio ter-lugar da linguagem, seu estatuto histórico. É enquanto índice histórico que a leitura do quadro de Magritte pode ser feita. No seu esforço por tornar legível um ilegível, os traços do artista expõem uma ambigüidade própria de uma imagem dialética, no sentido benjaminiano. Isto é, o trabalho crítico das personagens que pertencem ao quadro (e também daqueles que, de fora, olham o quadro) diante dos indícios (índices - que aqui são dizeres imemoriais que ecoam nas pedras). Este trabalho é precisamente um trabalho de memória, não no sentido de uma rememoração intencional, mas como escavação arqueológica (e aqui o cenário do quadro é exemplar: uma ambiente de início do mundo, como lembra Foucault). Porém, também esta escavação não é uma busca por uma origem no tempo (por mais que a pintura exponha a condição de início, ou de gigantomaquia). Não, não é disso que se trata. Não é nem um ante, nem um post, mas um estado anacrônico no qual a origem (a arké) é sempre presente (Didi-Huberman diria au-delà de la présence, bien en deçà de la représentation: alors, vers la présentation). Esta, a origem, não é representada (como um significante), nem arremessada para uma meta-história (como um significado de um símbolo representado), mas é apenas um cristal de tempo que marca o objeto histórico (este quadro de Magritte - sem desconexão forma-quadro/conteúdo-quadro) com uma assinatura que lhe garante legibilidade. Nesta escrita-imagética subtraí-se o primado da linguagem sobre a imagem, abrindo o espaço próprio da imaginação (esta descoberta medieval que preenche o vácuo entre o único intelecto possível e os indivíduos). Assim, é através da imaginação que a história se torna possível; melhor, através da imaginação que um historiador procura ter acesso àquilo que chama história. Tal acesso é interdito (ou confiscado por uma História oficial; ou ainda pela Outra História desejada - ainda que com boas intenções - ingenuamente, às vezes nem tanto - pelos vencidos) se a procura for intencional, seletiva, que separe os objetos da episteme que lhes circunda (os documentos históricos). Ler um objeto histórico, interpretar uma obra de arte, não é a produção de um discurso sobre algo (mais que interpretação, diria Raúl Antelo, é comentário); não é a atribuição de um sentido (que no objeto decide seu sentido), mas a leitura-imagética de sua origem, ou, com Agamben, de sua assinatura. Ler uma imagem que não se cristaliza como monumento, como significante ou significado, que não é uma forma bem formada mas uma deformação (forma em formação), é a tarefa do arqueólogo; ou seja, enquanto procura a forma em formação o arqueólogo (o filósofo, o crítico de arte, o próprio artista) tem acesso ao presente, à arké que, como lembra Didi-Huberman, não é nem um conceito (não é pura categoria lógica, porque é paradigma histórico), nem uma fonte das coisas (um arquétipo generativo). Às formas-imagens que se estabelecem como monumentos comemorativos (estanqueidades emolduradas em quadros-da-história), que nada mais celebram que a origem (o evento-origem), contrapõe-se aqui a rede dispersiva de sentidos de uma história que se lê nas infra-texturas (lembremos, de passagem, do inframince de Duchamp), nas assinaturas, em seus enunciados. Sem chronos, sem régua, portanto, sem destinação, a história perde assim sua bússola. É possível não mais falar em formação de imagens históricas, mas de (de)formações imagéticas da história: a tentativa de cumprir no imaginário uma história cujo espaço é uma imaginação sem imagens. Não mais atidos aos discursos (às palavras) históricos, nem tampouco obsessivamente presos às coisas (as coleções insistentemente colocadas em pedestais intocáveis) históricas. Como a face do Cristo impressa no Sudário (uma imagem achiropita, isto é, que "milagrosamente" teria aparecido sem ter sido feita por mãos humanas) faz deste um objeto de veneração, pois, deste modo, o Sudário carrega em si o toque do divino, a visibilidade do Deus invisível, a assinatura (com firma reconhecida, como queria Vinícius de Moraes - talvez o cartório do céu seja o Vaticano...) do próprio Deus, assim também a busca do arqueólogo deverá ser pela semelhança deixada pelo contato entre as palavras e as coisas. Esta busca, que traz o passado ao seu cumprimento no presente da sua legibilidade, é, talvez, aquilo que resta a todo filósofo, artista ou crítico...

O começo histórico é sempre acéfalo...


quinta-feira, 24 de julho de 2008

Glosa à puta razão...


Desculpem-me o mau gosto, mas, a título de perplexidade, leiamos em uníssono o guia que nem Maimônides conseguiria escrever...


"Preocupada com as discrepâncias no preenchimento do Curriculum Lattes, a Associação... solicitou aos professores Beltrano e Cicrano a elaboração de um conjunto de sugestões para a área de Fio-da-sofia, de modo a facilitar a avaliação do pesquisador pelos órgãos competentes. A partir de levantamentos da prática de preenchimento do Curriculum na área, bem como das normas do CMPqP que podem ser encontradas na “ajuda” do programa Lattes, os referidos professores chegaram ao presente documento, que a Associação torna público agora (as observações terão em vista o Curriculum em seu formato ampliado, uma vez que o CV acessado via internet é o completo e o formato resumido deixa de lado uma série de informações consideradas relevantes).
Antes de mais nada, há de se levar em conta que o Curriculum Lattes foi construído ao longo do tempo e pretende se adequar a uma grande multiplicidade de áreas, com suas culturas próprias. Vários itens foram incorporados, muitas vezes sem uma conexão lógica rigorosa, mas atendendo a aspectos pragmáticos de suma importância no dia a dia do pesquisador. Por isso, não se deve esperar deste documento uma espécie de modelo autoconsistente, de vez que algumas das sugestões apresentadas poderiam encontrar locais diferentes nas diversas categorias previstas pelo programa. Procurou-se apenas, com bom senso e pragmatismo, dar algumas soluções a problemas usuais encontrados no preenchimento dos diversos itens do CV. Além disso, como muitos itens são de preenchimento óbvio, a atenção foi concentrada nos casos considerados duvidosos, que permitem mais de uma interpretação."

Ainda que as boas intenções possam ser mencionadas, acho que não mais ruborizo ao pensar em ingenuidade... Aliás, o que nos permite mais de uma interpretação nas atuais circunstâncias??? Prá lá, prá cá, prá lá, prá cá.... sou um João bobo mesmo...
Como de costume, oremos:
Ó grande plataforma,
Ajudai-nos em nossos tortuosos caminhos.
Prometo que acertarei os pingos dos is e
que, meditante tuas bençãos, conseguirei
mais e mais pontos para meu cu-rículos.
Ó tu que lattes, por favor, não me mordas!
Livre minhas malditas mãos,
para que elas possam completar teus tão diletos espaços.
Prometo não errar porque, se assim o fizer,
sei que serás impiedosa!
Suplico, senhora plataforma,
para que do seu virgem seio
possa nasser nosso redentor.
Sim, venha ó rebento esperado,
pois gemendo neste vale de lágrimas
aguardamos o grande dia do seu-Juízo!
Amém

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Oração do espelho


Francis Picabia. L´oeil cacodylate, 1921.

Coma-me espelho!
Digira-me e sinta o ranço da minha carne!
Pois o que quero é ver
É me ver comido,
é aproveitar-me no seu íntimo!
Ó superfície bárbara!
Que tua lisura se encha com minhas fezes!
Faça com que me veja assim, como "sou"!
Um entulho atordoado por tantos de vós.

Ah espelho, faça de mim o meu outro!
Rogo para que sejas gentil
e mastigue minha carne com doçura.
Não me cuspa nesta merda que existe,
aqui do lado de cá da sua deliciosa boca.
Ah espelho, ah como sinto tua ausência.
Não podes me acompanhar, sempre?
Não podes cagar-me do lado de lá?!?
Que minha carne seja o motivo de tua indigestão.

Ó espelho, coma-me, mas depressa,
antes que a fedentina daqui entre na tua morada.
Aquele idiota do Narciso já teve seus regozijos,
deixe-te agora saborear minha putrefata carne.
Coma-me, mas não me vomite:
ainda não estou morno, olhe, estou quentinho!
Coma-me e faça de mim sua obra, obra-me!

Amém

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Algumas corruptelas

meditação a cabo.


como um Buda enfadado
a bebericar cervejas

imperturbavelmente

sentado num sofá.




Hai-cai o Muro de Berlim!


Por uma mera vogal ideológica
Todo beato é beat
Todo beat é beato




poema paulistano

pichados Pinheiros de pedra
na palimpsestica paulicéia psicótica.





foto Psychofun

sábado, 5 de julho de 2008

Sobre acólitos e afins...


Tintoretto, Crocifissione


Na celebração eucarística – as missas dos católicos romanos – existe uma figura interessante, cujas funções operatórias são ligadas à organização e à preparação dos instrumentos próprios à realização do rito: o acólito (que, quando ainda infantil, recebe o popular nome coroinha). Este jovem, muitas das vezes incomodado com a paramenta ministerial cujo uso lhe é forçosamente imposto, deve preparar o altar alguns instantes antes da realização da missa (organizando o cálice, as galhetas, as patenas, o ambão, o manustérgio, o sanguinho, a naveta e o turíbulo nos dias de festas, enfim, todos os apetrechos necessários para o grande sacrifício que ali se realizará). Como bom auxiliar, o acólito deve realizar todas as suas tarefas inadvertidamente. Ele, juntamente com os ministros – aqueles senhores de respeito, homens da sociedade local que representam algum papel de importância (em geral são farmacêuticos, médicos, advogados, empresários, enfim, todos operadores de funções sociais constantes) –, deve fazer com que nada fique fora do lugar na ordem dos eventos da celebração. Além destes atos pré-missa, também ao acólito é necessária a participação no próprio ato ritual. Assim, ele deve saber entoar todos os cantos, deve saber todas as respostas litúrgicas prescritas, bem como deve saber se movimentar imperceptivelmente no espaço do altar, de modo a servir o sacerdote com perfeição – colocando ao alcance deste todos os paramentos necessários para a realização do ato sacrificial-eucarístico. Sua participação, portanto, se dá principalmente durante o ato eucarístico, que compõe a parte final da missa: tocam a sineta no momento da consagração, incensam o sacerdote, preparam as galhetas, lavam as mãos dos sacerdotes e ministros e seguram a patena no momento da distribuição das hóstias consagradas aos fiéis. De todos os atos praticados pelos acólitos – confesso que já o fui certa vez –, talvez seja este último o que mais me chamava a atenção. À simplicidade do ato (acompanhar o ministro de eucaristia durante a distribuição das hóstias consagradas, atuando como salva-guarda do corpo de cristo – isto é, com patena em mãos, não pode deixar que nenhuma hóstia caia no chão) corresponde uma responsabilidade imensa: ele, o simples assistente, deve evitar que até mesmo as minúsculas partículas da hóstia consagrada venham a cair no chão, o que faria com que deus pudesse ser vítima de um pano de chão, por exemplo – tendo como triste fim uma estação de tratamento de esgoto de uma cidade interiorana qualquer. Ele, o simples assistente, que deve passar sem ser notado durante todo o ritual da missa, é o portador da salvação do próprio deus. Ele, o simples assistente, a presença irremediavelmente irredutível do infante no mais alto sacrifício que a nossa cultura ocidental jamais ostentou, é, juntamente com sua patena, o verdadeiro redentor do deus-trino. Ele, o simples assistente, a desajeitada criança dentro dos sérios paramentos eclesiásticos, já sempre relegado às penumbras da missa (“movimente-se com destreza de modo a cumprir estritamente tuas funções!!!” talvez seja a frase mais recorrente de um sacerdote), é o já sempre esquecido diante da magnitude do ato sacrificial. Ele, o simples assistente, que acompanha todo o ritual (como uma voz recôndita no algoz, uma brisa que lhe sussurra o que fazer com a vítima) para dele ser esquecido, ainda que, muitas vezes, tenha, com sua patena, resgatado o deus das sevícias do escovão da faxineira e, quiçá, das fétidas galerias de esgoto.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A morte e a mosca


... em todos os tempos, todos, morremos como moscas que o outono lança nos quartos onde rodopiavam cegamente numa vertigem imóvel, atapetando de repente as paredes com sua tola morte. Mas, passado o medo, ele reupera a tranqüilidade evocando o mundo mais feliz de outrora, e essa morte mesquinha que lhe causava frêmitos parece-lhe revelar somente a indigência de uma época votada ao divertimento e à pressa.
Maurice Blanchot, O Espaço Literário, p. 120.

sábado, 28 de junho de 2008

Bares proletários


Se há um remanescente da tradição do proletariado oitocentista no séc. XXI, ele certamente não será encontrado nas indústrias assepticamente automatizadas (ou, para usar de um termo corrente, parques tecnológicos de viés toyotista). Não que a exploração não seja mais a condição de manutenção global e pedra de toque para avaliação do capitalismo do presente: o trabalho sujo de produção da mais-valia foi simplesmente deslocado para eixos de total desregulamentação representados seja na informalidade, seja no sub-emprego precarizado com parcas “garantias formais”. Entretanto, com o ocaso da figura dos sindicatos e de todo vínculo (para alguns marxistas: orgânico) entre trabalhadores, o boteco (botequim, bar, birosca, bodegas e significantes afins) incorpora um dos últimos redutos de comunidade entre os deserdados. É nele que sonâmbulos consomem-se no transe etílico em meio ao cheiro de frituras, balcões de fórmicas, mesas de sinuca, petiscos boiando na gordura reaproveitada e muita fumaça de cigarros baratos. No referencial semântico de botequim, em sentido genuíno e estrito, não devemos incluir o grande número de lojas temática que simulam a simplicidade ou rusticidade proletária para o consumo de desavisados turistas da pequena e média burguesia. Estes não-lugares se limitam a estilizar um ambiente da terna e heróica boemia proletária de um capitalismo industrial edulcorado: com suas imitações de gaiola, cervejas e chope tradicionais, grupos de choro contratados e pequenas quinquilharias de coleção (antigas flâmulas de clubes, fotos em branco e preto, placas com ditos populares e mensagens sacanas sobre o fiado). Museus para pseudo-intelectuais onanisticamente saudosos. Ao contrário, o boteco genuíno é a zona limiar onde quem entra sabe que correrá riscos factíveis de não voltar para casa. Aliás, seu freqüentador médio já não está inserido numa estrutura familiar estável, em regra nem a possui. O destemor, a carência e a brutalidade formam ali uma conjunção saturada de tensões (para lembrar de um dos únicos filósofos que costumava freqüentar os genuínos de seu tempo). Não há espaço para estilizações. Não é à toa que só se localizam nas periferias ou nas regiões decadentes. É o cru e o não intelectual da vida; uma negação e sintoma radical das relações materiais de nosso tempo. Território onde aqueles que nada têm a perder a não ser suas algemas, - que lhes continuam a aferroar -, bebem a mais barata das bebidas sonhando com a mais magnífica das desforras.



Imagem. Le Café de nuit - 1888 (V. Van Gogh)