quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O peso da morte

Andrea Mantegna, Lamentação sobre o corpo de Cristo (1490). Pinacoteca di Brera, Milão.
Nunca até hoje senti o peso da morte. Jamais ajudei a carregar um féretro. Tive a felicidade de, até hoje, nunca ter visto morrer um ente realmente próximo a mim. Já lamentei a morte de parentes (próximos, claro, mas não daqueles do rol mais interior), de colegas (não um daqueles amigos mais próximos) e conhecidos. Porém, nunca senti o peso da morte. Lembro sempre daqueles que já morreram e com quem mantinha contato: as saudações, os apertos de mãos, os abraços, os beijos... sempre me surge, juntamente com essas lembranças, uma sensação estranha de ter sentido a existência daqueles que já não mais existem. Lembro-me exatamente dos vários beijinhos de cumprimento em minha última tia falecida: "Oi Benisso, com´é que vai?" escuto-a novamente toda vez em que aquela sensação aparece. Engraçado, a leveza da voz de minha tia (que, lembro, não era pessoa fácil...) parece sempre querer me dizer algo. A morte quer me dizer algo?
Experimentar essas palavras, que não mais existem, que não mais são proferidas, palavras por assim dizer "mortas", que se foram com sua portadora, é uma tarefa que para mim urge ser cumprida. Não se trata, no entanto, de uma tarefa (um trabalho) em sentido operativo - como que a nos forçar um sentido próprio para aquelas palavras já totalmente impróprias -, mas de um descansar, um demorar na impropriedade que nos ronda nestas palavras mortas. Tampouco é um afligir-se diante da constatação da mortalidade da palavra (e, por óbvio que seja, da vida... aquela sensação pungente e aguda que por vezes nos bate na cara naqueles instantes únicos em que nos sentimos completamente mortais). Mas é o dar-se conta de que só perdendo a palavra própria, só na expropriação total da vida é que podemos sentir a intensidade da palavra presente, já não "nossa palavra", mas palavra pela qual "passamos" e "nos demoramos".
Lamentar a perda é, por vezes, esquecer-se da redenção que se dá pela perda. Redimir-se na perda de nossa propriedade é a abertura de um tempo possível, de uma palavra humana livre do peso da morte...
Nunca efetivamente senti o peso da morte...