quinta-feira, 31 de março de 2011

Gêmeos


A nítida sensação de que uma poesia pode ter a forma de uma rosa era fruto de uma noite cujos sonhos entraram dentro de sonhos. O despertar ainda sonhando, os sentidos ainda impregnados pela fragilidade e volatilidade dos panteões oníricos, toda a discordia concors que era vivida como a lógica causal mais férrea, tudo, absolutamente tudo, também poderia ter sido o sintoma de uma disperata vitalità. E a conexão entre opostos, uma vida angustiada, o fechar dos olhos dentro do sonho para reabri-los ainda sonhando... a vida dos séculos, Pier Paolo, a vida dos séculos. Você que a escutava com todos os sentidos de dentro daquele trem, o trem da vida, o qual gemia maravilhado e resignado com a própria existência; você que sabia que o trem se dava conta de que a vida era um segmento assinalado na própria vida; você que sabia que a vida era clara só no sonho.
Agora acordo (?) e vejo fotografias de flores com fantasmas ao fundo. Eles caminhavam por ali: na foto e também nos sonhos que me perseguiam. Não, não... eram apenas palavras que agora me seguiam, fazendo com que nada fosse definitivo, Ingeborg. E tais fantasmas-palavras, tais sons-imagens insignificantes, eram mortos-calados, eram monolitos que não me comunicavam nada? Não... não... Pier Paolo,
La morte non è
nel non poter comunicare
ma nel non poter più essere compresi
E talvez para mim não compreender o que me era comunicado tivesse sido a porta de ingresso para a ante-sala da palavra, para a minha palavra que agora não era compreendida. Era a desesperada vitalidade que clamava quando da minha entrada no Hades (buscava eu Eurídice? E o signo órfico retorna quando já não mais esperava por ele); talvez, assim como a Anne - do Maurice -, para quem tudo o que via e que sentia era apenas a ruptura que a separava do que via e do que sentia, também para mim as visões e sensações noturnas, por serem aquilo que não gostaria de ver nem de sentir, não passassem de enigmas que acabariam não somente cegando meus olhos, mas fazendo com que eles sentissem uma náusea profunda, com que expulsassem todo tipo de detritos que ali, no sonho, não eram mais que imagens que se montavam a partir de desejos de uma vida agoniada... ah, vitalidade desesperada...
O sonho entrava na vida, as fronteiras do dia e da noite não eram mais nada em relação às vidas que saltitavam e oscilavam em meio à incompreensão dos outros seres, em meio à morte. Mas quem disse que o sim e o não se excluem, Murilo?
As quatro colunas que sobraram do Templo dos Gêmeos, Castor e Pólux, na foto eram os elementos da mortalidade de um e da imortalidade de outro. Tampouco tal diferença fora suficiente para impedir que Zeus os unisse na constelação de Gêmeos, unindo-os assim no céu da imortalidade, unindo o finito ao infinito. As barreiras da vida, no mito, soçobram no sonho dos astros e, a partir de então, os Gêmeos guiam os argonautas... e talvez Pessoa possa ter sentido que viver não era preciso, mas que sim o era navegar justamente ao olhar para o céu. Mas olhando para a foto eu não via meus fantasmas que ali poderiam habitar, eu sonhava o sonho dentro do sonho e não havia luz do dia, nem flores a passear em forma de poema que me tirassem da incompreensão das palavras... vós, palavras! É, mais uma vez, Murilo, quem disse que a morte mata quando se cavalga o mito em pelo?

terça-feira, 29 de março de 2011

Nota liminar sobre o conceito de democracia



Todo discurso sobre o termo "democracia" está hoje falsificado por uma ambiguidade preliminar que condena ao mal entendido aqueles que o empregam. De que se fala quando se fala de democracia? Qual racionalidade, com efeito, esse termo revela? Uma observação um pouco atenta mostra que aqueles que debatem hoje sobre a democracia entendem esse termo tanto como uma forma de constituição do corpo político, como uma técnica de governo. Portanto, o termo remete, ao mesmo tempo, à conceitualização do direito público e àquela da prática administrativa: designa tanto a forma de legitimação do poder quanto as modalidades de seu exercício. Como no discurso político contemporâneo fica evidente que esse termo relaciona-se com muito mais frequência a uma técnica de governo - que, enquanto tal, não tem nada de particularmente tranquilizadora -, compreendemos o mal estar de quem continua a empregá-lo de boa fé no primeiro sentido.
Que o entrelaçamento dessas duas conceitualizações - jurídico-política de um lado, econômico-gestional de outro - tenha raízes profundas e não seja fácil desembaraçá-las pode ser visto de maneira clara no seguinte exemplo. Quando, nos clássicos do pensamento político grego, encontramos a palavra politeia (com frequência utilizada numa discussão sobre as diferentes formas de politeia: monarquia, oligarquia, democracia, assim como suas parekbaseis ou desvios), vemos que os tradutores traduzem essa palavra tanto como "constituição" quanto por "governo". Assim, a passagem de A Constituição de Atenas (cap. XXVII) em que Aristóteles descreve a "demagogia" de Péricles: "démotikóteran synebé genesthai tén politeian" é ao inglês traduzida: "the constitution became still more democratic"; pouco depois, Aristóteles acrescenta que a multidão "apasan tén politeian mallon agein eis hautous", e o trecho é traduzido pelo mesmo tradutor como "brought all the government more into their hands" (é evidente que traduzir como brought all the constitution, como a coerência exigiria, teria sido problemático).
De onde vem essa verdadeira "anfibologia", essa ambiguidade do conceito político fundamental, pela qual ele se apresenta tanto como constituição quanto como governo? Será suficiente assinalar aqui, na história do pensamento político ocidental, duas passagens nas quais essa ambiguidade se manifesta com uma particular evidência. A primeira se encontra na Política (1279a 25 seq.), quando Aristóteles declara sua intenção de contar e de estudar as diferentes formas de constituição (politeiai): "Já que politeia e politeuma significam a mesma coisa e que politeuma é o poder supremo (kyrion) das cidades, é necessário que o poder supremo seja o próprio de um só, de alguns ou do grande número..." As traduções correntes trazem o trecho da seguinte forma: "Já que constituição e governo significam a mesma coisa e que o governo é o poder supremo do Estado [...]." Ainda que uma tradução mais fiel tivesse que conservar a proximidade dos dois termos politeia (a atividade política) e politeuma (a coisa política que daquela atividade resulta), fica claro que a tentativa de Aristóteles para reduzir a anfibologia por meio dessa figura que ele chama kyrion é o problema essencial dessa passagem. Para empregar - não sem forçar um pouco o traçado - uma terminologia moderna, poder constituinte (politeia) e poder constituído (politeuma) aqui são ligados na forma de um poder soberano (kyrion), que aqui aparece como aquilo que mantém juntas as duas faces da política. Mas, por que a política é cindida e em virtude de que o kyrion articula, suturando-a, essa cisão?
A segunda passagem encontra-se em O Contrato Social. No seu curso de 1977-1978, "Segurança, território, população", Foucault já havia mostrado que Rousseau colocava-se o problema de conciliar uma terminologia jurídico-constitucional ("contrato", "vontade geral", "soberania") com uma "arte de governar". Mas, na perspectiva que aqui nos interessa, a distinção e a articulação entre soberania e governo, que está na base do pensamento político de Rousseau, é decisiva. "Eu rogo aos meus leitores", escreve ele no seu artigo sobre a "Economia política", "que distingam bem a economia pública, a respeito da qual falo e que chamo governo, da autoridade suprema que chamo soberania; distinção consistente no fato de que uma tem o direito legislativo [...] enquanto a outra tem apenas a potência executiva." Em O Contrato Social a distinção é reafirmada como articulação entre vontade geral e poder legislativo de um lado, e governo e poder executivo de outro. Com efeito, para Rousseau trata-se de, ao mesmo tempo, distinguir e de entrelaçar esses dois elementos (é por isso que no mesmo momento em que ele enuncia a distinção deve com força negar que ela seja uma divisão do soberano). Como em Aristóteles a soberania, o kyrion, é ao mesmo tempo um dos termos da distinção e aquilo que liga em um nó indissolúvel constituição e governo.
Se hoje assistimos à dominação esmagadora do governo e da economia sobre uma soberania popular que foi progressivamente esvaziada de todo sentido, talvez seja porque as democracias ocidentais pagam agora o preço de uma herança filosófica que assumiram sem benefício de inventário. O mal entendido que consiste em conceber o governo como simples poder executivo é um dos erros mais cheios de consequências na história da política ocidental. Isso fez com que a reflexão política da modernidade vagasse atrás de abstrações vazias como a lei, a vontade geral e a soberania popular, deixando sem resposta o problema, sob qualquer ponto de vista decisivo, do governo e de sua articulação com o soberano. Tentei mostrar em um livro recente que o mistério central da política não é a soberania, mas o governo; não é Deus, mas o anjo; não é o rei, mas o ministro; não é a lei, mas a polícia - ou, de modo mais preciso, a dupla máquina governamental que eles formam e mantêm em movimento.
O sistema político ocidental resulta da ligação de dois elementos heterogêneos, os quais se legitimam e dão um ao outro consistência: uma racionalidade político-jurídica e uma racionalidade econômico-governamental, uma "forma de constituição" e uma "forma de governo". Por que a politeia está presa nessa ambiguidade? O que dá ao soberano (ao kyrion) o poder de assumir e de garantir sua união legítima? Não se trataria de uma ficção destinada a dissimular o fato de que o centro da máquina está vazio e de que não há entre os dois elementos e as duas racionalidades nenhuma articulação possível? E não seria a partir de sua desarticulação que, com efeito, poderia surgir esse ingovernável, que é ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda política?
É provável que enquanto o pensamento não se decida a enfrentar esse entrelaçamento e sua anfibologia toda discussão sobre a democracia - como forma de constituição e como técnica de governo - corra o risco de cair no palavrório.

Giorgio Agamben. Note liminaire sur le concept de démocratie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009- pp. 9-13. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Orfeu (II)



na fumaça do meu cachimbo redemoinham
os mares de aqui e de acolá
as peripécias de poemas que nunca escreverei
o perfume das mulheres que não conheci
as reminiscências das milhares de vidas que não tive
a liturgia mambembe do juízo final de uma briga de facas
na bodega borgeana de minha imaginação bêbada

mas elas passam apenas por esta escrivanhinha desgastada
tamboliram minha preguiça, meu ódio à vida de reuniões
com os de lá, os da superfície, os homens opacos dos autos-de-fé
e dos automóveis, dos parques temáticos, dos jornais dominicais

mas é certo que esta opacidade está em mim, em meu platonismo às avessas
habitante deliberado da escuridão e da fumaça de pensamentos agrestes

Volto a olhar todos os dias para Eurídice
e sob meus ombros vejo apenas o chão poeirento deste Hades de apartamento.


Imagem: 1886. Van Gogh Museum, Amsterdam. 

segunda-feira, 28 de março de 2011

A morte heróica entre os gregos (II)


No início da Ilíada, os reis estão reunidos, cada um com seu exército, os "basiléis", e Agamenón, o rei dos reis, "basiléutatos", goza da maior honra no plano social. Agamenón deve entregar sua própria filha ao sacerdote de Apolo. Em sua troca, toma a jovem Briseida, que havia sido concedida a Aquiles como sua parte de honra. Quando se distribui o butim, começa-se a dar a cada um uma parte igual a dos demais; posteriormente, a elite recebe uma parte de honra, um "geras" especial. Briseida representava para Aquiles o sinal que todo o exército grego lhe outorgava para mostrar que ele não era como os outros, mas um homem que podia em si mudar completamente a face da guerra, pois dava-lhe um sentido particular devido a sua coragem, a seu ímpeto. É este "geras" o que Agamenón arrebata de Aquiles. Quando o exército se reúne, forma um círculo, deixando livre um espaço no centro, uma espécie de ágora, onde podem falar todos os reis. Aquiles chega até lá e menospreza Agamenón: "Que direito tinhas de tirá-la de mim? É uma grande ofensa que me fizeste! Não és nada mais do que um covarde. Tú, que te refugias nas últimas fileiras, que não sabe o que é, no corpo a corpo com os inimigos, comprometer a "psyché"'. Se pode ver claramente que nesta cena se opõem, por um lado, as honrarias ligada ao mérito e à virtude particular de um combatente e, por outro, as honrarias ordinárias, sociais. Agamenón é o rei dos reis, mas ao mesmo tempo as honrarias que recebe são incomensuravelmente menores que as de Aquiles. É uma verdadeira inversão de nível social, e Aquiles o faz compreender isso.

Quando, mais tarde, Agamenón tenta se reconciliar com Aquiles, que havia se retirado do combate - contudo, sem ele, o exército aqueu não pode enfrentar os troianos -, o rei envia até ele uma delegação. Esta delegação explica que Agamenón reconhece seus erros: devolve-lhe Briseida, já que não havia tocado nela; oferece-lhe todo tipo de riquezas, benfeitorias, animais, parte de suas terras, e inclusive uma de suas filhas, sem lhe exigir dote. Porém Aquiles recusa tudo isso pois, neste contexto de honra heróica que leva a uma morte heróica, encontra-se sempre frente ao "tudo ou nada". Na vida social existem gradações, contrabalanceia-se, contemporiza-se, consideram-se os assuntos, aqui, em contraposição, a ofensa que lhe foi infligida não pode ser reparada. Aquiles explica que pouco lhe importa as honrarias ordinárias que os gregos a ele tributam, pouco lhe importa todos os presentes que lhe oferecem, pois existem dois tipos de bens: os que se intercambiam, ganham-se ou se perdem, e que podem ser trocados quando perdidos; e os bens essenciais desde a perspectiva dos valores humanos - o "tudo ou nada", novamente - aquilo que, quando se perde, não se recupera jamais, ou seja, a vida, a si mesmo. Unicamente isso, em cada momento decisivo, não é comprável nem intercambiável, apenas isso se perde de maneira definitiva. Eis aqui a honra heróica, que se inscreve em uma categoria diferente da mera honra ordinária.

Quando se joga deste modo o "tudo ou nada", pode-se estar certo de morrer um dia ou outro, porque nenhum homem é imortal, nem mesmo Aquiles. Quem vive sua existência - sua própria pessoa - deste modo, que consiste em escolher colocar tudo em jogo, a si mesmo, a fim de mostrar-se e demonstrar-se, de provar que se é em verdade um homem sem acomodação, sem covardia, é certo que morrerá jovem. E esta morte não é como a dos outros. Assim como há uma honra heróica que não é a honra ordinária, também há uma morte heróica que não é uma morte ordinária. Por quê? Por que o jovem na flor da sua idade e beleza que cai em combate não verá seu corpo se desvanecer e amolecer, aquilo que a idade provoca em todas as criaturas mortais. Assim é a lei do gênero humano: cada um nasce, cresce, converte-se em uma criança, em um jovem, em um adulto, e depois, pouco a pouco, contrariamente ao que se passa entre os deuses, converte-se em um velho fatigado que coxeia e que, por conseguinte, está a ponto de se despedir, e é como se não tivesse vivido. Enquanto que, se este morre no momento em que demonstrou o que pôde fazer na beleza de sua juventude, sua existência escapará da usura do tempo, da mortalidade ordinária. Na Ilíada, no momento em que Heitor, perseguido por Aquiles, vai enfrentar o herói, Príamo, desde o alto das muralhas, roga a seu filho que fuja, que passe a porta de entrada para se refugiar no interior dos muros. Diz-lhe mais ou menos estas palavras: "Para o jovem guerreiro que cai no campo de batalha, tudo é belo, tudo é conveniente, 'panta kalá, pant'epéoiken', mas a morte para um velho como eu, Príamo, se você sucumbe, será horrível". Príamo alude que Heitor ficará coberto de sangue e os cachorros, que em outro tempo ele alimentava nos pátios do palácio, virão devorar seus genitais. Tirteo, em Esparta, retomará a mesma imagem afirmando que, para o jovem que cai na primeira fileira na flor de sua juventude, ao arriscar sua própria vida e sua pessoa, "tudo é formoso, tudo convém", os homens o admiram, as mulheres o veneram e as futuras gerações continuarão admirando-o. Não deixará, por intermédio desta morte - que, se ao menos não a escolheu, aceitou-a - de ser o que era em vida, ou seja, um homem jovem no esplendor de sua força e beleza. Isso é o que se dirá inclusive em seu funeral. Por quê?

Na Grécia do séc. IX (a.C.) não existe ainda uma escrita desenvolvida. Contudo, toda sociedade deve ter raízes, um passado para manter sua identidade. Para os gregos deste período, que não possuíam escritos nem arquivos, quando não existia nenhuma declaração durante um matrimônio ou um nascimento, a memória social estava assegurada por uma pessoa, o "mnemon", aquele que se recorda, que deve armazenar em sua cabeça todo o saber que permita a cada um conhecer sua identidade: quem é seu pai, que são seus avós, e muitos mais, as genealogias, mas também os limites de seu terreno. Ao mesmo tempo, é preciso que esse grupo tenha em comum um certo número de coisas conhecidas, de valores, de imagens do mundo, de concepções de si, de tradições intelectuais e espirituais: são os aedos, os cantores, que possuem o encargo disso. Eles estão inspirados por uma deusa que os gregos chamavam de "Mnemosyne", Memória. A memória está divinizada na medida em que não existem escritos para levar ao registro o que os antropólogos denominam de "saber compartilhado".

Esta memória é o canto dos poetas, a tradição da Ilíada e da Odisséia, dos Cantos Cíprios e inclusive de muitas outras histórias. É o que constitui as raízes do grupo e o que, nos séculos V, IV e também no período helenístico, as crianças da Grécia aprendem de memória e conhecem. Neste sentido, a Ilíada, que para nós é um simples texto, em um momento dado foi este canto tradicional que, de geração em geração, os poetas narravam, repetiam e modificavam a cada vez, retomando o que se lhes havia ensinado e improvisando para um público novo. Tudo isso formava o fundo comum intelectual e espiritual dos gregos, que de certa forma era mais vivo, mais atual que eles próprios. No marco desta civilização grega, que mudou muito desde a época homérica, Aquiles é, mais do que nenhum outro, um personagem sempre presente em cada geração; não há grego, quer seja Platão, Xenofonte ou Alcebíades, que não o tenha a seu lado.

A morte heróica não só proporciona uma honra incomparável, ela também dá conta do paradoxo de uma criatura humana mortal, efêmera, condenada a um ciclo que caracteriza o homem em oposição aos deuses: a passagem em estágios até a morte lamentável. Aquiles escapa de tudo isso. Neste mundo grego não existe a idéia, própria de nossa civilização judeu-cristã, de que em cada um de nós haveria uma parte que seria "nós mesmos" (a interioridade), a alma, o espírito imortal, individualizado e inclusive mais que individualizado, pois finalmente, com a ressurreição da carne, nossos corpos devem voltar e, portanto, estamos condenados a uma imortalidade bem-aventurada. Para os gregos, isso não existe. Pelo contrário, somos um corpo; a alma está composta por sopros inconsistentes e quando morremos, passamos para o Hades, não somos nada.


VERNANT, Jean-Pierre. La traversée des frontières. Entre mythe et politique. Éd. du Seuil, 2004. (Retradução caseira a partir da edição da Fondo de Cultura Económica). Partes III e IV em próximas postagens.
Imagem: COYPEL, Charles-Antoine. Fury of Achilles. 1737.

sábado, 26 de março de 2011

A imagem de Orfeu


Ao som de Pat Martino, Joey Defrancesco e Billy Hart... postagem a dois (Dos subterrâneos e Khôra nos lindes do Desterro):

Senhoras e senhores, não existe para a situação da literatura imagem mais poderosa do que a deste impaciente cantor, Orfeu, ao encontro do dia, atravessando a zona da morte com uma morta quase viva atrás de si. Pode-se afirmar com toda certeza que ele não deixará fatalmente de olhar para trás, e descumprirá a ordem pelo simples fato de que se infiltrar no mundo noturno implica romper com todas as leis do possível. O poeta é aquele que busca o real no impossível mesmo. Por essa razão perde repetidamente o objeto do seu amor por cuja causa empreendeu a viagem ao Hades. Isso é o que nos faz suspeitar também que o poeta e o viajante pelo mundo dos mortos é o tatuado por excelência. Entre seus ombros se inscreve uma experiência da morte que o obriga a cantar eternamente por algo perdido. Com Eurídice nas sombras se realiza uma experiência que segue sendo válida para toda literatura que se exponha. E o será sempre que, em virtude do desejo poético que permanece atrás de si, conduza-a junto a ele até a luz do dia, até o mundo, até a palavra, sempre que ele não se volte apenas para possuí-la, sempre que conquiste aquilo que faz com que os homens, pelo contrário, percam a palavra e sejam seduzidos até submeter-se, ou seja, à morte. Por tudo isso Orfeu se converte na primeira testemunha da poesia, no orador que faz frente à morte e ao silêncio da palavra. Ele fica marcado pelo insuportável nesse lugar totalmente inacessível que com toda probabilidade será visível a todos, com exceção dele mesmo. Não é completamente inexplicável que no seu destino tivesse que se transmitir uma história sobre ele e não um canto. Essa circunstância tem sua importância do ponto de vista poetológico, pois também revela que o testemunho conta mais que a criação. Para nós o que persiste é a tarefa de compreender que a proibição de olhar para trás transmite mais uma vez a impossibilidade de que cada um contemple, entre seus próprios ombros, a si mesmo, ali onde se encontram os signos de fogo das separações irreversíveis. Por isso o poeta não deve fazer imagem nenhuma do objeto do seu desejo, mas o que Orfeu não deve é, ainda pior, o que não poderá e que, no entanto, terá que desejar para encontrar seu consolo. Orfeu tem que perder o que deseja porque simplesmente já o perdeu. Contudo, entre o ter perdido e o novo perder abre-se o espaço para a vida, que corresponde ao ser que respira, fala e deseja. É nesse espaço onde resistimos ao que é demasiadamente real e aprendemos a ser aprendizes do impossível. É esse espaço aquele que abre a poesia expondo-se até o incerto. É por meio dessa exposição que se começa a jogar ao redor do inadmissível. É assim como a imensa claridade da morte pode desembocar na ambiguidade da vida. Do caráter irreconciliável das separações brota a magia de novos laços que acalmam o fatum.
Senhoras e senhores, anunciei no título destas lições uma poética do vir-ao-mundo que ao mesmo tempo deve mostrar como chegamos à linguagem. Temos a impressão de que até o momento pouco se esclareceu a esse respeito. Em relação a mim, ficaria satisfeito se essas sugestões fossem suficientemente atrativas para permitir abordar esse assunto numa próxima ocasião com mais seriedade. Senhoras e senhores, ficaria feliz de lhes apresentar dentro de uma semana algumas reflexões sobre a poética do começar.

Peter Sloterdijk. Venir al mundo, venir al Lenguaje. Lecciones de Frankfurt. Valencia: Pre-Textos, pp. 29-31. Trad. para espanhol: Germán Cano (retradução caseira para o português: Pancho Lechuza com pitacospoéticos de Le Malade)

Imagem: Jan Brueghel "The Elder". Orpheus in the Underworld. 1594. Galleria Palatina, Firenze.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Un petit chat


Revirando minhas coisas em busca de algumas fotocópias antigas, acabei encontrando um gato. É, trata-se de um gato judeu que conheci há cerca de 2 anos. Desde então, tivemos alguns encontros - na verdade, tais encontros foram sempre longe dos nossos lugares habituais, portanto, eram encontros com um gato que, mesmo conhecido, era sempre estranho (coisa do tal Unheimlich que tanto fascinava Freud) - mas há tempos que não o via falando português. Habituado a escuta-lo falar francês - já que as últimas vezes que o vi estava girando por Paris e Bruxelas -, quase não o compreendi em seu português sujo e arrastado. Tirei-o do meio dos livros, acariciei-o a pequena juba e sentei-me com ele ao colo. Ronronava muito e dava-se carinho ao se esfregar veementemente à minha mão direita (coisa que só os felinos domésticos conseguem fazer de maneira perfeita).
Nesse instante, começamos a travar nosso diálogo contumaz o qual, não importasse a língua em que nos falávamos, corria sempre os trilhos dos mesmos assuntos: felicidade, amizade e os percalços da vida. Como ele estava distante de mim há algum tempo (as estantes em que remexia não eram as minhas), tive que lhe contar tudo o que tinha se passado. Lembrei de várias coisas que tinha para lhe dizer e de muitas outras me esqueci. Disse-lhe tudo a respeito das minhas impressões sobre a Espanha, sobre a Holanda (talvez, o meu gato também pudesse ter estado lá, ouvindo alguma banda de Klezmer que tanto lhe agrada), sobre Portugal... Contei-lhe sobre o paradoxo que me veio a mente em Agrigento (claro, disse-lhe que tal indagação já tinha vindo à de Murilo): "Transformar-se ou não, eis o problema". Claro que ele escutava tudo com muita agudeza, e seus pelos roçavam, enquanto isso, as minhas mãos que então tremiam pelo reencontro.
Mas a conversa não parou por aí. Também tive minhas falhas de memória e muita coisa deixei de contar. No entanto, ele parecia compreender tudo, inclusive os meus não-ditos (eram aqueles olhos cor de mel que me inquiriam a dizer: "meu caro, você sabe que eu sei o que você não quer saber..."). Lembrei-me imediatamente de um outro gato, este que, de tão sorrateiro, fora por mim apelidado de rato, ainda que se assemelhasse a um pequeno leão. Era o jogo do bicho caçador com o bicho escroto que quando vem à luz logo foge procurando abrigo em alguma recôndita sombra.
Talvez todo o contraste desses gatos (o que agora estava comigo e o da minha lembrança) fosse um aspecto meu, algo que poderia dizer respeito à minha vitalidade. Jogar entre a claridade das conversas abertas (aquelas que eu mantinha com o gato judeu) e a obscuridade das carícias no gato-rato, com quem tentava desafortunadamente falar (ainda que com este conseguisse manter um relação de cumplicidade extrema... é, talvez seja esse um aspecto da vida sombria: manter-se cúmplice no silêncio). Pensava nos gatos como meus opostos internos, como minhas vontades em contraste: correr para debaixo de um fogão qualquer ou sentar-me à mesa para um conversa na qual até os olhos diziam quase tudo.
E agora escrevo no presente... não sei se há uma possibilidade de fixar-se em qualquer dos pontos. Acho, na verdade, que não há receita para encarar esse jogo de opostos. Penso apenas em entrar no fluxo contínuo, no movimento que se cumpre em mim, em minha existência. É isso: estamos jogados no mundo e os gatos são as carapuças que vez ou outra acabamos por vestir. Tudo é uma questão de jogar com as palavras que ora enchem-se de conteúdo, ora são apelos ao vazio da escuridão dos esconderijos. Entrar na história, entrar em jogo... movimentar-se nas idas e vindas das palavras sempre vazias que estão sempre esperando um ato de reversão, uma leitura em diagonal, que as retire de seus lugares, que as deixe, no entanto, cumprir seus papéis de sabotadoras e enaltecedoras de algo que alguém alguma vez chamou (nomeou) de condição humana.
Talvez o gato judeu sempre estivesse presente, mesmo no momento em que o gato-rato tomava o lugar de destaque e vice-versa; acho que tudo pode ser uma questão de botar palavras na boca; dar nomes aos nossos estados psíquicos, dar nomes aos nossos encontros, dar nomes aos nossos desencontros... talvez a vida distante tenha me dado um nome, mas, como me disse o gato judeu: "mais le temps de nommer une chose, elle a dejà changé, et le nom qu'on lui a donné a dejà fini de la définir avec exactitude, et on se retrouve avec en bouche des mots vides..."

domingo, 20 de março de 2011

A morte heróica ente os gregos (I)

Aquiles, o ideal de homem heróico.
Não é fácil falar da morte heróica na Grécia. Não sabemos ao certo por que ponta iniciar, já que são muito numerosas. O mais simples seria começar pelo personagem que encarna, aos nossos olhos e também aos olhos dos gregos, o ideal de homem e morte heroicos: Aquiles. Nos relatos que o mencionam, não só na Ilíada mas também nas histórias lendárias que nos foram transmitidas por outras fontes, o dilema se coloca claramente a propósito de uma eleição quase metafísica entre duas formas de vida opostas.
Aquiles é filho de um simples mortal, Peleu, e de uma deusa, Tetis. Zeus e Poseidón queriam desposar Tetis, ou pelo menos unir-se a ela. Quando Prometeu lhes faz saber que o filho de Tetis será mais forte, mais brilhante, mais elevado que seu pai, eles renunciam à deusa. Não desejam que filhos mais poderosos reavivem, em uma nova geração, a guerra entre os deuses. É uma lei de mortalidade que implica que cada geração deve necessariamente ocupar o lugar da precedente, como as ondas do mar. Para evitar serem destronados por seus filhos, os deuses enviam Tetis entre os humanos e a oferecem a Peleu. A deusa não está muito de acordo, e por isso adota todo tipo de formas para escapar desta união até que, finalmente, transforma-se em polvo, em "sepia", pois ao ser capturada lança uma tinta e se torna invisível. Porém Peleu a encurrala em uma captura absolutamente inescapável e tem um filho com ela, Aquiles. Este, com efeito, é mais forte que seu pai, o velho Peleu, e é o mais forte de todo o mundo. É uma sorte de herói maravilhoso, invencível, ainda que igualmente encarne isso que os deuses pretendiam evitar: a lei da sucessão das gerações. Os homens nascem, crescem e morrem, e também Aquiles, em um momento dado, deverá irse para que uma nova geração apareça. Tetis quer conferir a Aquiles a imortalidade. Tomando-o pelo calcanhar submerge o recém-nascido nas águas do Estígia. Se consegue sair desta prova terrorífica - pois o Estígia é, em certa maneira, a própria morte - as partes do corpo que foram submergidas se tornarão imortais. Ele é, portanto, um ser humano que, por sua pessoa, seu passado e sua genealogia, situa-se no cruzamento entre o divino e humano. Apenas uma pequena parte de seu corpo segue sendo mortal: o calcanhar - porque era preciso que Tetis o segurasse de algum lugar - e por aí é que ele perecerá.
Assim, este homem é a imagem mesma do guerreiro e de suas virtudes: não só a coragem, mas também esta forma de moral aristocrática que constitui ao mesmo tempo o pano de fundo da morte heórica, onde um homem é "kalós kagathós", "belo e bom", como se sua qualidade de homem eminente, incomparável, pudesse ser lida em seu corpo, em sua presença, em sua gestualidade, sua marcha, sua maneira de se apresentar. Se um homem como Aquiles aparece em um círculo, é como se um deus estivesse ali. Ele encarna esta espécie de excelência que se manifesta em um brilho luminoso, como a beleza de uma jovem semelhante a uma deusa. De alguma maneira, é como os gregos veem Aquiles: sem nenhuma moral do pecado, da falta ou do dever; existe a idéia que se deve ser uma pessoa de bem, não cair em baixezas, vilezas, dívidas; deve manter-se nesta linha.
Aquiles se expõe frente à eleição entre dois caminhos. Por um lado, uma vida pacífica e doce, uma vida longa, com sua mulher, filhos, seu pai, e logo a morte ao fim do caminho, em seu leito, como sucede a todos os anciãos. Desapareceria no Hades, numa espécie de mundo sombrio de cabeças vestidas de noite, onde nada tem nome nem individalidade, e onde se converteria em uma sombra inconsistente; depois nada, ninguém. Ou pelo contrário, o que os gregos chamavam de vida breve e de bela morte, "kalós thánatos". Não há bela morte se não há vida breve. Isso significa que, no ideal heóico, um homem pode eleger ser sempre e em tudo o melhor, e para prová-lo se colocará continuamente - é a moral guerreira em combate -, sem duvidar, na primeira fileira e jogar cada dia, em cada enfrentamento, sua "psyché", ele mesmo, sua própria vida, tudo. Por que tudo? Esta concepção de uma forma de vida que adere a um sentido de honra, a "timé", resulta também que todas as honras do Estado, as honras estabelecidas, percam seu valor.
Extraído de VERNANT, Jean-Pierre. Atravesar fronteras: entre mito y política. Bs. As: Fondo de Cultura Económica, 2008. Trad. caseira: Jnf. (Continuação do ensaio nas próximas postagens)

sábado, 19 de março de 2011

Adiós


Por que sinto a cabeça pesada, como se uma pedra tivesse acabado de atingi-la? Talvez a lembrança que agora me vem, misturada com a sensação de perda, seja uma chave para tentar compreender isso. Não sei, mas o passado recente insurge contra minha vontade; volteios de imagens fazem rodopiar minhas certezas; vontades que outrora eram tão presentes, e que por tempos se foram, retornam de maneira cáustica, impiedosa; talvez sejam elas as pedras que atacam minha cabeça. Parece que ainda sinto o cheiro nauseabundo do meu corpo atirado naquela cama, solitário, sob o influxo da doença (e que doença maior que a saudade...) que queria devorar-me voluptuosamente, como a tirar de mim qualquer razão (e há?) para a existência. Eram tempos frios, com neve nas duas grandes janelas, as quais deixavam a parca luminosidade dos dias curtos entrarem; era uma dor que não tinha fim... E a valsa de Eurídice soava, e nada confortava a falta daqueles olhos que há pouco brilhavam ali como duas pequenas estrelas na minha constelação.
Largado no canto da cama eu ainda sabia chorar, Eurídice, mesmo que a dor da partida tivesse sim um fim; e com a partida, o adiós. Na língua de Cervantes não nos conhecemos, mas nela nos despedimos. E o primeiro brilho dantesco - era, mais que a língua una de Petrarca, a luz das dissonâncias do florentino que nos iluminava - dos diálogos distantes parecia um sopro de ar nas velas do primeiro jantar na ilha de Capri. Deitados numa cama qualquer eram aqueles tempos outros dos tempos frios, estes que me calavam na dor e que, hoje, num tempo outro, voltavam como as nuvens de algodão que sob o sol tropical traçam formas que me fazem lembrar de Eurídice. Eu olhei para trás e não consegui mais trazê-la comigo; eu, um Orfeu desintegrado, sabia que meu olhar não poderia se voltar, mas na ânsia de vê-la viva fiz com que meu amor fosse picado novamente por uma serpente. E talvez seja esse veneno a fazer com que minha cabeça agora pese como se por uma pedra tivesse sido atingida.
Agora na minha frente estão tantas imagens de mortos. Todos que frequentaram de um modo ou de outro a minha existência; todos que choraram em algum momento alguma despedida; todos que de mim se despediram... Não volto a ver, não volto a chorar, não calo as vozes que gritam dentro de mim, mas não consigo deixar de ter hoje, no tempo em que o tempo parece ter tido um fim, a sensação inusitada de tantas despedidas. Sinto o pulso pulsar, sinto o coração chacoalhar, sinto brisas infames que me derrubam no mar das fantasias eloquentes dessas imagens de arrependimento, sinto muito... adiós.

Imagem: Peter Vischer. Orfeu e Eurídice. 1516. Museum für Kunst und Gewerbe, Hamburg.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Pequenas confusões


Como em passos faltosos caminhei durante uma manhã luminosa e azul. Era um dia banal no qual os compromissos eram quase escassos, senão os que a minha cabeça criava. Estes sim, eram tantos. A caminhada se insinuara em trajetos retos e longilíneos, mas os pensamentos eram tortuosos e despedaçados. A ambiguidade desse dia, o jogo de opostos, era um reflexo patente do momento. O sonho da noite tinha trazido para o porto da consciência várias imagens que latejavam, doíam e quase como que rompiam minha carne. Qual a razão disso? Que razão? Sentia os músculos de minhas pernas em extrema tensão; meu corpo era carregado, a reta se alongava cada vez mais, a visão do horizonte povoado por gentes outras era metodicamente descortinada pelas minhas retinas cansadas (as pedras estavam por tudo, caro Drummond). Descia em direção ao cemitério, onde eu deveria encontrar meus pedaços já sepultados, e eram tantos...
Continuava na reta límpida e clara, mas com as pedras imaginadas que pesavam tanto (Sísifo, Sísifo, por que te incorporei?) ao ponto de eu querer desistir. Mas a vontade de encontrar os meus ossos naquele canto onde jaziam os meus era maior. Talvez a montanha poderia ser levada nas costas; talvez o seu toque carinhoso que sentira no meu rosto durante o sonho (o qual me despertou no meio da noite, como às vezes costumava acontecer) pudesse ser combustível para aquela conversa que eu haveria de ter comigo mesmo e com os meus pedaços já sepultados.
É muito fácil se movimentar nesta cidade: basta seguir o traçado dos ingleses (os quais, talvez por alguma aposta, arquitetaram um grande tabuleiro onde as peças futuras - dentre as quais, eu mesmo - poderiam fazer seus jogos de amor e ódio). E em tal traçado continuava em minha linha, agora agoniado com a entrada no campo dos mortos. Por ali já passara incontáveis vezes. Conhecia todos os cantos, sabia onde estavam os mais antigos, quais eram as nacionalidades de origem de cada família, onde estavam os conhecidos em vida... Era como entrar num grande fichário onde as gavetas estavam todas abertas com os ofícios, certidões, documentos, designações à mostra. Porém, chegar perto dos meus pedaços era mais difícil. Algo como uma dor de olhar-se no espelho e sentir o peso da própria imagem como um outro eu; ou ainda a sensação inusitada de sentir-se em falta consigo mesmo (como um cão a correr atrás da própria cauda).
Quando passava por ali gostava de inventar histórias: será que o senhor que habita aquela tumba adornada em granito com a grande estátua do Cristo que bate à porta conhecia aquele outro, da lápide simples, com uma foto que exibia a fragilidade de uma vida passada? Será que este fora funcionário daquele? Como chegaram aqui? E assim montava o desenho do meu jogo de xadrez. Mas eu precisava voltar para o canto dos meus ossos; era meu desejo não me enveredar nas histórias dos outros (que, de fato, eram apenas minhas criações... mas, quais histórias alheias não são criações nossas?). Queria olhar para os meus pedaços. Aliás, era numa autobiografia despedaçada que pensava agora. Os passos em falso, a sensação de vácuo entre as minhas pernas e o chão, tudo parecia ser um grande jogo entre a retidão desejada (e, por sorte - penso que essa palavra deveria ser dita em francês: chance -, malfadada) e a sinuosidade dos desejos.
Eu sentia, sentia profundamente seus abraços - daqueles pequenos braços que mal me enlaçavam - no momento em que eu não mais a encontrava, e isso era estranho; eu via seu corpo frágil ainda iluminado sutilmente pela luz da manhã (e seu perfume de baunilha); eu me deixava levar pelas curvas, ainda que as retas é que estavam em minha frente; eu achei-me com os meus e, como num degelo ártico, senti o movimento das águas subterrâneas primeiro e, depois, vi o fragmentar-se da crosta; vi que a vida só pode dar-se em vida... E por que via? (via e vida... a força da pedra "d" no meio do mundo...) Ah, minhas retinas cansadas, ah pedras do caminho, ah falsos encontros (e esperava que Vinícius me dissesse ao pé do ouvido: "embora haja tanto desencontro pela vida...")... Onde eu estava? Por que sabia onde estavam mas não encontrava meus pedaços? Talvez não fosse o caso de tentar encontrá-los ou de buscar na morte algum traço do meu círculo vital; talvez esses pedaços meus e de outros fossem agora tão somente ruínas a serem apenas tocadas de leve antes de uma possível (??) reconstrução.
Confuso viro as costas para meus encontros, fecho-me na redoma em que finjo a verdade das coisas. Mas é hora de talvez saber que a verdade do fingimento está no ato de fingir e que as coisas não carregam nenhuma verdade. A ficção aporta na realidade, a verdade das coisas é um vapor cru que sai daqueles corpos mortos; não mais respiro, escrevo sem mais pensar em quê... talvez um pouco confuso...

terça-feira, 1 de março de 2011

Democracia finita e infinita - Partes VIII a X

8.

Isso é do poder, sempre se soube, de fato, já que sempre se pensou - salvo na simples tirania, a qual é sem pensamento - que os governantes governam para o bem dos governados (e disso é possível dizer que em toda parte - salvo, novamente, na tirania - o poder é ordenado ao povo, seja ou não o regime expressamente democrático). Mas o que circunscreve assim a potência do poder não determina, no entanto, a natureza nem as formas e os conteúdos do bem dos governados.

Esse bem é essencialmente não determinado (o que não quer dizer indeterminado) e só pode se determinar no movimento que o inventa ou que o cria abrindo-o novamente a uma interrogação - inquietude ou ímpeto - sobre o que ele poderia ser ou tornar-se. Quais são as formas, quais são os sentidos, quais são as questões de uma existência da qual tudo o que podemos saber de início (e esse início nós o retomamos sempre de novo) se dá em duas proposições:

- ela, essa existência, não responde a nenhum desenho, destino ou projeto que a precederia;

- ela não é mais individual do que coletiva: o existir - ou a verdade do "ser" - só existe segundo a pluralidade dos singulares na qual se dissolve toda postulação de uma unidade do "ser".

O bem sem projeto nem unidade consiste na invenção sempre retomada das formas segundo as quais o sentido pode ter lugar. Sentido quer dizer: envio de uns aos outros, circulação, troca ou partilha de possibilidades de experiência, isto é, de relações com o fora, com a possibilidade de uma abertura ao infinito. O comum é aqui o todo da questão. Sentido, sentidos, sensação, sentimento, sensibilidade e sensualidade, tudo isso só se dá em comum. Mais exatamente, é a condição mesma do comum: o sentir de uns em relação aos outros, e por ele a exterioridade não convertida ou preenchida em interioridade, mas esticada, colocada em tensão entre nós.

Enquanto compromete uma metafísica (ou, como vamos dizer: relações aos fins) e não a saberia garantir por uma religião, civil ou não, a democracia exige que sua política faça emergir clara e largamente o fato de que suas questões do sentido e dos sentidos ultrapassam a esfera de seu governo. Não é um caso de público ou de privado, nem de coletivo ou de individual. É o caso do comum ou do em-comum que não é precisamente nem um nem o outro e no qual toda a consistência se encontra na marginalização de um e do outro. O comum é, de fato, o regime do mundo: da circulação dos sentidos.

A esfera do comum não é uma: ela é feita de múltiplas aproximações da ordem do sentido - a qual, por sua vez, é ela mesma múltipla, como na diversidade das artes, dos pensamentos, dos desejos, dos afetos etc.. O que "democracia" quer dizer aqui é a admissão - sem assunção - de todas as diversidades em uma "comunidade" que não as unifica, mas que implanta, ao contrário, sua multiplicidade e, com ela, o infinito em que elas constituem as formas inomináveis e inacabáveis.

9.

A armadilha que a política colocou a si própria com o nascimento da democracia moderna - isto é, repetimos, da democracia sem princípio efetivo de religião civil - é a armadilha que faz confundir o comando da estabilidade social (o Estado segundo a origem da palavra: il stato, o estado estável) com a ideia de uma forma que englobe todas as formas expressivas do ser-em-comum (isto quer dizer, do ser ou da existência simplesmente, absolutamente).

Não é que seja ilegítimo ou em vão aspirar a uma forma de todas as formas. Em um sentido, cada um não exige menos do que isso, seja por meio de uma das artes ou por meio do amor, do pensamento ou do saber. Mas cada um sabe - e sabe por um saber inato, originário - que sua aspiração para desenvolver e carregar todas as formas só declara sua verdade quando ela se abre aos seus desenvolvimentos múltiplos e deixa abundar uma diversidade inesgotável. Nossa pulsão por unidade ou síntese entende-se, desde que ela se conheça bem, como pulsão de expansão e de implantação, não de fechamento em um ponto final. Uma certa compreensão da política se sobrecarregou com o peso do ponto final e do sentido único.

Tomem as coisas sob o ângulo da forma ou do desejo, da ressonância ou da linguagem, do cálculo ou do gesto, da cozinha ou do drapeado: não é um regime de forma que acaba por florescer se abrindo sobre todos os outros por contato ou por envio, por contraste ou analogia, em via direta, oblíqua ou rompida - mas ninguém, no entanto, pensa em absorver ou reunir os outros sem se conhecer então como voltado para sua própria negação. Se "o cobre desperta clarim" (Rimbaud) é porque ele não retorna a ser violão.

Também não é de forma das formas, nem de cumprimento de uma totalidade. O todo, ao contrário, exige um mais que todo (seja um vazio ou um silêncio) sem o qual o todo implode. No entanto, a "política" deixou crer que nela podia haver algo disso e que, portanto, por essa mesma razão, "política" devia encarar sua própria distinção afirmando que "tudo é político", ou ainda, que na política se dá a antecedência necessária de toda outra praxis.

A política deve dar a forma do acesso à abertura das outras formas: é a antecedência de uma condição de acesso, não de uma fundação ou de uma determinação de sentido. Isso não subordina a política; isso lhe confere uma particularidade que é a do mais alto serviço. Ela deve renovar sem cessar a possibilidade da eclosão das formas ou dos registros de sentido. Em contrapartida, ela não deve se constituir em forma, não ao menos no mesmo sentido: as outras formas, de fato, ou os outros registros envolvem fins que são fins em si (artes, linguagem, amor, pensamento, saber...). Por outro lado, ela dá seu campo para o colocar-se em forma da força.

A política jamais chega a fins. Ela conduz a níveis de equilíbrios transitórios. A arte, o amor ou o pensamento estão a cada instante, poder-se-ia dizer a cada ocorrência, no direito de se declarar cumpridos. Mas, ao mesmo tempo, esses cumprimentos só valem na sua esfera própria e não podem pretender fazer direito nem política. Poder-se-ia dizer, assim, que esses registros estão na ordem de um "findar [finition] do infinito", enquanto a política depende da indefinição.

10.

Termino, sem concluir, com algumas notas descontínuas.

A delimitação das esferas não políticas (aqui nomeadas "arte", "amor", "pensamento" etc.) não é nem dada, nem imutável; a invenção dessas esferas, sua formação, seu colocar em figuras e em ritmos - por exemplo, a invenção moderna da "arte" - dependem desse regime de invenção dos fins e de sua transformação, reinvenção etc..

A delimitação entre a esfera política e o conjunto das outras não é também dada nem imutável; exemplo: onde deve começar e terminar uma "política cultural"? E é o próprio da democracia ter que refletir sobre os limites de sua esfera "política".

Toda minha proposta poderia parecer conduzir à legitimação do estado atual das coisas nas nossas democracias tal como elas existem: de fato, a política aí observa linhas de partilha com as esferas ditas "artística", "científica", "amorosa" - e ainda não deixando de intervir de cem maneiras diferentes em cada uma delas. Precisamente, nesse estado de coisas jamais é dito nem refletido o que eu me esforço em expor: como a política não é o lugar da assunção dos fins, somente aquele do acesso à sua possibilidade. Inventar o lugar, o órgão, o discurso dessa reflexão, isso seria um gesto político considerável.

"Democracia" é, portanto, o nome de uma mutação da humanidade na sua relação com seus fins, ou com si mesma como "ser dos fins" (Kant). Não é o nome de uma autogestão da humanidade racional, nem o nome de uma verdade definitiva inscrita no céu das Ideias. É o nome, ó quão mal compreendido, de uma humanidade que se encontra exposta à ausência de todo fim dado - de todo céu, de todo futuro, mas não de todo infinito. - Exposta, existente.


Jean-Luc Nancy. La Démocratie finie et infinie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009. pp. 90-94. (trad. Vinícius Nicastro Honesko)