sábado, 27 de dezembro de 2008

Sudoreses


Repetidamente a idéia (imagem, sensação.. ou qualquer metáfora aproximativa para tratar de algo irrepresentável) da morte me surge. Ela não aparece de forma premeditada, como os preparativos para uma experiência de pensamento já de antemão preparada, nem vem revestida do pavor que comumente é associado à figuração da finitude por alguém também finito (propiciadora de estupor a todos nós, ‘desgraçadamente’ na clareira humana, na condição de viventes). Insinua-se como um pequeno sobressalto físico, um mal-estar próximo à náusea (nau-sía, esta afetação marítima...) em terra firme e demarcada. Estes sintomas físicos são os preparativos insones (esqueci de mencionar, não raro ocorrem no meio da madrugada) para um lampejo profano e de vigília de que, na infinidade impossível de contingências não catalogáveis, da genealogia de um plano cosmológico (não restrito apenas ao cosmos terrestre) e da história profunda e inconseqüente do tempo humano sobre a terra, de maneira miraculosamente banal, alguém (eu?) nasceu. Não estaria aqui para contar isso e nem pensar como “individualidade” não fosse a filigrana de um conjunto de arbitrariedades, saltos, constantes e derivas abissais (não é nada trivial o fato dos séculos de humanismo filosófico ocidental centrarem-se justamente neste conceito tão fastasmático e, por isso aterrador, concretamente presente, de sujeito). Mas meu cataclismo psíquico noturno (tão físico e prosaico como uma polução ou incontinência urinária, tão devastador como a impossível visão do nada) se dá na imediata seqüência - e ainda utilizarei uma metáfora - desta figuração. Após a consciência furtiva de toda esta travessia do ser, esta fenomenologia inapreensível para uma singularidade que fala, sonha, sofre, come, defeca, vive... dói muito saber que é preciso, sim é preciso!, morrer.



Imagem: Larry Towell, 1996. Canadá. Kent County. Mennonite. Magnun Photos.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Falar a jovens

Ao ser convidado para falar a respeito da importância da pesquisa no cenário contemporâneo comecei a me questionar sobre o quê falaria. Num primeiro momento pensei em fazer algum tipo de apresentação sobre o que venho estudando, o caminho que percorri – ainda que não tenha muita idade –, o que me levou a fazer mestrado, doutorado etc... No entanto, vi que tais reflexões, além de autoindulgentes, poderiam se passar por exibicionismo e egocentrismo banal de um jovem com pretensões que lhe ultrapassam em muito a competência. Comecei então a pensar em temas: talvez o problema do ensino superior no Brasil, ou ainda as perspectivas do cenário político-educacional hodierno, ou quiçá levantar uma discussão sobre os critérios de seleção e qualidade de trabalhos e textos acadêmicos (isto é, o problema dos TCCs, das monografia, dissertações e teses; problema este que se manifesta de diversas formas: a compra por parte de trabalhos prontos por parte de alunos inescrupulosos, a falta de preparo dos profissionais de educação nas orientações – lembro que mestrado e doutorado hoje podem ser encarados apenas como meros requisitos formais para se lecionar – etc. isso tudo a despeito da melhor possibilidade de acesso a livros, informações e trabalhos nas diversas áreas do conhecimento). Porém, também aqui percebi que estaria acendendo velas enquanto os refletores ainda estão ligados...
Continuei a pensar sobre o que poderia falar. Não sabia para que público falaria, portanto, não poderia me restringir a algum assunto específico. Assim, comecei a fechar várias portas e a entrever alguns tópicos que, segundo penso, seriam interessantes para uma reflexão sobre o problema da pesquisa, isto é, do estudo em nível superior. Porém, ainda não me satisfiz com a idéia. Lembrei-me então de uma conversa que tive com meu irmão por telefone, na qual ele me alertava sobre o quê deveria falar: “Cara, não precisa tomar um tema e escrever algo complexo. Apenas converse com os alunos a respeito de tuas experiências nas atividades de pesquisa; tente partilhar algo com eles, fale sobre algo que alunos e professores – enfim, a comunidade acadêmica – têm em comum. Ou seja, fale da pesquisa.”
Tais alertas de meu irmão me serviram, mais uma vez, para pensar a respeito do que não falar. Entretanto, ainda me restava pensar sobre o que falar para vocês sem cair em pedantismo ou sem chover no molhado (aliás, penso ser esta a prática mais contundente, contumaz e repetida da pesquisa nas universidades brasileiras). Diante deste problema, comecei a me questionar: o que hoje é fundamental e de interesse geral para o público das universidades? Talvez, ao menos suponho, o que se passa no dia-a-dia seja motivo de preocupações e indagações por parte daqueles que serão a elite privilegiada de uma sociedade em que apenas poucos têm acesso ao ensino superior. Então, eis que algumas questões de extrema atualidade me pareceram tópicos interessantes sobre os quais falar: a crise econômica mundial, as eleições municipais e as eleições norte-americanas.
Neste momento vocês devem se perguntar: mas o que há em comum entre a crise econômica, as eleições municipais e as eleições norte-americanas? Ou ainda, com certeza, alguns já pensaram o seguinte: “Ah, claro! Ele acabou de dizer que a pesquisas nas universidades não fazem mais que chover no molhado e começa sua fala justamente com o óbvio ululante.” Ou ainda alguém: “mas é claro que existe muita coisa em comum, pelo menos no que diz respeito à crise econômica e a disputa presidencial norte-americana.” Bem, como eu não poderia deixar de notar, vocês de certo modo têm razão ao emitirem tais juízos. É óbvio que existem especulações a respeito da política econômica que será adotada pelo novo governo democrata de Barack Obama nos E.U.A. e os rumos que a crise financeira tomará de janeiro de 2009 em diante; é também evidente que as eleições municipais brasileiras refletem o contentamento ou descontentamento dos eleitores brasileiros em relação aos seus governos municipais e que, em medida um pouco mais flexível, o contentamento ou descontentamento indireto em face da política de governo do Palácio do Planalto, isto é, do governo Lula (basta lembrar que, em São Paulo capital, não foi novidade alguma a derrota da ex-prefeita Marta Suplicy para Gilberto Kassab, levando-se em conta que no último pleito, 2006, Lula foi derrotado na capital paulista; também é importante lembrar que principalmente nos pobres municípios do interior brasileiro – aqueles cujo principal empregador é a prefeitura e nos quais as medidas paliativas anti-miséria do governo Lula (bolsa escola, bolsa família etc.) têm grande influência – os principais candidatos à prefeitura sempre tentaram colar suas imagens àquela do presidente Lula – isto é, um sinal da alta aprovação do governo[1]). Isso quer dizer: também as eleições municipais se conectam, ainda que indiretamente, com os problemas da economia mundial.
De todo modo, tenho que fazer anotações a respeito dos três problemas por mim avançados:
1) Em relação à crise econômica e seu reflexo na economia brasileira: não vou me ater ao modo de atuar específico do governo brasileiro, tampouco às intervenções do Banco Central e em que medidas estas ajudarão a chamada economia real – isto é, da micro-empresa de fundo de quintal que sobrevive de financiamentos na Caixa Econômica Federal (essas que podem estar instaladas em qualquer pequeno município ou grande metrópole) às mega-corporações (Petrobrás, Vale do Rio Doce, Gerdau etc.).
2) Também não me proponho a falar especificamente a respeito da nova configuração da política norte-americana (que, a meu ver, não é tão nova assim. Basta lembrar que toda a equipe de transição escalada por Obama é composta por ex-membros do governo Clinton) e de seus desafios e perspectivas.
3) Não vou tratar dos problemas atinentes à crise econômica mundial e suas conjunturas. Uma, não sou especialista em economia e falaria bobagens se a respeito disso me dispusesse a tecer algum tipo de comentário; duas, basta ler qualquer grande meio de comunicação para nos saturarmos de dados, gráficos, valores etc. a respeito da crise.
Sugeri três problemas; falei que eles têm em maior ou menor medida algo em comum; disse também que são questões importantes para quem se pretende estudante universitário; apontei que, a partir destes problemas, poderia fazer um discurso que não fosse pedante, nem que repetisse o já demasiadamente dito; porém, ao final, digo que não falarei de nenhum deles em especial. Ora, não estou sendo incongruente? Sobre o que falarei então?
Bem, lembrando mais uma vez a conversa que tive com meu irmão e pensando a respeito daquilo que lhes propus (isto é, falar sobre estes problemas contemporâneos: crise e política), suponho que um modo diverso de falar destes assuntos comuns seja analisando uma questão de fundo; ou seja, devo verificar com vocês a própria compreensão de uma palavra que está presente como eixo desses três problemas por mim trazidos, verificação essa que auxiliará uma reflexão e um estudo sobre esses e diversos outros problemas contemporâneos. Trata-se da palavra comum.
Não por acaso sugeri três temas que têm muito em comum. Porém, o que quer dizer comum? Segundo o dicionário Aurélio comum significa: “Adj. 2 g. 1. Pertence a todos ou a muitos. 2. Vulgar, trivial, ordinário. 3. Habitual, normal, usual, geral. 4. Feito em sociedade ou em comunidade. S.m. 5. Qualidade ou caráter de comum. 6. A maioria. 7. Aquilo que é comum, habitual, normal.”[2] Etimologicamente a palavra portuguesa comum (assim como a italiana comune, a francesa commun, o alemão kommun, o inglês common) deriva do latim munus. Por sua vez o sintagma latino munus, de acordo com o Lexicon Totius Latinitatis[3], têm três significados diversos: onus, officium e donum.[4] Tanto o primeiro como o segundo significado (isto é, ônus e ofício) têm uma carga semântica ligada a dever, obrigação, função, cargo. Por outro lado, donum, ou seja, dom, carrega um significado diferente dos dois primeiros: enquanto estes trazem de modo evidente a idéia de dever, dom traz essa idéia (de dever) de modo implícito. Ou seja, donum é uma espécie do gênero munus. Falo aqui de um dom obrigatório, o que à primeira vista parece algo contraditório. No entanto, alerto a vocês que esse dom é de uma categoria especial. De fato, trata-se de um dom cujo elemento de obrigatoriedade está presente. De acordo com Roberto Esposito, “uma vez que alguém aceitou o munus, está obrigado (onus) a retribuí-lo, seja em termos de bens, ou em termos de serviços (officium).”[5] Lembro, de relance, os importantes estudos sobre o dom efetuados no início do século XX pela recém-inaugurada etnologia francesa (com Marcel Mauss), que reverberou por todo o debate acerca da comunidade e sobre o trabalho humano nas ciências humanas.[6]
Assim, munus, enquanto dom, é o dom que se dá porque deve ser dado, e não o que se dá porque se pode dar, de um modo tão forte que o laço biunívoco pressuposto de uma relação de dever acaba por ser modificado e munus indica então o dom que se dá e não aquele que se recebe. Isto é, na transitividade do dar a dinâmica do dom se completa, gerando por conseguinte a idéia de que não há uma estabilidade na posse do dom, mas apenas perda, subtração; por fim, pode-se dizer que se trata da gratuidade que exige nova doação.[7] Ou ainda, nas palavras de Georges Bataille, “o valor de troca do dom resulta do fato de que o donatário, para apagar a humilhação e relevar a perda, deve satisfazer a obrigação, contratada por ele quando da aceitação, de responder ulteriormente por um dom ainda mais importante, isto é, de dar com usura.”[8] No fundo, a idéia que por trás deste comum – este dom – se esconde é justamente aquela de falta.
Basta, portanto, esse resgate etimológico do comum para podermos começar a ver as coisas com uma lente diferente (coisas que sugeri como temas problemáticos do contemporâneo).
Porém, propus questões a respeito das eleições, isto é, do meio através do qual em determinado território (município, estado, país), nos lugares ditos democráticos (ou seja, que têm como meio de eleição de seu governo o pleito, a formação por um consenso numerário), determinado povo organiza a formação de seu poder político (novamente, o governo do município, estado, país). No caso, p.ex., das eleições municipais: em determinado território os munícipes, através do pleito, elegem a classe política que se constituirá como autoridade poder instituído desta determinada comunidade. Com isso quero ressaltar que quando se fala em comunidade sempre são suscitadas idéias de pertencimento, identidade e propriedade (somente os habitantes de uma porção determinada de território podem eleger aqueles que exercerão o poder apenas neste território).
Assim, a idéia de comunidade – ou ainda, de modo geral, a de município – parece sempre atrelada àquelas características: pertencimento, identidade, propriedade. E os exemplos se disseminam: para os habitantes dos bairros de um município – que reclamam a sua identidade –, ou ainda para as chamadas tribos urbanas (emos, punks, hardcores, a galera do hip hop dentre tantos), ou ainda, de modo mais geral, para a própria formação da nacionalidade (sou brasileiro porque tenho tais e tais propriedades...). Na verdade, quando ressalto todas estas peculiaridades é a respeito de um discurso específico que estou falando: o discurso nacionalista (isto é, trata-se da lógica do moderno estado-nação[9]). De outro modo, posso ainda salientar que tal discurso se forma não a partir de uma lógica comunitária (de um com-munus – uma reunião de comuns, uma reunião de falta, já que comum é o que pertence a todos) como uma possível leitura banal poderia fazer, mas de uma lógica imunitária (do i-munus, daquilo que resguarda uma propriedade – o não-comum). Ou seja, ainda que os discursos políticos cotidianos insistam em falar na importância da comunidade, na defesa dos interesses do povo, na formação de uma cultura nacional identitária, não é de comunidade que se fala. Comunidade implica falta, risco, expropriação; ao contrário, a imunidade é a asseguração da propriedade, é a reserva em face do outro, é o pleno e não a falta (pleno de si).[10] Assim, se communitas “obriga os indivíduos a um empenho que os força a dar algo de próprio, ou ainda a si mesmos, a segunda [immunitas] reconstitui as suas identidades protegendo-lhes de uma contigüidade arriscada com o outro que não si mesmo, abrigando-os de todo ônus nos seus confrontos, fechando-lhes na concha de suas identidades subjetivas.”[11] A ingenuidade, portanto, desse discurso nacionalista (identitarista), que ainda se imagina portador da palavra da comunidade, se dá primeiramente por um incauto descuido etimológico:

'comum' é exatamente o contrário de ‘próprio’: comum é aquilo que não é próprio, nem apropriável por parte de alguém; que é de todos, ou ainda, de muitos – e, portanto, que não se liga ao mesmo, mas ao outro. (...) Isso significa que os membros da comunidade, mais que por um pertencimento, são vinculados por um dever de dom recíproco, por uma obrigação doadora, que os obriga a lançar-se fora de si, literalmente a expor-se, para ir ao encontro do outro e quase expropriar-se em seu favor.[12]

Diante disso, é-nos possível abrir o campo de análises dos problemas contemporâneos, suscitados no início, numa outra perspectiva: relendo o princípio fundacional do Estado-nação moderno (e que contemporaneamente parece ganhar força). Não é necessário que eu entre em considerações a respeito deste fundamento do Estado moderno, isto é, a respeito do Contrato (o contrato social hobbesiano). Porém, traço alguns detalhes, a partir desse problema etimológico apresentado (a questão do munus, do comum) para podermos sair de uma leitura dogmática e repetitiva, tão constante nos léxicos e manuais de introdução à teoria geral do estado.
O Estado moderno rege-se por um princípio não comunitário, mas imunitário. Isto é, quando Hobbes cria o Leviatã (o grande monstro Estado) o faz ao perceber que os homens podem ter em comum não é uma propriedade (uma natureza humana), mas o fato de que todos podem matar e serem mortos por todos. Hobbes percebe que a comunidade traz como princípio implícito uma falta, um dom, qual seja: um dom de morte (daqui a idéia da guerra de todos contra todos, o homem é o lobo do homem e tantas outras indiscriminadamente utilizadas). O que se torna inevitável é a neutralização da comunidade, isto é, a imunização (caso o indivíduo moderno queria manter sua propriedade[13]). Tal imunização é o rompimento com a dimensão originária (natural) e a instituição de uma origem artificial, ou seja, o contrato. O que se imuniza aqui é portanto o dom, o munus i-munus; contrato é antes de tudo o que não é dom. Diante do risco da comunidade – do esvaziamento e do risco de morte implícito nessa comunhão – uma outra lógica – justamente essa do contrato – deve entrar em ação: não mais o risco, o contato com o outro, mas o fechamento em si mesmo em troca de proteção do Estado Leviatã. A relação é verticalizada num eixo proteção-obediência. Não se funda o com-munus, o com-o-outro, mas as relações se abrem como não-relações com o outro, cuja única possibilidade se dá pela via do contrato – isto é, pela radical neutralização do comum e na defesa da propriedade-individualidade.
A instância contratual que preenche o vazio do comum na modernidade é justamente aquilo que interdita a vida em comum; lendo de outra maneira podemos ressaltar: o contrato hobbesiano (ou seja, o Estado tal como o compreendemos e no seio do qual vivemos) não é uma operação que se dá uma única vez (num hipotético estágio de passagem: do estado de natureza para o estado civil – lembremos que o estado de natureza não é uma época real, datável e localizável, mas uma hipótese aventada para explicitação do estado civil), mas é algo que opera a todo instante nas relações (diria, i-relações) quotidianas, principalmente na modernidade. Ao suposto estado civil em que vivemos, portanto, este que estaria sob a égide do contrato (da imunização do comum), é possível adicionar, como seu núcleo escondido, um estado natural que lhe sobrevive. Explico: ao contratarmos, ao nos imunizarmos, eliminamos o risco de morte violenta no compartilhamento das experiências comuns e fundamos a regularidade da nossa propriedade (individualidade) – isto é, traçamos limites, fechamos e demarcamos um espaço no qual poderemos viver sem a ameaça de morte porque este direito – o direito natural de impingir ao outro a morte – é cedido para um soberano (o Estado). Porém, contrariamente ao que podemos ingenuamente pensar, a instituição do Estado (a superação do estado natural no estado civil) não é a regularização estável da vida pela via do contrato (a imunização se dá em relação ao outro cidadão). O soberano (o leviatã, isto é, o Estado) conserva seu direito natural de fazer qualquer coisa em relação a qualquer um – isto é, tem o jus puniendi (a pretensão estatal de punição). O que de fato está em jogo nesta superposição da imunidade sobre a comunidade?
A fundação do estado moderno (nessa idéia do contrato) visa sacrificar a possibilidade do delito (isto é, do assassínio) que está implicada na idéia da comunidade. Ao risco de morte do estado de natureza sobrepõe-se a imunidade, desde que cessado este direito natural entre os súditos e preservado no soberano (o Estado). Mas outro paradoxo acaba aparecendo de modo evidente: se a instituição do estado é a supressão do com da comunidade, não é a supressão da própria possibilidade de existência do homem que se vê atacada (da vida comunitária)? Dito de outra forma: ao nos imunizarmos totalmente (os exemplos podem ser os mais variados pois se proliferam a esmo nos dias atuais: do fechamento em condomínios residenciais cada vez mais “vigiados” até o isolamento individual dito “patológico”, a “não-cordialidade” corriqueira nas ruas etc.) não estaríamos ao mesmo tempo que salvaguardando o nosso corpo biológico (e político) também impedindo o desenvolvimento das relações humanas? Ou seja, não seria o sacrifício de uma vida em detrimento de uma sobrevivência? (talvez a esterilidade da vida contemporânea possa ser um bom parâmetro para começarmos a nos sintonizar nestes problemas...)
A figura do contrato que institucionaliza as relações (as estataliza) não pode ser vista, neste sentido, sem as devidas críticas. Importante não é ressaltar a cessão dos direitos naturais por vontade dos súditos (isto é, os cidadãos – súditos – são livres e abstêm-se de determinado direito por vontade própria); muito mais relevante é a conservação deste direito natural violento por parte do soberano (este que retém em suas mãos a decisão sobre a proteção ou negação da vida dos súditos); a vontade não é o elemento primordial do contrato, e tampouco este é um evento único e definido que marcaria a passagem intransigente da natureza ao Estado. Ao contrário, a própria vida dos súditos é que é colocada como elemento fundamental da formação do Estado cuja fundação não pode ser vista, portanto, como fruto de um contrato (no sentido de acordo de vontades), mas como a manutenção constante de decisões soberanas sobre a vida (aqui a quase intransponibildade dos impasses suscitados pelos debates contemporâneos mais atuais: a eutanásia, o aborto etc., isto é, os limites de ingerência do Estado na própria vida privada dos indivíduos).
O mecanismo de imunização, portanto, se completa com a formação do Estado moderno este que, em que pese as ilusórias tentativas das filosofias e discursos neocomunitários, não é de modo algum uma comunidade, mas sim aquilo que sacrifica a comunidade. Entretanto, há retorno (se é que esse é o verbo correto) para uma comunidade? Bem, os intentos comunitários do século XX (os ditos comunismos reais) parece que comprovaram a impossibilidade desta assunção da comunidade. Mas, por outro lado, estamos fadados à imunização total, que transforma nossa vida em sobrevida (que produz vida humana em série)?
Na realidade penso que é hora de começarmos a pensar para além das aspirações por sonhos de um evento comunitário passado (uma elegia – um lamento – por algo que nunca se deu: talvez valha lembrar que as miticizações excessivas de um passado glorioso e a expectativa de revivê-lo atingiram seu apogeu na Alemanha nazista e revivem hoje em discursos neo-nacionais) e das intenções imunitárias ilimitadas dos discursos neo-liberais (uma lógica que tem levado à exacerbação total do sistema imunitário, lançando todos numa guerra intestina e ao pânico do contato). De fato, é a partir destes cruzamentos entre exclusão e inclusão, abertura e fechamento que é preciso começar a pensar; de fato, é preciso, a partir dessas coordenadas, tentar abrir para novas buscas no modo de se pensar a política e o contemporâneo.
Bem, retomo os problemas que suscitei no início: a crise econômica, as eleições norte-americanas e as eleições municipais. A equação destes três problemas sempre está atrelada pelo fio condutor chamado política. Algumas perguntas fundamentais da política são: como pode o homem viver numa polis (isto é, numa cidade, compartilhar sua vida com a dos demais homens)? Quais os modos possíveis de vida em comum? É possível ao homem viver junto aos seus semelhantes? Assim, quando uma crise – como a atualmente em trânsito nos mercados de capitais – eclode, na atual conjuntura sistemática global, o Estado (o Leviatã) passa a ser o grande salvador (com isso o nacionalismo toma corpo e a separação e fechamento imunitários ganham força); salvador este que deve ter uma governo exemplar (aí a figura quase messiânica que ingenuamente tomou forma em Barack Obama nos últimos meses condiz com a posição do maior estado-nacional contemporâneo: os E.U.A.), que possa reparar os fios em curto-circuito e novamente armar a máquina imunizadora; toda essa conjuntura global (digo mais, estatal global) toca diretamente na vida dos homens que, vivendo em metrópoles ou em pequenos municípios interioranos brasileiros, verão suas economias ruírem ou resplandecerem de acordo com o ritmo das atividades estatais. Ou seja, no fundo o problema que sempre permanece intocado, impensado é sempre a questão da necessidade intransponível do Estado, como se este monstro (lembro que o Leviatã é a metáfora utilizada por Hobbes – ou seja, o monstro do caos da mitologia fenícia) fosse além de indestrutível, o último guardião da humanidade. De fato, somente levando às últimas conseqüências um pensamento para além da comunidade estatal (do paradoxo de uma comunidade que é risco de morte e de uma imunização que, ao tentar suprimir este risco, acaba por elevá-lo à máxima potência), isto é, provando um pensamento do não-Estado, um pensamento da singularidade (não do totalmente comunitário, nem da individualidade) é que poderemos começar a entrever algo além do marasmo paradoxal de discursos que fulguram como cânticos glorificantes do Mesmo (as expectativas por um mundo vindouro, as expectativas pelo progresso salvador da humanidade e toda sorte de esperanças plasmadas por um princípio estatal-consensual que - ingênua ou intencionalmente - se supõe como única via possível para o homem).
Depois deste longo excurso a respeito do comum, da comunidade e dos problemas atinentes à formação política moderna, posso terminar não dando respostas (não teria tamanha pretensão) para os problemas que levantei, mas oferecendo novas vias de acesso aos problemas; isto é, tento uma outra perspectiva, diversa daquela do dogmatismo acadêmico tacanho, que incita à repetição e à reprodução irrefletida de discursos prontos e de fundo alienante. Ainda assim, para finalizar, gostaria de aventar uma idéia que talvez seja também ela interessante para pensarmos o nosso tempo e refletirmos sobre os problemas inicialmente propostos: a amizade. Talvez um modo de pensarmos para além da communitas e da immunitas esteja presente no modo em que condividimos nossas vidas numa relação de amizade. Nada de comum nos une efetivamente numa amizade; “os amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto); eles são com-divididos pela experiência da amizade.”[14] Isto é, não tomam a vida como um objeto sobre o qual decidem o que é comum em relação às demais vidas, mas são eles mesmos (os amigos) condivididos pela experiência da amizade. “A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para dividir é o próprio fato de existir, a própria vida.”[15] A política, portanto, não a comunitária (no sentido de participação num comum), tampouco a imunitária (a do Estado moderno), tem como núcleo originário a relação de amizade, esta pura condivisão da vida, da existência. Obviamente que tentar pensar num mundo como esse em que vivemos uma política para além do Estado, para além da comunidade não é tarefa fácil. Talvez, como sugeria meu irmão, o fato de compartilhar algo da própria existência com seus pares, seja um passo para podermos encarar esta empresa; talvez encarando a universidade como o espaço onde se pode iniciar uma condivisão da experiência de estarmos vivos com uma seriedade que ultrapasse os limites das formalidades (preenchimento de currículos para ganhar pontos em concursos, atrelamento incondicional a ditames produtivistas como meio de 'ultrapassar' as metas para o ano etc.) seja um bom início para quem se pretende estudante universitário. Ou seja, não há fórmulas para interpretarmos o mundo, assim como não há fórmulas para vivermos neste mundo. Resta-nos apenas a certeza de que existimos e, uma vez aqui, não há essência comum nem reduto imune que nos garanta uma existência com o outro que não seja simulação, ora de uma paraíso perdido, ora de um inferno que parece não ter fim...

[1] Conforme notícia publicada no Estadão em 29/09/2008, em setembro, a aprovação do governo Lula subia 8% de junho até setembro de 2008, atingindo a impressionante marca de 80%, enquanto a desaprovação caía de 24% para 17%, de acordo com o CNI/Ibope. Cf. http://www.estadao.com.br/nacional/not_nac250214,0.htm Ou ainda, por estes dias: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u479636.shtml
[2] DICIONÁRIO AURÉLIO BÁSICO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1988. p. 165.
[3] FORCELLINI, Aegidio. Lexicon Totius Latinitatis. Tom. III. Patavii: Typis Seminarii, 1940. p. 313.
[4] Exemplos de palavras derivadas de munus: município e suas derivações - munícipe, municipal -, comunidade, comunhão, dentre outras.
[5] ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2003. p. 27. “una vez que alguien ha aceptado el munus, está obligado (onus) a retribuirlo, ya sea en términos de bienes, o en términos de servicio (officium).”
[6] Não poderia deixar de agregar aqui a figura de Georges Bataille e de seu famoso ensaio La notion de dépense, publicado pela primeira vez na revista La critique sociale nº7, de janeiro de 1933. Aqui Bataille traça uma idéia da noção de gasto a partir do Essai sur le don de Marcel Mauss, publicado no Anée sociologique em 1925.
[7] ESPOSITO, Roberto. Idem. p. 28.
[8] BATAILLE, Georges. La Notion de Dépense. In: La Part Maudite. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 33. “La valeur d´échange du don resulte du fait que le donataire, pour effacer l´humiliation et relever le défi, doit satisfaire à l´obligation, contractée par lui lors de l´acceptation, de répondre ultérieurement par um don plus important, c´est-à-dire de rendre avec usure.”
[9] Ainda que alguns possam dizer: “Ah, mas isto é balela, pois estamos na era da globalização, da aldeia global etc.” relembro apenas o problema da crise financeira mundial: Quem está resgatando bancos e empresas à beira da falência? Quem intervém? A resposta é clara: os Bancos Centrais dos Estados-nacão, isto é, os governos nacionais. Além disso, basta ver a expressiva votação norte-americana. Digo expressiva com relação ao número total de eleitores votantes (o maior da história). À toa? Não. É o discurso nacionalista que se rearma em nova chave.
[10] Importante lembrar que este termo immunitas, contraposto aqui à communitas, é o mesmo utilizado pelos léxicos médicos (aliás, diga-se, é no mesmo período de formação do estado-nacional moderno que as ciências médicas começam a se definir com bases nas idéias de contágio e de exposição à riscos; é também aqui que começam as políticas de higiene nacionais – basta lembrar Foucault); no Brasil, ou seja, fora do centro, na colônia, vemos os reflexos desta política de higiene ainda no século XX – basta lembrar da revolta da vacina de 1904, durante o governo de Rodrigues Alves (Oswaldo Cruz o médico responsável).
[11] ESPOSITO, Roberto. Il dono della vita tra “communitas” e “immunitas” In: Umano Post-umano. Potere, sapere, etica nell´età globale. A cura di Mariapaola Fimiani, Vanna Gessa Kurotschka, Elena Pulcini. Roma: Editori Riuniti, 2004. pp. 64. “obliga gli individui a un impegno che li spinge a donare qualcosa di proprio, o addirittura se stessi, la seconda ricostituisce la loro identità proteggendoli da una contiguità rischiosa con l´altro da sé, sollevandoli da ogni onere nei suoi confronti, richiudendoli nel guscio della loro identià soggettiva.”
[12] Idem. pp. 63-64. “’comune’ è esattamente il contrario di ‘proprio’: è comune ciò che non è próprio, né appropriabile da parte di qualcuno; che è di tutti, o quantomeno di molti – e dunque che non si rapporta allo stesso, ma all´altro. (...) Ciò significa che i membri della comunità, piuttosto che da un´appartenenza, sono vincolati da un dovere di dono recíproco, da un obbligo donativo, che li spinge a sporgersi fuori di sé, letteralmente a esporsi, per rivolgersi all´altro e quase a espropriarsi in suo favore.”
[13] Lembremos também desta noção que a nós parece tão comum: indivíduo. De fato, indivíduo é quem se mantém in-diviso, fechado, absolutizado em si mesmo, que tem seus limites bem delimitados em relação aos demais. Isso se dá somente quando estamos liberados da dívida que nos vincula mutuamente; isto é, liberados do contato e do possível contágio; liberados do que ameaça nossa identidade, nosso próprio. Imunizados.
[14] AGAMBEN, Giorgio. L´amico. Roma: Nottetempo, 2007. p. 19. “Gli amici non condividono qualcosa (una nascita, una legge, un luogo, un gusto): essi sono com-divisi dall´esperienza dell´amicizia.”
[15] Idem. “L´amicizia à la condivisione che precede ogni divisione, perché ciò che ha da spartire è il fatto stesso di esistere, la vita stessa.”

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Libelo


Acusar e julgar são termos hoje gastos por sua indiscriminada apropriação por funcionários estatais que talvez façam tudo em suas engrenagens menos julgar (quiçá justamente por isso fazem o que fazem sem o menor escrúpulo de auto-análise).

Partindo da premissa de que toda acusação pressupõe um julgamento, no sentido kantiano e não estupidamente decisionista do termo, explica-se de imediato a quase completa inexistência de críticas (e, portanto, acusações contundentes) ao nosso tempo de catástrofes humanas banalmente aceitas como “fatos naturais” com os quais “necessariamente” se deve “conviver”.

O próprio local irredutível da crítica quer se dar ares, em suas paródicas simulações no presente, de função profissional (inclusive catalogada em “currículos oficiais”), em uma má-consciência que chega aos fastígios do cômico. O “intelectual” salaud médio nada mais quer do que buscar seu local (devidamente sitiado) no estado de coisas exatamente pré-formatado pelo mundo tal qual é, em sua insipidez estéril de horizontes, quaisquer que sejam. A “crítica” quer ter seu espaço no estabelecido e ainda ser nele louvada. Não só a potência constituinte da crítica efetiva é capturada, mas principal e diretamente a vida que pretenda expô-la de forma imanente. Ou melhor, a “crítica” - mesmo não doutrinária e não metafísica - pode prosperar e até receber ouvintes (pagantes!) massivos caso permaneça no plano seguro da doutrina e da metafísica. A vida danificada permanece intocável em sua parcialidade claustrofóbica. Aqui se manifesta o alto teor de má-fé ou, quando esta inexiste, vertiginosa inquietação, que toda “crítica” teórica no presente inevitavelmente carrega consigo. Por outro lado, torna-se extremamente perigoso ousar viver demasiadamente (não distinguindo muito bem o “cânone de separação” entre o logos e a vida).

Restituir ao mundo dos dispositivos “socialmente inalteráveis” seu caráter aleatório e de avaliações (integralmente humanas e de poder humano) genericamente aceitas (ao ponto de sua esclerose!) seria pensar uma política que, retirando o juízo de seu torpor, desative e profane a pura forma fetichista da administração (policialesca) travestida em política, assim como nos faça despertar do pesadelo dogmático do sempre-foi-e-assim-permanecerá, ousando pensar uma “história” que nunca se exaure e um presente dilatado ontologicamente imprevisível.

Mesmo que de andaimes frágeis e propiciadores de vertigem a seus ocupantes é imperioso não se escusar das acusações que o nosso tempo exige.



sp, ano 40 pós 68.



imagem. Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). Los Caprichos, Plate 39 Asta su Abuelo.