sábado, 28 de junho de 2014

Tempo oportuno


Ecce homo. Fui também eu apresentado a julgamento, diante do palácio: "a máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia." Enquanto o mineiro perfurava o céu de chumbo, em meu juízo suprimia minha própria vida pela lascívia de Kronos, o tempo, esse implacável devorador que me iludia com iscas suaves e me fazia tentar digerir tudo o que de mim se aproximava. Espectros dos mesmos sem roteiros tristes périplos que repito em busca de mim mesmo. Talvez tenha cruzado os mares atrás de sua imagem sem perceber que você gostava de vir a mim nas tranças de Kairós, não na saliva de Kronos. Tal qual o Drummond que releio sob o som das chuvas que acontecem no passado, ainda ouço o eco de sua voz. Enquanto fugia, recebia suas notas de desejo e, ao largo de árvores frutíferas, molhávamos os pés sob sol de nossas origens, escondidos da fúria do tempo. Não no paraíso, esse insondável, mas no tempo oportuno, Kairós, do encontro de nossos olhares, outrora, num poema, chamado felicidade. Kronos, entretanto, é implacável, e com sua ira tenta, a todo custo, jogar-me para dentro da máquina do mundo. E estou diante do meu juiz que, pela voz de alguém que fala ao poeta, diz a todo instante, como que me dar um novo fôlego:

"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

Aplaco, então, com uma calma inadvertida, as ânsias que me fizeram um ser em despedida. Vejo poemas onde há pouco me consumiam as torturas do julgamento. Desfaço-me dos planos, em meus bolsos colocados por Kronos, e tento retomar a linha da contingência que, numa celebração da passagem, veio a mim como uma nota de viagem. Volto os olhos à lua dos sonhos, não mais regida por suas fases, mas pela percepção de sua instantânea beleza que, neste instante, é talvez o único lugar onde posso agasalhar meu peito...

Imagem: Francesco Salviati. Tempo como oportunidade (Kairós). 1543-45. Palazzo Vecchio, Firenze.  

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Não há mundo comum: é preciso compô-lo

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Não há mundo comum. Jamais houve. O pluralismo está conosco para sempre. Pluralismo de culturas, sim, das ideologias, das opiniões, dos sentimentos, das religiões, das paixões, mas também pluralismo das naturezas, das relações com os mundos vivos, materiais e também com os mundos espirituais. Nenhum acordo possível sobre o que compõe o mundo, sobre os seres que o habitam, que o habitaram, que devem habitá-lo. Os desacordos não são superficiais, passageiros, devidos a simples erros de pedagogia ou de comunicação, mas fundamentais. Eles ferem as culturas e as naturezas, as metafísicas práticas, vividas, vivas, ativas. Inútil, por consequência, dizer: “Nós talvez diferimos superficialmente por nossas opiniões, nossas ideias, nossas paixões, mas, no fundo, somos todos semelhantes, nossa natureza é a mesma e aceitamos colocar de lado tudo o que nos separa, e então iremos partilhar o mesmo mundo, habitar a mesma morada universal”. Não, se nós colocamos de lado o que nos separa, não há nada que nos resta para colocar em comum. O pluralismo fere muito profundamente. O universo é um pluriverso (James).
A política, o que chamamos ordinariamente por esse nome, simplificou em demasia sua tarefa. Poderia haver pessoas que conhecem de antemão do que se compõe o mundo comum, e seria suficiente fazê-lo advir pela eliminação gradativa de tudo o que nos separa, de tudo o que nos coloca em desacordo. Seria suficiente colocar de lado as metafísicas particulares e entraríamos em acordo sobre certo número de princípios universais. Graças às vanguardas (de direita como de esquerda) entraríamos em acordo. Haveriam discussões, resistências, batalhas violentas, talvez, mas o sentido do progresso, a flecha do tempo, iria justamente numa direção notável, caminharia direito: revelar sob os desacordos superficiais a irrupção progressiva, progressista, desse universal, desse mundo comum que está, no fundo, já aí, escondido, em cada um de nós. Saberíamos o que está no mundo e seria suficiente revelá-lo. A política seria uma ciência: uma ciência do mundo comum já presente, este que seria preciso apenas fazer advir lutando contra todos os desacordos superficiais daqueles que não compreendem que já estão profundamente em acordo. Em acordo pelas leis da economia; pelas leis da biologia; pelas leis da natureza; pelas leis da moral; pelas leis da religião revelada (esta e não outra); pelas leis da discussão racional; pelas leis da política – as leis, as duras leis da política. Mas, em todo caso, existiriam leis.
Evidentemente, isso não é bem assim, uma vez que já há tantas leis, tantas ciências, tantos mundos comuns aí que há metafísicas caminhando ao lado do mundo. A política não é uma ciência, jamais poderá sê-lo, com qualquer nome que dermos a ela e a qualquer ciência que nos confessarmos. É uma arte, ou, ainda, artes, o que chamamos justamente as artes política. As artes pelas quais procuramos compor de modo progressivo o mundo comum. O mundo comum deve ser composto, tudo está aí. Ele já não está enterrado na natureza, em um universal, dissimulado sob os véus amassados das ideologias e das crenças as quais bastaria deixar de lado para que o acordo se faça. Ele deve ser feito, deve ser criado, deve ser instaurado. E, portanto, pode ser perdido. Aí está toda a diferença: se o mundo comum deve ser composto, podemos falhar na sua composição. A flecha do tempo avança, ou retrocede, ou se interrompe, de acordo com a maneira que o compomos. Nada de inevitável. Nada de inelutável. Nenhum sentido da história. E, ao mesmo tempo, sim, nós o compomos de maneira progressiva. Mas não é o mesmo progresso de antes, quando acreditávamos “na” ciência política. Sempre há “homens e mulheres de progresso”, progressistas e reacionários, mas, não obstante, isso depende do modo que conseguem ou não essa composição, a qual não tem mais nada de inevitável ou de inelutável. E, portanto, pode acontecer de nos enganarmos a todo instante quando marcamos com uma cruz aqueles que são do lado bom e aqueles que são do lado mau da história. Os lados têm uma furiosa tendência a variar, as partes a mudar de campo, sem falar das consequências inesperadas de nossas ações que multiplicam as hesitações sobre o sentido e o percurso da composição.
As artes políticas devem hesitar, tatear, experimentar, retomar, sempre recomeçar, refrescar continuamente seu trabalho de composição. Cada objeto de preocupação, cada caso, cada coisa, cada “issue”, cada preocupação: será preciso recomeçar. Não há nada que possamos transportar tal e qual de uma situação a outra; a cada vez será preciso ajustar e não aplicar, descobrir e não deduzir, especificar e não normalizar, descrever – antes de tudo, descrever. São artes, justamente, artifícios, astúcias, competências, artesanatos, práticas – não ciências. [...]
As artes políticas estão tão longe da ciência (política) quanto das artes. E ainda mais longe do que chamamos de arte pública, a criação de uma esfera pública: como se soubéssemos o que é o público! Como se o público não fosse um fantasma, um ser oculto, um ser eclipsado, capaz de aparecer, talvez, mas também de desaparecer, de se eclipsar – como hoje, quando o público parece ter desaparecido para sempre (Dewey). É por que o público deve ser composto, caso por caso, questão por questão, preocupação por preocupação, que não há de fato um público – assim como já não há um mundo aqui, que seria preciso revelar. O público pode desaparecer a todo instante se falhamos na sua composição. Nada de mais frágil do que o público (Lippmann). Fazer advir o espírito público é infinitamente mais difícil, mais raro e mais próprio a todos os tipos de manipulação do que virar a jogo: “Espírito, és tu?”. Silêncio para toda resposta – e não tomemos os ruídos de pedestais como sua mensagem criptografada.
De que se compõe, hoje, o que chamamos comumente a política? De um repertório patético de imitações de imitações de imitações daquilo que um dia foram, há dezenas de anos, melhor, de séculos, grandes invenções, grandes instaurações de obras coletivas. Um repertório de paixões, de atitudes, de palavras históricas que se reduz sem cessar a cada gasto, cada vez mais inútil, que se torna menos legível em cada passagem, como uma fotocópia da fotocópia da fotocópia. Há um mundo, um pluriverso a ser composto e temos, para afrontá-lo, três ou quatro paixões, duas ou três reações, cinco ou seis sentimentos automáticos, algumas indignações, um pequeno número de reflexos condicionados, algumas atitudes bem intencionadas, um punhado de críticas já feitas. De um lado, uma multidão, de outro, quatro ou cinco conceitos. E gostaríamos de compor a primeira com os segundos! Sem busca e sem obra – sem obra, novamente, sem retomar tudo fresco, mais uma vez, pois não há nenhum outro meio de compor o mundo comum, sabemos bem, do que o recompondo, do que retomando desde o início o movimento de composição.   

Bruno Latour. Il n’y a pas de monde commun: il faut le composer. In.: Multitudes. N. 45. Special, été 2011. Disponível em: http://www.multitudes.net/il-n-y-a-pas-de-monde-commun-il/ (Tradução: Vinícius N. Honesko)
          


segunda-feira, 23 de junho de 2014

Folha em branco



Nos rincões turbulentos da memória, 
o vento que leva os últimos gestos de uma folha. 
Espaços vazios, guilhotinados que dançam a vida sem tristeza, 
doces sorrisos colorindo o mar do grande Nada,
nosso habitante desde a eternidade. 

A folha ainda pode estar em branco, 
o vento ainda não ter soprado, 
mas a memória ainda geme, sôfrega.
Balbucio palavras em seu nome, ó grande Nada,
e nenhuma flor lança suas tintas sobre a folha.

Suas imagens passeiam tal qual nubentes 
em carruagens reais, ansiosos pelo encontro de suas ausências.
São elas os últimos gestos de uma folha?
Nenhum som, nenhuma voz,
apenas a eternidade vazia, me colocando à sua espera.

Chamo os guilhotinados no alvoroço da grande festa.
Na memória ruidosa, não me ouvem. 
Apanho a folha ainda em branco e nela desenho o vento,
tentando aplacar as ânsias de uma noite insone.
À sua espera, destronei com minhas mãos trêmulas a escuridão.

Pizarnik me deu fragmentos para dominar o silêncio,
mas não canso de silenciar minhas palavras.
A vida faz troça da memória e vejo, ainda na noite, que você 
vem à festa dos guilhotinados, à frágil felicidade 
que talvez reste como único gesto desta folha.  

Imagem: Chris Steele-Perkins. Da série "England, my England"

domingo, 22 de junho de 2014

Poema em prosa


A J.

Em sonho, o peso dos sopros ganham a dimensão das palavras. Qual a palavra para dizer que palavras nada dizem? Qual o peso de uma palavra? Em sonho, seu respirar abrasava meu rosto, mas era a escuridão da noite, tão profunda quanto seus olhos. Olhos estes que dizem palavras capazes de, talvez, ensinar-me o peso de uma palavra. Arredio, peço distância do cálice, quero mais uma vez os sopros, a voz sonhada. Nas noites no quarto úmido costumo carregar, em meu peito sonolento, seus sonhos em névoa. Qual o peso de uma palavra? Com seus silêncios encho meus olhos e arrisco atravessar oceanos que, um dia, num pequeno mapa, cartografei com minhas letras tortas. Como pude dizer seus olhos? Como pude navegar a escura imensidão que deles brotava? O cálice ainda está ao meu alcance e, talvez, não haja pai para afastá-lo.   

Imagem: Vincent Van Gogh. O semeador. 1888. Van Gogh Museu, Amsterdã.