quinta-feira, 31 de agosto de 2023

O escritor é como um ladrão de luzes – Giorgio Agamben


Não sei se a arte tem um objetivo, mas acredito que sua grandeza depende da ligação que ela assume com a realidade. A cegueira da consciência convencional faz com que a vida escorra para fora da vida e acabe por substituir o real pelo filtro do uso. Van Gogh, em uma das cartas a Théo, escreve que com frequência os homens vivem prisioneiros “dans je ne sais quelle cage horrible, horrible, três horrible”[1]. É desde essa cela que a arte nos deve salvar, e se não o faz, se não se coloca diante da realidade de modo absolutamente autêntico, mesmo que seja guiada por uma inteligência excepcional, essa inteligência jamais será daquela espécie que Dostoiévski definia como primária, e a obra que dela surgirá não será uma obra de arte. Continua Van Gogh em sua carta: “Sais-tu ce qui fait disparaître la prison? C’est toute affection profonde, sérieuse. Être amis, être frères, aimer...”[2] Há um poema de Elsa Morante no qual se exprime um conceito análogo: “Só quem ama conhece... Só a quem ama o Diverso ilumina seus esplendores”. Mas a arte faz algo mais do que o amor, não se limita a descobrir a realidade, mas penetra mais profundamente nela.

Não é sem razões que, devendo falar de um livro de Elsa Morante, fizemos essas considerações. Elsa Morante é, talvez, em nosso século, a escritora que mais teve consciência dessa tarefa suprema da arte, e que a ela se manteve constantemente fiel mesmo passando pelo desespero mais profundo, quando a vida chegou fatalmente a encontrar “o risco mortal da consciência”. Os contos que compõe essa coletânea (exceto os três últimos, dentre os quais O xale andaluz, que dá título ao volume) foram escritos antes de 1948, ano em que saiu Mentira e sortilégio. Mas não acreditem, por isso, que O xale andaluz apresenta uma Morante menor. Não existe uma Morante menor, ao menos nos volumes que ela publicou: operas menores certamente não são esses contos, assim como não o eram os poemas de Álibi, aos quais a crítica não prestou suficiente atenção. A profissão de fé que se lê em Aventura “Para ti, meu santo capricho, rosto divino, sem armas e sem bússola parti... Para amores difíceis eu nasci” jamais foi desmentida nem faltou a consciência da missão da arte. Existem, no Xale andaluz, dois contos (o primeiro, O ladrão de luzes, e o penúltimo, Dona Amália) que são como os dois polos extremos do mundo de Morante, as duas faces de sua fé. Há algo de profundamente poético na imagem de Jusvin, o guardião do templo que é encarregado de manter acesas as lamparinas dedicadas aos mortos e que uma noite decide apagá-las para lucrar no preço do óleo. “Uma noite, ele tinha acabado de entrar quando vi as luzes uma por uma se apagar; e ele saiu, cauteloso, com seu apagador, deixando atrás de si uma imensa escuridão”. Jusvin é o obscuro símbolo do artista e do homem moderno; como Jusvin, o artista moderno é um ladrão de luzes, seu delito é o preço que ele deve pagar à “imensa escuridão” que envolve a humanidade. Se Jusvin é a tragédia da arte e da morte, Dona Amália é, pelo contrário, o esplendor da arte e da vida. Seu segredo está nisto: “que ela, diferentemente das pessoas comuns, nunca adquiria, em relação aos aspectos (mesmo os mais costumeiros) da vida, o hábito do qual nascem a indiferença e o tédio”.

É para esse ideal que tende o desejo do homem, e, quando não pode atingi-lo, ele é similar ao Dom Miguel que, tendo perdido Dona Amália, se retira num castelo e morre de melancolia: “se não podia gozar de suas riquezas junto dela, todas elas lhe pareciam areias do deserto”.

Mas Dona Amália e o ladrão de luzes são também duas distintas imagens da vida, da qual a primeira decai e eternamente renasce da segunda nos acontecimentos da existência individual. E os contos de Elsa Morante, como seus romances, são contos de educação (educação do homem para si mesmo, para a vida e para a morte). Mas Andrea Campese, que passa por experiências infantis e viris, é algo mais do que uma representação da mudança de visão que se segue à saída da infância. Não é, talvez, também a mãe, Giuditta, que renuncia a uma miragem para aceitar seu novo e mais real destino? A correspondente mudança de Andrea aparece sobretudo como um dos mais poéticos símbolos (e, por isso, com frequência sua história vai além de seus eventos particulares) da condição humana na literatura contemporânea, a imagem do Eu envolto no véu de Maia diante de um mundo de fantasmas e de aparências:

 

Um triste, arrogante herói

Envolvido por um xale andaluz

 

Resta dizer algo do estilo de Elsa Morante, aquele estilo que, creio, se mostra como um mistério extraordinário para aqueles que não conseguem amá-lo. Seu realismo é como que animado por um íntimo processo de metamorfoses num abissal irrealismo sem fundo. Talvez a melhor definição de seu estilo tenha sido dada pela própria autora, quando escreveu na dedicatória de Mentira e sortilégio: “a agulha é fervilhante, a tela é fumaça”. Chama a atenção a precisão com que são descritos lugares e objetos; e, todavia, aqueles lugares e objetos não são o protocolo do real, mas a fundação de uma nova realidade. Falou-se do sentido do demoníaco de Elsa Morante: mas eu acredito que seria preciso falar com mais propriedade de sentido da demonicidade. A percepção da vida das coisas, do demônio que está nelas, é também a característica do fabular, um termo de comparação que vem espontaneamente ao ler esses contos (pensemos em A avó e em O jogo secreto, e no próprio xale andaluz). Mas o segredo do estilo de Elsa Morante está em sua relação com o mundo, que é demasiado complexa para este breve comentário, mas que certamente lembra a definição que Spinoza deu da benevolência como amor nascido da piedade e piedade nascida do amor.

Foi dito acima que Jusvin e Dona Amália são os dois símbolos extremos da condição do artista e do homem moderno. Mas num outro conto aproxima-se de uma figura que é de algum modo intermediária entre as duas e que talvez exprima a verdadeira mensagem de Elsa Morante. Em Soldado siciliano, enquanto a protagonista descansa numa cabana onde encontrou hospitalidade para a noite, de repente entra um soldado. Ele tem em mãos uma lâmpada de mineiro e a protagonista os faz observar “que iria acordar a todos com sua luz cegante”. O relato que ele faz em dialeto siciliano se abre com as palavras: “meu nome é Gabriele”. O que ele busca é “ser atingido, um dia ou outro”.

Não é fácil esquecer da aparição desse soldado que vaga pelo mundo com uma lanterna de mineiro, esperando a morte. É uma imagem estranhamente irmã e ao mesmo tempo antitética àquela de Andrea Campese, que corre de noite em direção do estábulo envolvido pelo xale andaluz. Diante desse dom de consciência de Elsa Morante, vêm espontaneamente aos lábios as palavras de um de seus poemas: 

 

Tudo o que te pertence, ou que de ti provém,

é cheio de uma graça fabulosa.   

 

 

Giorgio Agamben, Lo scrittore è come um ladro di lumi, originalmente publicado no jornal “Paese sera”, em 10 de janeiro de 1964. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko



[1] N.T.: em não sei qual jaula horrível, horrível, muito horrível.

[2] N.T.: Você sabe o que faz a prisão desaparecer? É toda afecção profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar...