quarta-feira, 21 de março de 2018

Para uma ontologia e uma política do gesto - Giorgio Agamben




Comecei a refletir sobe o gesto no início dos anos oitenta e posso dizer que, desde então, dele não deixei de me ocupar, mesmo se de modo descontínuo e subterrâneo. Havia começado, como com frequência mais ou menos conscientemente costumo fazer, não da norma e do alto – o gesto expressivo –, mas da exceção e do baixo, isto é, das patologias do gesto, as quais, por volta do fim do século XIX, encontraram sua situação clínica na síndrome de Gilles de la Tourette (hoje melhor conhecida como Síndrome de Tourette). De acordo com o título do estudo publicado por esse psiquiatra francês em 1885 (Étude sur une affection nerveuse caractérisée par de l'incoordination motrice accompagnée d'écholalie et de coprolalie), trata-se de um colapso de toda a esfera gestual, ou seja, de uma impressionante proliferação de tiques, tanto motores quanto verbais, que impedem o paciente de realizar mesmo os mais simples movimentos corpóreos, que se fragmentam em golpes espasmódicos e em manias e interrompem todo discurso com explosões coprolálicas e repetições.
O fato mais singular, que não havia deixado de me espantar, era que, a partir do estudo de La Tourette, os fenômenos em questão foram analisados e descritos pelos psiquiatras e neurologistas em milhares de casos e, em seguida, deixaram de ser registrados pelos anais médicos a partir dos primeiros anos do século XX para, então, reaparecer, de modo brusco, em 1971, quando Oliver Sacks, passeando pelas ruas de Nova Iorque, observa no intervalo de poucos minutos três casos evidentes de síndrome de Tourette. A hipótese que eu à época sugeria para explicar essa curiosa circunstância era que, nesse período, os tiques e as desordens gestuais haviam se tornado a norma, quase como se a humanidade ocidental progressivamente tivesse perdido seus gestos – ou, pelo menos, a capacidade de dominar a própria gestualidade. E, também, que o nascimento do cinema, as tentativas de Muybridge e Marey de fotografar o movimento, as pesquisas de Aby Warburg sobre as Pathosformeln e também, na filosofia, a ideia nietzschiana do eterno retorno, tivessem a ver com essa perda do gesto, fossem uma tentativa extrema de recuperar o que havia sido irrevogavelmente perdido.

É a partir dessas considerações que procurei encontrar uma resposta à pergunta: "o que é o gesto?", tarefa, como vocês verão, nada fácil. Os estudos históricos e antropológicos sobre o gesto me deixavam insatisfeito justamente porque não tentavam nem mesmo responder essa pergunta e chamavam de “gesto” qualquer movimento corpóreo, em particular os movimentos que tendiam a exprimir um significado. O gesto era considerado, como na retórica antiga (na qual, escreve Quintiliano, mesmo "as mãos falam"), como um sinal não verbal, que visa a traduzir e tornar visíveis significados verbais (tese que Elenio criticará em sua intervenção). Para chegar próximo de uma definição, será útil começar com algumas observações sobre o termo latino gestus e sobre o verbo gero, dos quais ele deriva. Trata-se de dois termos que existem apenas em âmbito latino, sem nenhum correlato nas outras línguas indo-europeias, e para os quais os linguistas hesitam em sugerir uma etimologia segura. Sua esfera de significado é particularmente ampla: é possível gerere uma barba ou uma roupa, mas também uma amizade, uma função e até mesmo a si mesmo (se gerere, “comportar-se”); gestus, por sua vez, pode significar qualquer atitude do corpo e da pessoa. Como sempre, eu havia encontrado uma indicação útil naquele maravilhoso conglomerado de intuições linguísticas que é o De lingua latina, de Varrão. Varrão distingue aí três "graus” da atividade humana, as quais ele denomina facere, agere e gerere. “Pode-se”, ele escreve, “fazer (facere) algo e não agir (agere), como o poeta que faz um drama, mas não o age [agere significa também “recitar”]; ao contrário, o ator (actor) age um drama, mas não o faz. Assim, o drama é feito pelo poeta, mas não é agido, enquanto pelo ator é agido, mas não feito. Pelo contrário, o imperator [o magistrado munido do poder supremo, o imperium], que se diz res gerere, com este não faz nem age, mas gerit, isto é, sustenta (sustinet), expressão traduzida por aqueles que carregam um peso [ou, segundo outros códigos, investem-se num cargo]” (VI, 77).
A distinção entre facere e agere deriva de Aristóteles, que na Ética a Nicômaco (1140b) opõe a ação (praxis) e a produção, o "fazer" (poiesis): "O gênero da praxis”, ele escreve, "é diverso do da poiesis. O fim do fazer é, com efeito, outro que o próprio fazer, enquanto o fim da praxis não pode ser outro, uma vez que agir bem é em si mesmo o fim”. O gesto não se deixa inscrever nos dois polos dessa alternativa, na qual Aristóteles pretendia fundar o primado da ação política: não é uma atividade dirigida para um escopo exterior, como a poiesis, nem um fim em si, como a práxis. Para a definição do gesto, de fato, nada é mais desviante do que representar, de um lado, uma esfera dos meios dirigidos a um fim (mover um braço para tomar um objeto ou para fabricar algo) e, de outro, um movimento que tem em si mesmo seu fim, como a ação política para Aristóteles, ou, para nós, modernos, para quem a dimensão política se tornou opaca, a atividade estética. Como Kafka havia compreendido ("há uma meta, mas nenhum caminho”), uma finalidade sem meios é tão desviante quanto uma medialidade que tem sentido apenas em relação a um fim externo.
Uma primeira definição – por certo insuficiente – que havia proposto era esta: o gesto não é nem um meio, nem um fim; antes, é a exibição de uma pura medialidade, o tornar visível um meio enquanto tal, em sua emancipação de toda finalidade. O exemplo do mímico é, nesse sentido, esclarecedor. O que imita o mímico? Não o gesto do braço com a finalidade de pegar um copo para beber ou com qualquer outro escopo, mas, ao contrário, a mimese perfeita seria a simples repetição desse determinado movimento tal e qual. O mímico imita o movimento, suspendendo, entretanto, sua relação com um fim. Isto é, ele expõe o gesto em sua pura medialidade e em sua pura comunicabilidade, independentemente de sua relação efetiva com um fim. Essa "medialidade sem fim” é, por assim dizer, a outra face da definição kantiana da beleza: "finalidade sem fim (Zweckmässigkeit ohne Zweck)". Mas enquanto a finalidade sem fim é paralisante e, de algum modo, passiva, pois mantém a forma vazia do fim sem nenhum conteúdo determinado, a medialidade que está em questão no gesto é ativa, porque nela o meio se mostra como tal, no próprio ato em que interrompe sua relação com um fim.

Temos aqui algo muito similar ao que Benjamin, em seu ensaio Para uma crítica da violência, chama "meio puro (reine Mittel)" e que no ensaio que precede este em três anos anterior, Sobre a língua em geral e sobre a língua dos homens, denomina "pura língua (reine Sprache)". Esses conceitos perdem seu caráter enigmático se são remetidos à esfera do gesto, da qual provêm. Como a violência pura é um meio que depõe e interrompe a relação jurídica entre meios legítimos e fins justos, e a pura língua é uma palavra que não comunica algo mas apenas a si mesma, isto é, uma pura comunicabilidade, assim, no gesto o homem não comunica um escopo ou um significado mais ou menos cifrado, mas sua própria essência linguística, a pura comunicabilidade daquele ato liberado de todo fim. No gesto não se conhece algo, mas apenas uma cognoscibilidade.



Portanto, decisivo para compreender a natureza do gesto é o momento da interrupção e da suspensão, isto é, sua relação com o tempo compreendido como sucessão cronológica linear. Sempre me tocou o fato de que um grande coreógrafo do século XV, Domenico da Piacenza, em seu tratado Dell'arte di ballare e danzare, coloque no centro da dança um momento de parada que denomina “fantasmata”. Eis sua definição: "uma presteza corporal, a qual [...] faz parar a cada instante como se tivesse visto a cabeça de Medusa, isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra naquele instante [...] agindo com medida e memória”.
Domenico chama “fantasmata” uma parada improvisada entre dois movimentos, a ponto de contrair na própria imóvel e petrificada tensão a medida e a memória de toda a série coreográfica. Aqui se vê com incomparável clareza que o gesto não é só o movimento corpóreo do dançarino, mas também – e sobretudo – sua pausa entre dois movimentos, a epoché que imobiliza e, ao mesmo tempo, comemora e exibe o movimento. Do gesto suspenso e imperioso, com o qual a grande dançarina flamenca Pastora Imperio anunciava seu exórdio, recordo que José Bergamín e Ramon Gaya, que a viram dançar, diziam que não era dança, mas a abertura do espaço onde a dança poderia acontecer. Aí, a parada precede quase que de modo profético o movimento do dançarino, como em Domenico o interrompia e rememorava.
Em todo caso, essencial é que essa imobilidade e essa parada sejam carregadas de tensão, como Lessing dizia do Laocoonte, que com seu gesto imóvel contraía em si tanto os movimentos que o precederam quanto os que teriam sucedido. É possível exprimir essa tensão carregada de motilidade, essa especial temporalidade messiânica e não linear do gesto, também por meio de sua incessante repetição. É algo do gênero que os antigos haviam intuído em sua representação do Ades, na qual as sombras dos mortos repetem infindavelmente um único gesto, o seu gesto, que os entrega à sua cognoscibilidade. Também aí é decisiva a ausência de qualquer finalidade efetiva, como no gesto das Danaides que jogam água em um recipiente furado. Ou como nos presépios mecânicos, nos quais os pastores que assistem ao evento messiânico apenas repetem interminavelmente seu humilde gesto cotidiano. E não está excluído que Nietzsche, em sua ideia do eterno retorno, procurasse apreender e contrair o tempo infinito em um gesto.

Nossa apresentação do gesto como meio puro, isto é, como exposição de uma medialidade sem fim e comunicação não de algo, mas de uma comunicabilidade, implica – ou, antes, exige – que tentemos definir de algum modo sua consistência ontológica. Se o gesto é caracterizado pela parada e pela suspensão, nas quais se dá a conhecer apenas uma cognoscibilidade, isso significa que ele tem apenas uma realidade negativa, da ordem não de um ser, mas de um não-ser? Qual é, em outras palavras, o modo de ser da cognoscibilidade?
Trata-se de tentar especificar a relação entre uma coisa e sua cognoscibilidade que, na história da metafísica, com frequência foi mal compreendida como a diferença ontológica entre ser e ente. Antes de tudo, é preciso restituir essa relação à sua natureza de relação fenomenológica, isto é, ao particularíssimo nexo, e quase harmonia, entre uma coisa e seu aparecer, entre um ente e seu dar-se a conhecer. É evidente que a cognoscibilidade de uma coisa não é uma outra coisa ao lado ou além da coisa, mas nem mesmo é a mera identidade da coisa, seu ser igual a si mesma. Exibir, como faz o gesto, a cognoscibilidade de algo significa então, simplesmente, nas palavras de Hölderlin, mostrá-lo “no meio de seu aparecer (in dem Mittel seiner Erscheinung)". O ente não é aqui de modo algum separável do ser, como, pelo contrário, a metafísica de maneira incessante tentou fazer, mas o ser é apenas o ente no meio de sua cognoscibilidade – é, nesse sentido, apenas um gesto.

Aqui, as categorias da ontologia – existência e essência, quidditas e quodditas, potência e ato, ser e ente – colapsam necessariamente uma sobre a outra, coincidem, isto é: acontecem juntas. Nessa perspectiva, esclarecedoras são as considerações dos filósofos medievais que, entre os séculos XII e XIII, interrogavam-se sobre o estatuto do movimento.
Averróis, em seu comentário à Física de Aristóteles, pergunta-se por que alguns filósofos puderam definir o movimento como um não-ser. Isso aconteceu – ele explica – porque o movimento não reingressa no âmbito da potência nem no do ato, mas é um ser intermediário entre essas duas categorias fundamentais da ontologia aristotélica, que ele define como "a realização da potência enquanto potência". Isto é, a potência não desaparece no ato, mas neste permanece e se mostra. De modo análogo, Roberto Grossatesta, cuja filosofia da luz imprimiu uma influência decisiva sobre Dante, distingue dois modos de realizar a potência no ato. Em um primeiro modo, o que está em potência se realiza e se exaure (Grossatesta fala de perfectio) no ato, no segundo, pelo contrário, o ato conserva (salva!) a potência em sua imperfeição (salvat ipsam in imperfectione). Ele dá o exemplo de algo que pode se tornar branco (o branqueável, albisibilis): no primeiro caso, ele se realiza e se anula no albedo, na brancura, no segundo, o ato mantém e conserva o branqueável como tal. (Que essa coincidência das duas categorias ontológicas, potência e ato, tenha um significado ético se compreende imediatamente ao se imaginar uma vida em que a "vivibilidade” jamais se exaure em um “vivido”, mas conserva em todo momento sua potência de viver.)
É significativo que como exemplo dessa potência que se conserva no ato Alberto Magno não encontre nada mais adequado do que o gesto do mímico e do dançarino. “A evolução circular em que se envolvem os mímicos (volutatio quam volvuntur mimi)", escreve ele em seu comentário à Física, “é a realização de seu ser hábil para a dança e de sua alegre potência de dançar enquanto potência (perfectio saltabilium sive potentium tripudiare et choreizare secundum quod in potentia sunt)". Entre a possibilidade e a realidade factual, a “exultação" [tripudio] do dançarino insinua aqui um terceiro gênero de ser, um meio em que a potência e o ato, o meio e o fim, compensam-se e exibem-se um ao outro. Esse frágil equilíbrio não é uma negação – é, antes, uma cambiável exposição, não uma estase, mas um agitar recíproco da potência no ato e do ato na potência. Certa vez, para descrever a especial qualidade da imagem artística, Focillon se serviu da metáfora de uma balança em equilíbrio precário, na qual a haste parece balançar, “milagre de uma imobilidade hesitante, tremor leve e imperceptível que nos indica que ela vive”. E é seguindo uma similar completa incompletude que, observando Loïe Fuller dançar, Mallarmé pôde escrever que ela era la Fontaine intarissable de soi-même; e, descrevendo Nijinski, Jacques Rivière podia dizer que "ele viaja por uma trilha que destrói à medida que a percorre, seguindo um fio misterioso que de pronto se torna invisível atrás de si [...] a cada vez que o corpo parece oferecer impulsos e ocasiões, e outras tantas vezes o movimento se interrompe e recomeça; e a cada vez ele sente em si mesmo um impulso possível de partida, outras tantas vezes reencontra e mantém seu salto. Retoma-se a cada instante, como uma fonte da qual deve exaurir sucessivamente todos os veios; sobe contra a corrente dentro de si e sua dança é a análise e a conta de todas as inclinações para se mover que descobre em si mesmo".
Não creio que seria possível encontrar palavras mais adequadas para descrever uma ontologia do gesto. Trata-se, naturalmente, de uma ontologia modal e não substancial, no sentido que seria possível dizer, nos termos de Spinoza, que os modos são os gestos do ser. E é significativo que o gesto do dançarino seja aqui definido por meio da interrupção e da incessante retomada de impulsos espontâneos que provêm de seu corpo, como os modos exprimem pontualmente o ser em sua inesgotável espontaneidade.

Não posso concluir estas reflexões sobre o gesto sem evocar, ainda que sumariamente, seu possível significado político. Vocês sabem que, de Aristóteles a Hannah Arendt, a esfera da política sempre foi definida como a esfera própria da praxis, isto é, da ação (actio é a tradução latina de praxis). Em uma pesquisa recente (recém publicada[1]), procurei mostrar que há uma relação constitutiva entre o conceito de ação (ele próprio, na origem, uma noção jurídica que designa a esfera do processo) e os de causa e de culpa. A hipótese que pretendia sugerir era a de que esses três conceitos constituíam em conjunto o dispositivo por meio do qual os comportamentos humanos são inscritos na esfera do direito e se tornam “culpados”, isto é, imputáveis de maneiras diversas a um sujeito. Ou seja, tornam-se um crimen, no significado originário do termo, talvez aparentado ao sânscrito karman, que indica a conexão implacável entre as ações de um sujeito e suas consequências. O direito e a moral nos habituaram assim à ideia de que o homem deva responder por suas ações, que nada nos é mais óbvio e evidente. Mesmo assim, não deveríamos nos esquecer de que toda a obra do maior teólogo do século XX, Franz Kafka, é apenas uma obstinada e quase obsessiva reflexão sobre esta única pergunta: "como pode um homem ser culpado?" – como pôde acontecer que uma mente humana tenha concebido a ideia de que suas "ações" devem ser-lhe imputadas e torná-lo culpado? Em minha pesquisa procurei mostrar que, na modernidade, a elaboração do conceito de "ação” é a tal ponto inseparável do conceito de "vontade” que é possível dizer que juntos eles se articulam em um paradigma cujo escopo é fundar a liberdade e, portanto, a responsabilidade do sujeito moderno. Por certo não é este o lugar para reconstruir a formação do conceito de vontade, o qual, quase ausente no mundo clássico, constitui-se progressivamente através de um processo secular em que gnose, hermetismo e neoplatonismo se unem com a teologia cristã, que sobre eles estabelece seu lugar. Quero aqui apenas debruçar-me sobre um momento, aparentemente desprezível, desse processo: aquele em que, chegado no ponto de sua Summa contra Gentiles – na qual deve afrontar o tema do bem e do mal, e o da ação humana –, Tomás enuncia o teorema segundo o qual omnis agens agit propter finem, cada homem que age determina a vontade em vistas de um escopo. É significativo que justamente neste ponto o doctor angelicus esbarre em um obstáculo inesperado, que diz respeito à esfera do gesto. “Há ações”, ele escreve, “que não parecem realizadas em vista de um fim, como as realizadas em um jogo (ludicrae), as contemplativas e as que são realizadas de maneira distraída (abseque attentione), como o gesto de tocar a própria barba (confricatio barbae) e outros similares, a partir das quais seria possível ser induzido a crer que um agente possa agir sem um fim”. Enquanto as ações lúdicas e as contemplativas se deixam compreender, mesmo que de modo forçoso, como aquelas que em si têm o próprio fim, mais embaraçante é o caso dos tiques e das ações distraídas, que Tomás procura, a todo custo, compreendê-las na categoria da finalidade, motivando-as com uma "imaginação improvisada” ou "com uma desordem dos humores que produz um prurido".
O que o teólogo não pode aceitar é que existam atos humanos realizados todos os dias que não se deixam, em caso algum, inscrever no dispositivo da vontade e dos fins. Tanto nas evoluções do dançarino quanto nas posturas e nos movimentos que fazemos sem perceber, o gesto não só jamais é, para aquele que o realiza, meio para um fim, mas nem mesmo pode ser considerado um fim em si. E como, em sua ausência de finalidade, a dança é a perfeita exibição da potência do corpo humano, assim podemos dizer que, no gesto, cada corpo, uma vez liberado de sua relação voluntária em relação a um fim, seja orgânico ou social, pode, pela primeira vez, explorar, sondar e mostrar todas as possibilidades de que é capaz.

A estas alturas vocês compreenderam que a hipótese que pretendo sugerir é que a ética e a política sejam a esfera do gesto e não da ação, e que, na crise aparentemente sem saída que essas duas esferas estão atravessando, tenha chegado o momento de se perguntar o que poderia ser uma atividade humana que não conheça a dualidade dos fins e dos meios – que seja, nesse sentido, gestualidade integral. Trata-se de um paradigma que, na tradição do Ocidente cristão, está presente, talvez, apenas na condição de Adão e Eva no paraíso terrestre antes da queda, naquele "jardim das delícias" onde, como diz Dante, “foi inocente a raiz humana”. Seria um acaso o poeta definir como “doce jogo” a condição paradisíaca e exibi-la na figura de uma jovem moça que dança?

"Como volteia, co' as plantas roçando
de leve o chão, e quase sem volvê-las
a dançarina, pé ante pé adiantando."[2]

Gostaria de voltar, neste ponto, à imagem do “jardim”, sob cujo signo pretendíamos colocar nossas pesquisas sobre o gesto. Parece-me lícito sugerir que o paradeisos, o jardim no Éden, que Dante define como o “lugar eleito / à humana natureza para seu ninho”, enquanto nomeia por excelência a feliz demora dos homens sobre a terra, possa e deva ser visto como um paradigma genuinamente gestual e político.


[1] AGAMBEN, Giorgio. Karman. Breve trattato sull’azione, la colpa e il gesto. Torino: Bollati Boringhieri, 2017.

[2] ALEGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Purgatório. Edição bilíngue. São Paulo: Ed. 34, 2010. Trad.: Italo Eugenio Mauro. p. 185 
 
AGAMBEN, Giorgio. Per un'ontologia e una politica del gesto. in.: Giardino di studi filosofici. Macerata: Quodlibet, 2018. Disponível em: https://www.quodlibet.it/libro/1000000000000 (Trad.: Vinícius N. Honesko)
 
Imagem: Pastora Imperio.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Agora em Acari






Jonnefer Francisco Barbosa

"O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens!" - Marielle Franco, em 10 de março de 2018. 


O que sustenta uma execução premeditada, cujas circunstâncias expressam nitidamente qual instituição pretendia calar Marielle Franco? Mas também a quem interessou a morte e o silêncio da relatora da comissão que fiscalizaria a intervenção na câmara de vereadores do Rio de Janeiro, em um contexto de interventores que exigem “garantias” de que não enfrentarão uma nova Comissão da Verdade? A certeza da impunidade e do silenciamento, a produção do medo via aparatos militares: o que sustentou o assassinato de Marielle Franco foi a própria intervenção militar. Uma investigação independente, distante dos aparatos interventores, é uma demanda elementar. Se não diretamente, o golpe com seu AI5 de 2018 (a intervenção) deslacrou uma pútrida caixa de pandora, no momento em que os golpistas se aliam a duas instituições que, no passado e no presente do Brasil, só podem ser chamadas de genocidas: a polícia militar e as forças armadas. O golpe de 1964 não atacou apenas comunistas e socialistas, mas também sociais-democratas, defensores das liberdades civis e líderes políticos dos mais diversos matizes ideológicos. O golpe de 2016 chega a outro patamar quando passa a neutralizar – pelo assassinato, simplesmente – a resistência em suas possibilidades futuras: lideranças jovens, como Marielle, quinta vereadora mais votada na segunda maior cidade do Brasil, ou Marcio de Oliveira Matos, uma das lideranças do MST assassinado na frente do filho de 6 anos no dia 26 de janeiro de 2018.Parte de uma esquerda que hoje se torna irrelevante politicamente proclama ressentida que nem golpe houve em 2016. Uma multidão barulhenta nas redes sociais, impulsionada pelo culto a um fascista canastrão (Bolsonaro), tripudia sobre a memória de Marielle. O genocídio da juventude negra e pobre é inaceitavelmente cotidiano. Mas após o golpe e a decretação da intervenção militar no Rio um outro patamar da barbárie e da sanguinária contra-insurreição é levantado. Na atual polícia política brasileira, gerida nos bastidores do GSI e da nova doutrina tupiniquim da guerra civil, os porões dos centros de detenção e a tortura são demodés e não econômicos – não que eles tenham deixado de existir. Mais atrelado à lógica neoliberal da “eficácia com os menores recursos possíveis” é o extermínio puro e simples, seja perpetrado por grupos de policiais ou soldados acobertados pela imunidade concedida pela lei 13.491/17, seja pelos sórdidos desdobramentos que essa imunidade desatou: os grupos de extermínio como práticas habituais para lidar com os inimigos políticos, como mórbida normalidade governamental. Enquanto isso, nesse barco rumo ao abismo chamado Brasil, os membros de um dos aparelhos judiciários mais onerosos do mundo, em um país cujo sistema judicial não é gratuito (as custas judiciais são exorbitantes e excludentes), batem panelas insolentemente, ofendem a instituição da greve ao manejar uma farsa completamente ilegal e imoral para manter regalias de mandarins; professores municipais apanham por tentar se expressar em um parlamento municipal (o local por excelência, nas democracias liberais, da própria “palavra”), quando suas aposentadorias estão sendo confiscadas em prol de rentistas e da especulação financeira; as eleições de 2018 provavelmente serão confiscadas; e mais um jovem morre, nesse exato momento, em algum rincão perdido e esquecido. Governa-se o futuro, a distopia é produzida neste exato momento, agora. Mas quando, em qual agora, a ira e o intolerável serão efetivamente politizados? Quando assumiremos nossa insurgência nessa guerra em que, mesmo contra nossa vontade e sem nossa adesão, fomos lançados?

# Em um sonho muito real, alguém sonhou que o 41º batalhão de Acari era reduzido a cinzas por milhares de pessoas enfurecidas. Elas exigiam um estado do mundo, aquilo que está além de qualquer individualidade ou propriedade, algo que é maior que a própria “vida pessoal ” ( “ativo” tão prezado e ao mesmo tempo tão simulado e negado nos tempos do neoliberalismo cibernético). No delírio desse sonhador kafkiano, o chacineiro 41º batalhão, a Bastilha do golpista Temer, era estilhaçado e destruído em nome da justiça.