segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Pequeno parágrafo sobre as cartas


Para J.L.B.

Escrever para si é trocar cartas com o vazio que é a linguagem. O silêncio das palavras que gritam desesperadamente à espera de que, um dia, a voz que as carrega seja o sentido da linguagem. Mas não há voz, não há linguagem, e o texto, ou melhor, esses fantasmas chamados letras, volta atormentador. As cartas, que tanto escrevemos e lemos, mesmo quando possuem destinatários (possíveis ou impossíveis), são os espectros das múltiplas vozes perdidas que nos habitavam. E por que tantas imagens (fantasmas, espectros) onde não há senão o vazio do chamado divino? Susan Sontag dizia em seu diário (talvez a forma mais intempestiva de escrever cartas) que os textos são objetos e que não há maneira de experimentar o que se escreve. "'Não estou dizendo algo'. Estou permitindo que 'algo' tenha uma voz, uma existência independente (uma existência independetemente de mim mesma)." É desse algo que ganha voz que nos fala o Deuteronômio (4, 12): "Então Iahweh vos falou do meio do fogo. Ouvíeis o som das palavras, mas nenhuma forma distinguistes: nada, além de uma voz!" O algo que se solta neste algo e ao mesmo tempo nada que é a linguagem é deus, e para ele não se escreve cartas (algo e ao mesmo tempo nada: também não é isso o outro nome da morte?). Aliás, o máximo que fazemos é cartografá-lo com nosso patético desespero, afinal, que sentido tem um mapa da China tão grande como a China?  

Imagem: Leonardo Alenza y Nieto. Sátira ao suicídio romântico. Museo Romántico, Madrid.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Esboços para uma Teoria do Hipster I


A questão que nos coloca a figura do hipster está ligada, tal como se viu, sobretudo a como se expor às relações (ou seja, uma questão político-figurativa). O hipster é uma figura, uma forma ídolo, uma tentativa desesperada de uma constituição subjetiva definitiva e completa, de formação de uma imagem arquetípica (um fora da história, um fora de relação) capaz de dar-lhe a possibilidade de um reconhecimento absoluto - em outras palavras, de ser popular por meio dessa imagem "eterna" de si (sua ser figura, seu ser tipo, seu ser deus). Não se trata de uma figura disposta à exposição política, à partilha do sensível, à assunção da efemeridade que está na constituição de um hábito (de uma ética, portanto), mas de uma figura que "pensa" ser sua especialidade (seu ser specie - que seria, num mundo não hipster, uma abertura aos outros) um absoluto intocável (praticamente uma imagem aquiropita - isto é, não feita por mãos humanas). O hipster não é um problema do século XXI; tampouco sua "origem" diz respeito aos "marginais e malditos" dos anos 60 do século XX (ainda que, para sua atual forma, esses sejam dados importantes). O hipster é a encarnação (o toque de deus que se faz "visível") de um ser especial que, porém, só pode ser ligado à "especiaria", à mercadoria. Ele é a transubstanciação do nada da mercadoria (o puro valor de troca) em carne e osso; é a mercadoria autoritária tornada corpo. O hipster é a corporificação e o rosto do que há tempos ensaia o capital: se à época de Adam Smith uma mão invisível governava e geria as nações e os homens, hoje colhe-se o fruto dessa gestão (gestação): o hipster, o capolavoro do mercado. O hipster, portanto, não se dá à política da exposição (à partilha de si no mundo dos homens) porque é uma imagem fora do tempo dos homens, porque é a carne que faltava ao sacrifício da religião chamada Capitalismo. Daí serem as insígnias da sua suposta e infindável diferenciação, tão recorrentes na sua "formatação" - o tom blasé, as indumentárias hype, as músicas exclusivíssimas, as posição de quem está na crista de uma eterna onda e mesmo o esquerdismo McDonald's -, tão somente paramentas, ritos e hinos de um sacrifício que hoje, finalmente (e o sonho da razão que gera monstros goyesco nunca foi um desenho tão realista e sutil), ocorre a todo instante e em todo lugar. O hipster e seus antecessores - poderíamos dizer, os hipsters em "fase de testes": o antigo burguês parisiense, que já os Dimanches d'un burgeois de Paris, de Maupassant, apresenta no seu incômodo em não poder fazer uma representação em si da imagem da democracia (e eis que, sorrateiro, aparece um dos outros nomes da atual religião do capital), os chamados "punk de boutique" dos anos 70 e 80, os "alugados", os "opinionistas", os "sacadores" etc. - são as vítimas sacrificiais da religião contra a qual supostamente colocam-se (servem voluntariamente). Porém, diferentemente dos seus antepassados que ainda tinham certa consciência da sua impotência (uma condição para a resitência), no hipster há a completa ausência de tal consciência: o hipster crê-se capaz de tudo e no controle de todas as forças que agem sobre ele, quando, de fato, tal crença é somente o rito de passagem necessário à sua condição de vítima sacrificial. O sabichão, o hipster, portanto, "sabe" tudo e "pode" tudo pois essa é a característica que dele exige seu deus: o mercado. Não é um acaso que a atual forma do hipsterianismo tenha surgido em Nova York, a terra em que o touro de Wall Street golpeia, com seus chifres de bronze, as últimas faces da consciência de certa resistência e, nesta grande Plaza, faz com que suas vítimas encenem os mais variados papeis (sobretudo os performáticos politizados, pois assim o culto se completa) à espera da próxima e sacrificial corneada. E, com a anuência de suas vítimas, os algozes (que, ademais, serão também eles vítimas da própria devoção) substituem a fórmula hoc est corpus enim meum (Este é o meu corpo!) por um silencioso e, ao mesmo tempo, ensurdecedor, "matamos a política!"

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Prisioneiro acorrentado. 1806-12. Musée Bonnat, Bayonne.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O que é um hipster?


O hipster é a síntese da ideologia do capitalismo contemporâneo. É o capitalismo com má consciência, o esquerdismo tornado consumo de massa, moda. Junção de hippie com yuppie, o hipster é a figura que faz uso de indumentárias e performances pretensamente negadoras do mainstream simplesmente por estilo ou autopromoção. São mercadorias ambulantes, a "geração comercial" (Deresiewicz). O hipster médio adota um discurso esquerdista de almanaque, são conhecidos por seu desleixo cultivado nos mínimos detalhes, barbas, vestidos e calçados descolados, adereços retrôs, culto pelo underground ou pelo esotérico na música e na literatura (o hipster supõe estar para muito além do gosto da massa). Com o ar blasé dos solitários ou nos agrupamentos com risinhos ameliepoulainicos e papos repletos de boutades pseudo-filosóficas, nos caros bares sujos temáticos da moda ou nas redes sociais, o hipster é a máscara fajuta de um inconformista, a fachada enragé de alguém que apenas quer ser "popular". Estas figuras, quando são alimentadas pelos pais (esquerdistas frustrados, como professores de universidade aposentados, ou mesmo militares da reserva, até diretistas, malufistas, adeptos da TFP ou da Opus Dei) são metidos a artistas, a "intelectuais" (com óculos retrô), a cineastas sem filmografia. Ou, sem mesada, são publicitários, aplicadores da bolsa, empresários do ramo informático, "gestores culturais", empreendedores no mercado de orgânicos, managers! Um hipster convive muito bem com o mercado, com o dinheiro, com homework's, network's (etc.) e com sua privacidade burguesa e asséptica (com quadros de Sebastião Salgado e gravuras de um marginal da moda). Este é o melhor dos mundos possíveis! Os hipsters de São Paulo não vão além das marginais, habitam a parte boêmia da zona oeste, e a vila madalena tem muitos turistas para o hipster paulistano de carteirinha! Os aspirantes a hipster curitibocas, - a provinciana Londres brasileira é a capital brasileira do hipsterianismo -, não saberiam citar nem um único nome das 122 favelas "asquerosas" da cidade. "Sou esquerdista, mas não toque na minha mesada ou na minha herança!" O capitalismo de nosso tempo se tornou obsceno, é difícil para um jovem se dizer um conservador, com a cara lavada, sem se tornar impopular no grande mercado onde passa sua vida. O hipster é o direitista com barbas e trajes de guerrilheiro - ou a moça riponga frequentadora de rodas de samba de raiz - por crise de consciência. É a despolitização mais alienante travestida em performatismo pseudo-politizado. Portando eco-bags ou fumando marijuanas orgânicas. É a face jovem e mercantil do novo cinismo.    

Imagem: Matthew-Diffee

domingo, 14 de outubro de 2012

Pequeno parágrafo sobre o insustentável


Olho para rostos de morte delicadamente maquiados com os traços do tempo. Velhas rugas que parecem ainda carregar o grito de dores passadas revelam-me o insustentável e intransponível carregado por todo corpo vivo: a morte, senhorio do ser. Ela se insinua pelo desenho de todos esses rostos e não me deixa paz, não me deixa a paz. E por que os latinos pensaram o requiescat in pace como epitáfio? Por que a paz associa-se àquilo que nos aflige dia após dia? Por que a morte como descanso se ela é que nos trabalha a vida? E essas milhares de mortes que percorrem nossos corpos todos os dias voraz e docemente nos lançam às sombras das cores da vida, sorrateiras como nossas indelicadezas diante da banalidade da existência. Deixamo-nos guiar pela cegueira da marcha de chronos; deitamo-nos nus sob os refletores ofuscantes do insustentável senhorio da morte. Godard certa vez disse que Van Gogh teria inventado o amarelo quando queria pintar e já não havia sol. Insustentável é nossa condenação à existência, já que um dia ela se deixa dominar por esse vazio maquiado de tempo e, nesse caminho inexorável, só nos resta a tarefa de todos os dias começar a inventar um novo amarelo...

Imagem: Vincent Van Gogh. Oliveiras com céu amarelo e o sol. 1889. The Minneapolis Institute of Arts, Minneapolis.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Uma estrofe



E o tempo que levou uma rosa indecisa

a tirar sua cor dessas chamas extintas

era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.


Carlos Drummond de Andrade - do poema "Campo de Flores"
Imagem: Vlad Zimanas, "Bouquet of Flowers", 2004.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Pequeno parágrafo sobre urubus


Um grande rato morto era devorado por três grandes urubus famintos. A cena, grotesca e que ao mesmo tempo revelava a beleza da conservação da vida animal, decorria num dos lugares propícios a cartão postal da cidade. Curioso, porém, é como as pessoas que por ali passavam olhavam para aquilo com ar de repugnância, entretanto, sem conseguirem desviar o olhar daquelas aves de rapina. Era como se a imagem das vísceras do roedor, nos bicos dos pássaros, fizesse com que os que presenciavam o quase ritualístico ato se colocassem a pensar. Ora, lembrei imediatamente da sentença hobbesiana: "homo homini lupus". Nada mais equivocado, caro Hobbes. À elegância do caçador solitário não pode ser elevada a condição rapinosa deste vivente que possui a linguagem. Por trás das máscaras da personalidade - e das fantasias cientificistas do "animal racional" -, esconde-se o homem. Para a violência do abutre, que somente cumpre sua natureza no estripar a carniça, volta-se o olhar dos passantes não por um mero interesse pela peculiaridade da cena, em meio ao movimento dos automóveis na avenida, mas por reconhecer no gesto do grande pássaro negro, tal como num espelho, a sua mais íntima e velada condição.Vilipendiar o já morto, violentar a própria condição, tal parece ser o restante de possível a este bicho que fala a própria vida. "Homo homini vultur", caro Thomas, "homo homini vultur"...

Imagem: Hieronymus Bosch. A tentação de Santo Antão (detalhe). 1505-06. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

domingo, 7 de outubro de 2012

Em memória de Carlos Marighella



O sintoma evidente de que a casa-grande colonial ainda se mantém em pé no Brasil (e, talvez, de uma forma  mais cínica que no passado) está no rito litúrgico das eleições municipais nestes grotões e veredas perdidas do imenso território tupiniquim. Um exemplo pessoal: na cidade paranaense de onde escrevo, famílias de latifundiários revezam-se na gestão local desde que isso aqui era uma vila de parada para os tropeiros, na metade do séc. XIX.   

Acompanhando as apurações pelo rádio, só pude escutar os rumores do transe coletivo: os miseráveis das periferias - como não poderia deixar de ser, a cidade é pobre e violenta - votando em peso para o candidato majoritário: 20 e poucos anos, filho de deputado "vitalício" com portugais de soja no estado do Mato Grosso, varão da elite estúpida e espúria com olhos para Miami, etc. Como dizia o cientista político Tim Maia, o pobre, no Brasil, é de direita...   

Ainda não tivemos nossa revolução, a imensa maioria da senzala brasileira não ousou destronar estes patifes. E o que é pior: sustenta-os, pois naturalizou e despolitizou sua servidão diária. Como despertar estes milhões? Aqueles que não teriam nada a perder a não ser seu grilhões? Só uma revolução seria capaz de fazê-los acordar (elas são as madeleines proustianas da política), mas por aqui ela fracassou antes de florescer. Somos os filhos abortivos de uma revolução inexistente. Espectros condenados ao cotidiano de rebanho. Domesticado. 

Lembra-me um amigo amigo cronópio, citando "Lugares comunes": os princípios de 1789 ainda são insurgentes e incômodos para este nosso mundo. Neste país, todos os dias o cadáver de Carlos Mariguella é novamente enterrado.


Imagem: em  4 de novembro de 1969, surpreendido por uma emboscada na alameda Casa Branca, em São Paulo, Carlos Marighella foi assassinado pelos dos agentes do DOPS, comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Sobre epifanias e ascos


Solitário em uma cidade medieval desconhecida e vazia, em um terraço, munido de uma garrafa de vinho quente, tive uma iluminação profana. Não sei se ela foi causada pela minha tristeza, pela bebida, pelo cansaço de uma caminhada recente ou pelas milhares de andorinhas murmurando o tempo naquela pequena ilha de pedras brancas em meio à monotonia verde de sombreiros e oliveiras. 

Lembro-me de ter entornado a garrafa e ter chorado um bocado. Percebi que tinha envelhecido, senti no rosto o soco ontológico de se sentir vivo e ter de responder, mais uma vez, ao demônio de Nietzsche.   

A epifania foi quebrada por uma garota japonesa irrompendo no terraço munida de uma câmera. De forma angustiada, arrumava rápido seus apetrechos para gravar o espetáculo das aves vespertinas. Sem parar para ver - sim, ela não via - começou lançar sua objetiva ao horizonte, como se estivesse a caçar. Em um inglês canhestro perguntei a ela: ei, menina, você pensa que é imortal? 

Diante da perplexidade de minha pergunta, dada em um tom agressivo, lancei: você julga que salvará estas imagens em sua máquina, supõe que poderá desfrutá-las ainda no futuro, que está segura contra o tempo, contra estas intempéries. Mas este futuro não existe. Nada de nós se salva. Há isso, agora, somos este som, esta intempérie, este cheiro de comida no ar, este sol que cai atrás do horizonte, e você perde. Você se perde. Isto é muito deprimente.    

Ela deve ter me julgado um psicopata, pois desceu correndo as escadas. 

Uma epifania parecida me surgiu caminhando pelos morros desta cidade confusa e brutal que é São Paulo. Na rua Francisco Isoldi, uma viela em forma de ladeira na divisa de dois antigos bairros literalmente saqueados pela classe média-alta paulistana, um artista plástico deu um grito contra o absurdo dos gigantescos condomínios fechados da região, e transformou uma antiga e humilde casa, (ainda) remanescente, numa imagem dialética arquitetônica, um soco estético na cara destas pessoas,  os trancafiados nos carros e condomínios fechados, que também se julgam imortais.