segunda-feira, 29 de julho de 2013

Utopismo



T. J. Clark

O utopismo - essa invenção dos primeiros funcionários públicos modernos -, por outro lado, é coisa para senhores de terras, que têm tempo de cultivá-lo. É tudo de que os camponeses de Carlo Levi aprenderam a desconfiar. Bruegel o mostra bem. Sua obra Cocanha é, antes de mais nada, uma dessublimação da ideia de Paraíso - uma comédia não divina que só faz realmente sentido quando relacionada com todas as outras ofertas de vida celestial (comezinhas e fabulosas, institucionalizadas e heréticas) postas em circulação quando a cristandade começou a se fazer em pedaços. O alvo central do deboche de Bruegel é o impulso religioso, ou uma das principais formas (tanto mais saliente quanto maior é o afastamento da religião em relação às particularidades da vida) assumidas por esse impulso: o desejo de escapar da existência mortal, o sonho da imortalidade, a ideia do porvir: "E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram". A resposta que Bruegel dá ao livro do Apocalipse - e sua voz não é outra senão a da cultura camponesa, em uma de suas modulações inerradicáveis - é que todas as visões de evasão e perfeição são assombradas pelas realidades mundanas que pretendem transfigurar. Todo Éden é uma intensificação do aqui e agora: a imortalidade é um prolongamento da mortalidade; toda visão de bem-aventurança é material e apetitosa, encorpada e corriqueira e centrada no presente. O homem que emerge da montanha de mingau, no segundo plano da cena, é a personificação do "moderno". Foi à força de se empanturrar que ele conseguiu entrar na comunidade dos santos. O jovem deitado no chão à direita, com as penas de escrever no cinto e a Bíblia ao lado, podemos vê-lo como ninguém menos que São Thomas More; acordado, mas comatoso em sua criação. E o rapaz que dorme sobre o seu mangual? Quem mais se não o próprio Ned Ludd? 

As utopias tranquilizam a modernidade, dizendo-lhe que seu potencial é infinito. Mas por quê? Ela deveria aprender - ser ensinada - a encarar o fracasso. 


Por uma esquerda sem futuro. Trad. José Viegas. São Paulo: Ed. 34. pp. 57-59. Imagem: Pieter Bruegel, o Velho. A Terra da Cocanha. 1567. Alte Pinakothek, Munique. 

   

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Metafísica da Revolução


Massimo Cacciari

Lembrar-se ainda de que no termo "revolução", como em "renascimento" ou "reforma", soa a ideia de uma restauratio magna de um passado, o qual se imagina poder constituir-se como a sólida terra por onde avançar, agora parece um exercício erudito em vão. A novitas, o desejo de res novae e verba nova, para além de toda "repetição", invade toda a nossa cultura. Prolongar-se rumo ao futuro [Infuturarsi] aparece como imperativo. Todos anseiam ser pueri aeterni. Já há tempos revolução soa apenas como sinônimo de inovação. Entretanto, as coisas não se colocam assim de modo tão simples. O medo se mistura ao desejo. A busca e a dúvida ao redor do fundamento do "novo" fazem-se sempre mais tormentosas, justamente em relação à irresistível afirmação da sua ideia. Enquanto o "novo" deve "justificar-se", pode apenas "re-converter-se" a um passado, ao menos para explicar de que coisa pretende "secessão". Os plebeus romanos, nas suas secessiones, sabiam bem quem eram os "pais" (os patrícios). Que filho, hoje, ansioso por "inovar", conhece os próprios pais? Que pretendente a parricida participa, hoje, tão intimamente como Brutus, da vida do seu César? Mas o pai sobrevive sempre se não o mata em ti... Ninguém conhecia melhor a história e a razão do seu inimigo do que um Marx ou um Lênin. O simples demolidor[1] [rottamatore] acaba invariavelmente sepulto sob os cascalhos que a história, ou a sorte, por sua conta produz.
Por isso os autênticos revolucionários tenderam a fazer amadurecer o novo regime desde o interior das formas políticas tradicionais. A sua arte foi, de algum modo, maiêutica. O “novo” se exprime, desse modo, como o transpassar do velho, não a afirmação de uma prepotente violência, mas o produto do próprio passado. O “novo” se “justifica” enquanto nova permanência em que as formas dos pais podem finalmente encontrar paz. Assim, os novatores “reformistas” procuram superar o medo que inevitavelmente suscitam: apresentando-se como aqueles que falam e operam com base no autêntico sentido do passado. Variantes “messiânicas” dessa posição são possíveis: então o revolucionário não é apenas quem marca o “transpassar” da época, mas aquele que pretende resgatar-redimir vítimas e injustiças da história ou pré-história transcorrida. Ele se sente responsável em relação a elas; estas são para ele presenças vivas que é necessário escutar e “salvar”. Em todo caso, resulta decisivo a relação com o “tempo de ontem”. Onde tal relação não seja mais reconhecida como essencial, “revolução” acabará por indicar o “natural” salto tecnológico-organizativo no interior do ininterrupto progredir do sempre-igual. Revolução se torna progresso. E as duas ideias se põem juntas.
O quadro, naturalmente, é de todo diferente se acreditarmos que as res novae sejam apenas metamorfoses de “arquétipos” necessários e eternos, ou ainda, de modo oposto, a ocasião que de fato dê a possibilidade à virtude para inventar situações e ordens jamais experimentadas. A cultura moderna parece insistir nessa última perspectiva. Mas Maquiavel docet: os inovadores, os fundadores de “principados novos”, devem conhecer bem os antigos exempla, devem saber bem que os homens caminham “quase sempre pelos caminhos empreendidos por outros”, que “todas as coisas que foram” podem ainda ser. Não se dá uma pura inventio novitatis. O novo se constrói com os tijolos da história – mas transformando-os e forçando-os em formas jamais antes construídas. Nem eterno retorno, nem irrefreável fluxo de desordenadas mutações. O passado, como os astros, faz inclinar a algo, não determina.
Mas toda concebível inovação não pressupõe talvez um “retorno”? Qualquer “salto” é possível apenas se uma energia que obtemos em nós mesmos o faz aparecer necessário. Sem uma “voz” que force a superar as montanhas e aventurar-se em mar aberto, jamais poderemos vencer o medo do “novo”, a violência conservadora da consuetudo. Aqui a ideia moderna de revolução manifesta sua origem teológica. Revolução é, por excelência, a conversio, o retorno a si, o face a face com o próprio rosto, ao ponto de, com angústia, nele provar toda a miséria. Desse tremendo espetáculo a alma traz a força para mudar-se por completo. A conversão a si cria as condições imprescindíveis para mudar mente e coração e querer mudar o mundo segundo a nossa imagem. A secularização de tal ideia comporta o abandono ou o esquecimento do fato de que conversio era concebível apenas como gratia, e que jamais o homem, por si só, teria podido atingir a força necessária para mudar-se tão radicalmente. O desejo de res novae quebrou a “ordem” que o coligava à conversio. Por outro lado, essa “deriva” se anuncia desde a passagem da narração da conversão por antonomásia, aquela de Paulo, até a “confissão” da própria conversão por parte de Agostinho. Um raptus para Paulo; o Senhor não se “insinua” na alma, mas nela irrompe de improviso, agita-a junto com o próprio corpo com inaudita violência. Em Agostinho, ao contrário, a conversio avança com fadiga, entre hesitações, dúvidas, suspensões. É a história de uma verdadeira metanoia, isto é, de uma mutação que interessa essencialmente ao nous, à mente; por certo é o Senhor que chama e que vence, mas o eleito responde porque consegue convencer-se da verdade que a ele se manifesta. Tal decisão captura em si o ser humano na sua integridade, mas a marca dominante é a intelectual-noética – marca de todo estranha na narração evangélica sobre Paulo. A ideia moderna de revolução a seculariza, fazendo da decisão o produto de uma vontade movida somente pela energia do intelecto. Permanece, talvez, a angústia diante das condições do saeculum; mas não se trata da angústia que nos coloca diante de nós mesmos, que nos faz sentir responsáveis em todos os sentidos e que nos força a mudar de vida. O inovador de hoje não prova nenhuma necessidade de conversão; pelo contrário, ele, que se levanta como modelo da “ordem nova”, é a inocente figura futuri[2]. O agostiniano abismo do Si talvez se fechou para sempre sob a louca ideia de uma indefinida “revolução permanente”.        


[1] Trata-se de um neologismo recente. Como antonomásia, faz referência direta ao político do Partido Democrático Italiano Matteo Renzi, prefeito de Florença desde 2009, que, na ânsia por “reestruturação” do seu partido, lançou uma palavra de ordem de “liquidação” dos por ele referidos como seus “obsoletos grupos dirigentes”. (N.T.) 
[2] O autor joga com a expressão presente em Romanos 5; 14, segundo a edição da Vulgata: “sed regnavit mors ab Adam usque ad Moysen etiam in eos, qui non peccaverunt in similitudine praevaricationis Adae, qui est figura futuri” – isto é, segundo a edição brasileira da Bíblia de Jerusalém: “Todavia, a morte imperou desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram de modo semelhante à transgressão de Adão, que é figura daquele que devia vir...”(N.T.)

Texto publicado no dia 07 de maio de 2013, no jornal La Repubblica, na parte R2 Cultura, página 57, com o título Metafisica della Rivoluzione. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Arco do Triunfo, Paris. Escultura denominada La Marseillaise, de François Rude. 1833-36.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Der Steppenwolf



para PWZ

um animal carnívoro, irascível, nada gregário
seu nomadismo é limitado pelo fim dos campos abertos
sua fria verdadeira solidão
isso o impele a atacar caravanas satisfeitas
sedentários cientes de seu minifúndio, de seus futuros
os construtores de edifícios e contabilistas na vida
não há fuga para a tragédia em que nos metemos
nem o boteco sujo da esquina nem sua droga
nem o grito rouco
nem o cimento cru, o asfalto, o beco dos craqueiros
não, nem mesmo o beijo e o sexo da amada
caçados sem recompensa
salvos apenas pelo anacronismo
o lobo da estepe
a estepe do lobo.

sábado, 20 de julho de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XIII


A Alejandra Pizarnik

Por aqui passou o amor. Como o vento forte de um dia de nuvens baixas, varreu todos seus sonhos de um sentido único à vida para as sombras do tempo. 

El principio ha dado a luz el final
Todo continuará igual
Las sonrisas gastadas
El interés interesado
Las preguntas de piedra en piedra
Las gesticulaciones que remedan amor 
Todo continuará igual.

E o sonho agora sombreado sondava, à espreita, os féretros que habitou antes de morrer, todos os dias, mesmo sem o amor ter passado. Vida sem esperanças e deglutida pelo vento. Gritava e esperava sentir nesse grito o opus magnum da sua existência. Não há língua capaz de fazer sentido, não há permanência do amor aqui. Passa e, como passado, é a gaiola transformada em pássaro, a prisão na liberdade póstuma, a condenação às ausências. Fogo consumado, a vida dança como opus postumum. O fio miseravelmente tênue dos sentidos do grito se rompe em silêncio, no branco e opulento silêncio escuro da memória.
  
Recuerdo mi niñez
cuando yo era una anciana
Las flores morían en mis manos
porque la danza salvaje de la alegría
les destruia el corazon

Recuerdo las negras mañanas de sol
cuando era niña
es decir ayer
es decir hace siglos

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
y ha devorado mis esperanzas

Señor  
La jaula se ha vuelto pájaro
Qué haré con el miedo  


Imagem: Thomas Dworzak. 2006.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Pequeno parágrafo sobre mapas


Salvus. Todo mapa está desenhado desde o princípio daquilo que ele representa. Aliás, nenhum mapa reconstitui ou representa algo (um espaço, um domínio, uma dimensão); não grafa senão a forma daquilo que é salvo da não existência, salvo na falência (em erro, portanto). Em busca de refúgio, tentamos escrever mapas a todo tempo. Murilo Mendes desenhou seus delírios de desconjuntado colado ao tempo na expectativa de cartografar-se. Deixou apenas traços. Mário Quintana, talvez encantado, sonhou em seu mapa uma rua que nem em sonho podia traçar. Borges, inventariando a infâmia, pensou os mapas desmedidos e inúteis. Restaram ruínas. Restaram traços. Tudo é traço: as letras das cartas que endereçamos à amada (e não são as cartas o mapa impossível do amor?), as marcas nesse pequeno livro que preencho despreocupado em uma sala de espera qualquer, o tetragrama sagrado. Esse deus - que, como lembra Scholem, pode ser chamado, mas não pronunciado - que se tornou letra para, na arca da aliança, seguir a cartografia errante do povo que havia escolhido. A sós no deserto, os hebreus corriam os olhos pelo rolo sagrado para tentar decifrar, nas letras, o caminho para a terra prometida (e a promessa? Não seria o mapa impossível do porvir?). Clamando no deserto, os profetas (megafones da promessa do divino) mapeavam os trilhos para a salvação. Salvamos, nos toques transformadores da pena sobre o papel - no grafema -, nossa perspectiva de permanência nos lindes (e não lides) que são as letras - abstrações minimizantes que tornam macroscópica nossa imagem grafada. Nenhuma redenção comporta mapas. Estes, como cartas que são, não passam de espaços meio, em trânsito, a caminho de alguém que não se sabe se os lerá. Aprofundados, meus mapas deslocam-se pelos espaços que tentam marcar (tal como as quatro letras divinas) e, perdidos na impossibilidade de gravar-grafar uma verdade (espacial e histórica - e, lembra-nos Derrida, mesmo a verdade sobre algo teria sua história falseável), lançam-me na interdição absoluta: não é possível fazer fronteira no deserto, não é possível salvar o que se deixa tocar apenas como linde, limiar, entre determinações. Assim, só nos resta perceber a miséria do inóspito de todo mapa: sua condenação à errância. 

Imagem: Jacopo de' Barbari. Mapa de Veneza. 1500. Museo Correr, Venezia.

O que é um coxinha?



Os coxinhas são netos da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", de 1964, e filhos do "Movimento Cara Pintada", de 1992. Seus gritos por moralização na política, seu véu de "apartidarismo" e seu liberalismo de quintal são a casca adiposa em cujo centro estão o medo arcaico do perigo do “comunismo" e a defesa intransigente de suas heranças. É o conservadorismo de direita amedrontado por fantasmas vermelhos e reformas agrárias goulartianas. O coxinha é o homem-médio que, formado massa, alimenta o fascismo. Não se preocupa em estar na moda - ao contrário de seu co-irmão, o hipster - contenta-se com uma indumentária frugal, porém de marcas caras, cujo símbolo é a camisa polo invariavelmente colocada dentro da calça. Mas uma frugalidade apenas aparente: os coxinhas alimentam a indústria automobilística, de armas, segurança privada e de entretenimento, incluindo aqui shoppings centers de elite, o cinema blockbuster e o mercado do sexo. O coxinha vive para casar, ter filhos e, quando fraturada a instituição que determina sua vida, para salvá-la recorrerá, com sua legítima esposa de caríssimo casamento, até mesmo às casas de swing. De todo modo, os coxinhas casados são os consumidores típicos dos grandes bordéis ou flats de "acompanhantes". O coxinha nunca exprime sua ira, salvo na multidão e motivado pela televisão ou por leituras invariavelmente medíocres. Veja, Estadão e Folha de São Paulo são as bíblias do coxinismo, Geraldo Alkmin é seu arquétipo encarnado. Os coxinhas são indivíduos do meio-termo, da lei e da probidade, mesmo que para consegui-la tenham de defender o estado de sítio, a vigilância integral e a barbárie de um Estado policial. Em São Paulo, capital do coxinismo, a maior parte dos membros fascistas da PM (ou seja, a quase totalidade da tropa!) são, em seu cotidiano sem farda, típicos coxinhas. E a maior parte dos coxinhas são ou aspiram, na condição de eternos concurseiros, entrar para o funcionalismo público. Mas não por idealismo, simplesmente em prol da palavra sagrada de todo coxinismo: estabilidade. Menos impostos, menos ideologia, queremos criar nossos filhos e filhas em um ambiente de paz, servos da ordem, das Igrejas, da austera ética do trabalho, dos costumes saudáveis, queremos segurança para nossos carros, casas e pertencentes conquistados com suor, queremos um mundo sem corrupção, partidos de esquerda, vagabundos e menores delinquentes, queremos, sim, ser bovinos, precisamos de um pasto aprazível e de vigias, regramentos sobre tudo, até que sobrevenha nossa morte, onde, júbilo, serem coxinhas felizes junto ao Eterno Estável de um cemitério.                                    

terça-feira, 16 de julho de 2013

Benjamin secreto

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Entrevista de Giorgio Agamben concedida a Antonio Gnoli

Terríveis devem ter sido os últimos anos de vida de Walter Benjamin. Em uma sequência de eventos negativos, entre 1938 e 1940, ele morou em Paris em isolamento e extrema pobreza. Os seus dias transcorriam na Bibliothèque Nationale, o único lugar que lhe garantia a necessária concentração para levar adiante o seu projeto. Entre as cartas e fichas em que compulsivamente fazia anotações, trabalhava na redação de um grande livro. Então aconteceu o pior. E foi como cair de modo ruinoso desde o alto de um precipício. Em alguns poucos meses, o judeu Benjamin empreendeu uma fuga que se concluiu, como é notório, com o suicídio em Port-Bou, na divisa com a Espanha, em setembro de 1940. Contam que junto às poucas coisas necessárias à sobrevivência, Benjamin trazia consigo uma mala com o manuscrito no qual havia febrilmente trabalhando. É muito provável que tal mala, que, diz-se, perdeu-se, seja apenas uma lenda, e que a verdade seja outra. A nos contá-la está Giorgio Agamben, que descobriu as cartas, hoje finalmente publicadas pela Neri Pozza.

Antonio Gnoli: Como o senhor chegou à descoberta?
Giorgio Agamben: Casualmente. Naquele período, o fim dos anos setenta, estava trabalhando para reencontrar as últimas cartas de Benjamin, e inclusive o famoso manuscrito das Pariser Passagen, que se acreditava perdido. Quando um dia, folhando cartas de Georges Bataille, encontrei uma na qual Bataille, escrevendo a um amigo que trabalhava no setor de conservação da Bibliothèque Nationale, citava alguns envelopes nos quais estariam contidos manuscritos de Benjamin. Na margem da carta havia uma anotação do funcionário que indicava a Bibliothèque Nationale como o lugar onde aqueles manuscritos se encontravam. 
Assim começou a caça ao tesouro?
Foi uma busca eletrizante. Por fim, encontrei os manuscritos em um armário. Havia deixado ali a viúva de Bataille. É preciso notar que a Bibliothèque não catalogava os trabalhos do depósito, por isso poderiam ainda ter permanecido sepultados ali por decênios.
O que exatamente o senhor encontrou?
Tudo aquilo que então se tornou este livro, que deveria ter saído em 1996. Mas tempestuosas brigas editoriais impediram a publicação.
A que o senhor alude?
À decisão da Editora Einaudi de não publicá-lo. Pediram-me coisas absurdas, como, por exemplo, cortar o livro, pois a edição completa teria prejudicado o volume sobre as Passagen. Teria sido como pedir para que um estudioso de Dante que descobre um novo manuscrito da Commedia não o publique, pois, assim, iria prejudicar as edições precedentes.
Passaram-se quase vinte anos. Nesse período os direitos sobre as obras de Benjamin caíram em domínio público, e o livro finalmente é publicado com o título Baudelaire, un poeta lirico nell’età del capitalismo avanzato [Baudelaire, um poeta lírico na idade do capitalismo avançado]. Por que é tão importante e o que o diferencia das Passagen que a Einaudi publicou com o título Parigi, capitale del XIX [Paris, capital do século XIX]?
Benjamin, nos últimos anos da sua vida, estava trabalhando em uma obra fundamental. E, em um primeiro momento, essa obra são as Passagen de Paris, que contêm um capítulo dedicado a Baudelaire. Mas conforme avança, o capítulo cresce a ponto de suplantar o trabalho precedente. Por isso, de modelo em miniatura, o “Baudelaire” se torna a obra completa.
Mas, desse modo, o que é o livro das Passagen publicado pela Einaudi?
É simplesmente o grande fichário organizado por Benjamin. Tanto é verdade que quando informei o organizador das obras de Benjamin, R. Tiedemann, sobre a situação, ele colocou uma nota no último volume em que diz que, se tivesse conhecimento desses materiais antes, teria sido possível fazer uma edição histórico-crítica do livro sobre Baudelaire que teria mudado muitas coisas. Portanto, essa edição que organizei é a primeira no mundo. Sei que também os alemães, com base na descoberta, farão uma.
Mas, por fim, o que de substancial é acrescido? 
Finalmente é possível entrar com clareza no trabalho de Benjamin, no seu modo de trabalhar, que, de fato, não é neutro. Quando decide desviar a atenção para Baudelaire, toma o enorme fichário das Passagen e o reordena, coloca-o, por assim dizer, em movimento. É como se o material até então recolhido tivesse sido chamado a uma nova vida.
Passa-se, ele escreve, da documentação à construção do texto.
O que não é uma passagem inerte, passiva, esotérica. Mas um modo para tecer a conexão entre os seus conceitos fundamentais: “aura”, “alegoria”, “mercadoria”, “prostituição” etc. Até ontem se pensava que as Teses sobre o conceito de história fossem o último trabalho de Benjamin. Na realidade, aquelas “Teses” – como ele nos mostra – são apenas o aparato teórico de uma seção do livro sobre Baudelaire. Está claro que muda a perspectiva. Em um fragmento anota: é preciso construir o objeto como mônada.
Uma afirmação enigmática.
Refere-se às mônadas de Leibniz. Estas, é verdade, não têm janelas, mas não as têm enquanto elas mesmas representam o universo. Elas o contêm. Portanto, os objetos a que se refere Benjamin são aqueles nos quais já está refletida a construção do todo.
Trabalhar sobre o pequeno, o desprezível, para descobrir o grande. Era esse o seu princípio micrológico?
Sim. O senhor diz “desprezível” e tal palavra remete ao outro princípio que o orienta: trabalhar sobre os trapos, os refugos, as categorias secundárias e frequentemente escondidas. Não por acaso escolheu as passages parisienses que, naquela época, do ponto de vista arquitetônico, eram consideradas um objeto absurdo que não interessava a ninguém, salvo aos surrealistas, que as redescobriam como objeto estranho.
Em suma, Benjamin desce a um subsolo que quase ninguém conhece.
Em um certo ponto, para definir o próprio trabalho, Freud diz que se não puder mover os deuses, moverá o Aqueronte, isto é, o inferno. Também o princípio de Benjamin era aquerôntico. Ele não indaga as grandes categorias, os grandes conceitos sobre os quais se debruçaram os historiadores da cultura, mas se move nos ínferos da Paris do século XIX. Lê a história a contrapelo. 
E Baudelaire é o “Virgílio” que o conduzirá no seu inferno?
Absolutamente. Para ele, Baudelaire é o poeta que de pronto se dá conta de que tudo mudou, de que tudo tem a ver com o mercado e a mercadoria. É o teórico do moderno, mas o moderno é também o arcaico.
O modo de Benjamin trabalhar, anotando tudo em pequenas fichas, parece de outros tempos.
Era uma necessidade. Naqueles anos era tão pobre que não podia nem mesmo permitir-se comprar papel. Utilizava qualquer folha: desde o verso de cartas que lhe eram expedidas até rótulos da água San Pellegrino que tomava nos bares.
Como se mantinha?
Com o pouco dinheiro que lhe expediam Adorno e o Institut für Sozialforschung. Angustiou-se quando soube que haveriam de reduzi-lo.
Até que ponto foram fundamentais as relações com Adorno e Horkheimer?
Até menos do que se pensa. Há um episódio revelador. Há alguns anos, saiu dos arquivos da universidade, onde Benjamin havia tentado obter a habilitação de docente [abilitazione], o relatório que motivava a negativa. Benjamin tinha apresentado como trabalho A origem do drama barroco. O professor que examinou o texto confessou que não entendeu nada, por isso pediu o parecer do seu jovem assistente, Max Horkheimer, que redigiu uma nota – assinada – na qual reprovava Benjamin. Tal ato mudou radicalmente a vida de Benjamin. Não sei se para o bem o para o mal. Mas tornou-a duríssima. 

La Repubblica, 12 de dezembro de 2012. p. 57. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

A eleição não é a democracia

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Jacques Rancière em entrevista concedida a Eric Aeschimann


Le Nouvel Observateur: A eleição presidencial geralmente é apresentada como o ponto culminante da vida democrática francesa. Não é o seu ponto de vista. Por quê?
Jacques Rancière: No seu princípio, como na sua origem histórica, a representação é o contrário da democracia. A democracia é fundada sobre a ideia de uma igual competência de todos. E seu modo normal de designação é o sorteio, tal como se praticava em Atenas, com a finalidade de impedir a monopolização do poder por aqueles que o desejam.
A representação é um princípio oligárquico: aqueles que desse modo são associados ao poder representam não uma população, mas o estatuto ou a competência que fundam sua autoridade sobre tal população: o nascimento, a riqueza, o saber ou outros.
Nosso sistema eleitoral é um compromisso histórico entre poder oligárquico e poder de todos: os representantes das potências estabelecidas tornaram-se os representantes do povo, mas, de modo contrário, o povo democrático delega seu poder a uma classe política à qual é creditado um conhecimento particular dos assuntos comuns e o exercício do poder. Os tipos de eleição e as circunstâncias fazem pesar mais ou menos a balança entre os dois.
A eleição de um presidente como encarnação direta do povo foi inventada em 1848, contra o povo das barricadas e dos clubes populares, e reinventada por De Gaulle para dar um “guia” a um povo demasiado turbulento. Longe de ser a coroação da vida democrática, ela é o ponto extremo da desapropriação eleitoral do poder popular em benefício dos representantes de uma classe de políticos, cujas frações opostas partilham por sua vez o poder dos “competentes”.  
Não estariam tomando ciência das insuficiências do sistema representativo tanto François Hollande, ao prometer ser um presidente “normal”, quanto Nicolas Sarkozy, ao se propor a “dar a palavra ao povo”?
Um presidente “normal” na 5ª República é um presidente que concentra um número anormal de poderes. Hollande será talvez um presidente modesto. Mas ele será a encarnação suprema de um poder do povo, legitimado para aplicar os programas definidos por pequenos grupos de especialistas “competentes” e por uma Internacional de banqueiros e chefes de Estado.
Quanto a Nicolas Sarkozy, sua declaração é francamente cômica: por princípio, a função presidencial é a de tornar inútil a palavra do povo, uma vez que este apenas pode escolher silenciosamente, uma vez a cada cinco anos, aquele que vai falar em seu lugar.     
O senhor coloca a campanha de Jean-Luc Mélenchon no mesmo saco?
A operação de Mélenchon consiste em ocupar uma posição marginal que é ligada à lógica do sistema: aquela do partido que está ao mesmo tempo dentro e fora. Essa posição foi durante muito tempo a do Partido comunista. O Front national a tal posição se emparelhou e Mélenchon tenta por sua vez retomá-la. Mas no caso do PCF, essa posição se apoiava sobre um sistema eletivo de contra-poderes que lhe permitiam ter uma agenda distinta dos compromissos eleitorais.
Já para Mélenchon, como para Le Pen, trata-se apenas de explorar essa posição no quadro do jogo eleitoral da opinião. Honestamente, não penso que haja grandes coisas a esperar. Uma verdadeira campanha de esquerda seria uma denúncia da própria função presidencial. E uma esquerda radical supõe a criação de um espaço autônomo, com instituições e formas de discussão e de ação não dependentes das agendas oficiais.   
Os comentadores políticos aproximam propositalmente Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon ao acusá-los de populismo. O paralelismo tem fundamendo?
A noção de populismo é feita para amalgamar todas as formas de política que se opõem ao poder das competências autodeclaradas e para trazer essas resistências a uma mesma imagem: aquela do povo atrasado e ignorante, leia-se, hediondo e brutal. Invocam-se os progroms, as grandes demonstrações nazistas e a psicologia das massas, ao modo de Gustave Le Bon, para identificar poder do povo e explosão de um bando racista e xenófobo.
Mas onde vemos hoje as massas em cólera destruir comércios de magrebinos ou perseguir os negros? Se existe xenofobia na França, ela não vem do povo, mas sim do Estado, uma vez que ele se empenha numa perseguição que coloca os estrangeiros em situação de precariedade. Estamos lidando com um racismo de cima.
 
Não há então uma dimensão democrática nas eleições gerais que pontuam a vida das sociedades modernas?
O sufrágio universal é um compromisso entre os princípios oligárquicos e democráticos. Nossos regimes oligárquicos têm, apesar de tudo, necessidade de uma justificação igualitária. Mesmo que seja mínima, esse reconhecimento do poder de todos faz com que, talvez, o sufrágio leve a decisões que vão ao encontro da lógica das competências.
Em 2005, o Tratado constitucional europeu foi lido, comentado e analisado; uma cultura jurídica partilhada se desdobrou na internet, os incompetentes afirmaram certa competência e o texto foi rejeitado. Mas sabemos o que aconteceu! Finalemente, o tratado foi ratificado sem ser submetido ao povo, em nome do argumento: a Europa é um assunto para gente competente e por isso não saberíamos confiar seu destino à sorte do sufrágio universal.    
Onde se situa então o espaço possível de uma “política” no sentido em que o senhor a entende?
O Ato político fundamental é a manifestação do poder daqueles que não têm nenhuma titularidade para exercer o poder. Nos últimos tempos, os movimentos dos “indignados” e a ocupação de Wall Street foram, depois da “Primavera Árabe”, seus exemplos mais interessantes.
Tais movimentos lembraram que a democracia é viva desde que ela invente suas próprias formas de expressão, e que ela una materialmente um povo que não é mais decupado em opiniões, grupos sociais ou corporações, mas que é o povo de todos e de não interessa quem. Aí se encontra a diferença entre a gestão – que organiza relações sociais nas quais cada um está no seu lugar – e a política – que reconfigura a distribuição dos lugares.
É por isso que o ato político sempre se acompanha da ocupação de um espaço que desviamos de sua função social para dele fazer um lugar político: ontem a universidade ou a usina, hoje a rua, a praça ou os tribunais. É claro que esses movimentos não foram capazes de durar até dar a essa autonomia popular formas políticas: formas de vida, de organização e de pensamento em ruptura com a ordem dominante. Reencontrar a confiança em tal capacidade é uma obra de longa duração.   
O senhor irá votar?
Não sou desses que dizem que a eleição é apenas um simulacro e que jamais se deve votar. Há circunstâncias em que isso tem um sentido de reafirmação desse poder “formal”. Mas a eleição presidencial é a forma extrema do confisco do poder do povo em seu nome próprio. E pertenço a uma geração nascida na política do tempo de Guy Mollet e para quem a história da esquerda é aquela de uma traição perpétua. Então não, não creio que irei votar. 

Entrevista publicada no Le Nouvel Observateur, em 18/04/2012 (às vésperas da eleição presidencial na França). Disponível em: http://bibliobs.nouvelobs.com/tranches-de-campagne/20120418.OBS6504/jacques-ranciere-l-election-ce-n-est-pas-la-democratie.html (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

O fabricante de espelhos


Primo Levi

Timoteo, seu pai, e todos os seus ascendentes até os tempos mais remotos sempre fabricaram espelhos. Em uma caixa de mantimentos [madia] da sua casa ainda se conservam espelhos de cobre esverdeados pela oxidação, e espelhos de prata enegrecidos por séculos de manipulações humanas; outros de cristal, emoldurados com marfim ou madeira de lei. Morto seu pai, Timoteo sentiu-se livre dos vínculos da tradição; continuou a forjar espelhos de modo profissional, os quais, no mais, vendia com lucro em toda a região, mas voltou a meditar sobre um velho projeto.
Desde moço, escondido do pai e do avô, havia transgredido as regras do ofício. De dia, nas horas de trabalho, como aprendiz disciplinado, fazia os mesmos enfadonhos espelhos planos, transparentes, incolores, aqueles que, como se diz, dão a imagem verídica (mas virtual) do mundo, em especial aquelas dos rostos humanos. De noite, quando ninguém o vigiava, confeccionava espelhos diversos. O que faz um espelho? "Reflete", como uma mente humana; mas os espelhos usuais obedecem a uma lei física simples e inexorável; refletem como uma mente rígida, obsessiva, que pretende acolher em si a realidade do mundo: como se existisse uma só! Os espelhos secretos de Timoteo eram mais versáteis. 
Havia os de vidro colorido, estriado, leitoso: refletiam um mundo mais vermelho ou mais verde do que o verdadeiro, ou sarapintado, ou com contornos delicadamente esfumaçados, de modo que os objetos ou as pessoas pareciam aglomerar-se como nuvens. Havia os múltiplos, feitos de lâminas ou lascas engenhosamente anguladas: estes esmagavam a imagem, reduziam-na a um mosaico gracioso porém indecifrável. Um dispositivo, que havia custado semanas de trabalho a Timoteo, invertia o alto com o baixo, e a direita com a esquerda; quem olhava para ele, na primeira vez, provava uma vertigem intensa, mas, se insistisse por algumas horas, acabava habituando-se com o mundo invertido e, então, tinha náuseas diante do mundo que de maneira inesperada se endireitava. Um outro espelho era feito de três paineis e quem nele se olhava via o seu rosto multiplicado por três: Timoteo o deu de presente para o pároco para que, na hora do catecismo, fizesse as crianças entender o mistério da Trindade.
Havia espelhos que engrandeciam, como tolamente se diz que os olhos dos bois fazem, e outros que diminuíam, ou faziam aparecer as coisas infinitamente distantes; em alguns te vias esguio, em outros atarracado e baixo como um Buda. Para dar um presente a Agata, Timoteo produziu um espelho de armário a partir de uma placa de vidro ligeiramente ondulada, mas obteve um resultado que não tinha previsto. Se o sujeito se olhava sem se mover, a imagem mostrava apenas leves deformações; se, ao contrário, se mexia para cima e para baixo, flexionando um pouco os joelhos ou levantando-se na ponta dos pés, a barriga e o peito refluíam impetuosamente para cima e para baixo. Agata se viu transformada então em uma mulher-cegonha, com as costas, seios e ventre comprimidos em um pacote equilibrado sobre duas longuíssimas pernas ressequidas; e, pouco depois, em um monstro com o colo filiforme ao qual era dependurado todo o resto, uma pilha de hérnias esmagadas e achatadas como barro do oleiro que cede com o próprio peso. A história acabou mal. Agata rompeu o espelho e o namoro, e Timoteo afligiu-se, mas não tanto.
Tinha em mente um projeto mais ambicioso. Testou, guardando extremo segredo, vários tipos de vidro e de revestimentos metálicos [argentatura], submeteu os seus espelhos a campos elétricos, irradiou-os com lâmpadas que mandara trazer de países distantes, até que lhe pareceu estar próximo do seu objetivo, que era obter um espelho metafísico. Um Espemet, isto é, um espelho metafísico, não obedece as leis da óptica, mas reproduz a tua imagem tal qual é vista por quem está diante de ti: a ideia era velha, já Esopo a havia pensado e quiçá quantos outros antes e depois dele, mas Timoteo havia sido o primeiro a realizá-la.
Os Espemet de Timoteo eram tão grandes quanto um cartão de visitas, flexíveis e adesivos: de fato, eram destinados a ser aplicados sobre a fronte. Timoteo testou o primeiro exemplar colando-o numa parede, mas não viu nada de especial: a sua costumeira imagem, de trinta e poucos anos e já um pouco calva, com ar arguto, sonhadora e um pouco desleixada: mas isso pois um muro não te vê, não guarda imagens de ti. Preparou umas vinte amostras e lhe pareceu justo oferecer a primeira a Agata, com quem tinha conservado uma relação tempestuosa, para pedir perdão pelo episódio do espelho ondulado.
Agata o recebeu de maneira fria; escutou as explicações com uma distração ostentada, mas quando Timoteo propôs colar o Espemet na fronte dela, não se fez de rogada: tinha compreendido muito bem, pensou Timoteo. Com efeito, a imagem de si que ele viu, como em uma pequena tela de tv, era pouco lisonjeira. Não era um pouco calvo, mas careca, tinha os lábios entreabertos em um sorriso bobo e no qual transpareciam os dentes apodrecidos (é sim, era do tipo que demandava os cuidados de um dentista), a sua expressão não era sonhadora mas abestalhada, e o seu olhar era muito estranho. Estranho por quê? Não tardou a entender: em um espelho normal, os olhos te olham sempre, naquele, ao contrário, olhavam de modo enviesado para a sua esquerda. Aproximou-se e distanciou-se um pouco: os olhos correram fugindo à direita. Timoteo deixou Agata com sentimentos contrastantes: o experimento havia transcorrido bem, mas se de fato Agata o via assim, o rompimento só podia ser definitivo.
Ofereceu o segundo Espemet para sua mãe, que não pediu explicações. Ele se viu com dezesseis anos, loiro, corado, etéreo e angélico, com os cabelos bem penteados e o nó da gravata à altura justa: como uma lembrancinha dos mortos, pensou consigo mesmo. Nada a ver com as fotografias escolares reencontradas poucos anos antes numa gaveta, que mostravam um rapazinho animado mas intercambiável com a maior parte dos seus colegas.
O terceiro Espemet pertencia a Emma, não havia dúvidas. Timoteo havia passado de Agata a Emma sem grandes traumas. Emma era miúda, preguiçosa, gentil e esperta. Havia ensinado a Timoteo algumas artes sob as cobertas com as quais ele sozinho jamais poderia ter pensado. Era menos inteligente que Agata, mas não tinha as durezas pétreas: Agata-ágata, Timoteo jamais antes tinha se dado conta, os nomes são também algo. Emma não entendia nada do trabalho de Timoteo, mas com frequência batia à porta de seu laboratório e o fitava por horas com olhos encantados. Sobre a fronte lisa de Emma, Timoteo viu um Timoteo maravilhoso. Estava a meio busto e com o torso nu: tinha o tórax harmonioso pelo qual ele sempre sofrera por não ter, um rosto apolíneo com uma densa cabeleira ao redor da qual se entrevia uma guirlanda de louros, um olhar ao mesmo tempo sereno, feliz e rapace. Naquele momento, Timoteo percebeu que amava Emma com um amor intenso, doce e duradouro. 
Distribuiu vários Espemet aos seus amigos mais caros. Notou que nenhuma das imagens coincidiam entre si: em suma, um verdadeiro Timoteo não existia. Notou ainda que o Espemet possuía uma virtude de destaque: fortalecia as amizades antigas e sérias, enfraquecia rapidamente as amizades de ocasião ou conveniência. Entretanto, toda tentativa de dele desfrutar comercialmente faliu: todos os representantes estavam de acordo com relação ao fato de que os clientes satisfeitos pela própria imagem refletida pela fronte de amigos ou parentes eram muito poucos. As vendas teriam sido mesmo muito escassas, mesmo se o preço fosse diminuído pela metade. Timoteo patenteou o Espemet e deu o sangue durante alguns anos no esforço de manter vivo a patente; em vão tentou vendê-la, e, enfim, se resignou e continuou a fabricar espelhos planos, no mais, de qualidade excelente, até a idade da aposentadoria.

1º de novembro de 1985.            


Primo Levi. Il Fabbricante di specchi. In.: L'ultimo natale di guerra. Torino: Einaudi, 2002. pp. 69-73. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)     

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Carta impossível



Para minha destinatária impossível.

Querida, ando a ver monstros onde deveriam estar seus retratos (estranho como toda vez que escrevo retrato, tenho em mente a distância, o retrait, mas de uma maneira doentia, talvez como essa mania de escrever à distância). Andei ocupado o suficiente a ponto de chegar a pensar que seria você possível. São os monstros, querida, essa excrescência que, no entanto, é o meu mais íntimo. Não sei se os seus retratos impossíveis poderiam dar algum alento ou mesmo substituir aquelas imagens sem nome que agora ocupam a prateleira (aliás, o lugar dos livros levados por você e que, agora, é o lugar da distância, desses seus retratos faltantes). Desperto, mas o sonho permanece em mim. E lembro dos começos do desassossego daquele português, que se perdia em si mesmo e que detestava sonhar e agir: "como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra." Parece que não há escapatória desta carta que hesitei em escrever, querida. Aliás, por insisto num apelativo tão hipócrita (para não dizer idiota)? Toco a prateleira vazia e tão plenamente ocupada pelas imagens disformes dos monstros. Talvez eles a mim apareçam por ter, um dia, acreditado poder vencê-los (como se pudesse tocá-la, mesmo na sua impossibilidade); e porventura não são os homens de antemão condenados à derrota? Lembra-me disso o chileno infrarrealista que, perdido, dirigindo um Impala, no seu imaginário deserto de Sonora, no seu não menos imaginário México, pensava a condenação do ser humano à "derrota sin apelaciones, pero que hay que salir y dar la pelea y darla además de la mejor forma posible, de cara y limpiamente, sin pedir cuartel (porque además no te lo darán), e intentar caer como un valiente, y eso es nuestra victoria." Os monstros se exibem e seu afastamento - sua impossibilidade - mostra-se apenas como o no man's land onde devo lutar e lutar já me sabendo um derrotado. Querida (ouso o apelativo talvez pela última vez), agora me dou conta de que nenhum alento, que seja a sua fantasmagoria em retrato, é possível; todo pedido de cuartel é desde sempre negado (foi-se o tempo do miserere nobis). Agora uma luz seca, quase opaca, começa a me tocar a ponta dos dedos. Esqueço o porquê de ter tomado o papel e a caneta para novamente endereçar-me a você. A luz, como que a afagar os monstros, me faz ter receio de continuar. Ainda tinha muito a lhe falar sobre a derrota, a ausência, e todos os signos do negativo. Mas já não há papel e, com isso, me resta uma possibilidade: cair como um valente.

Do seu remetente impossível.

p.s.: mando-lhe uma foto de um outro chileno. Talvez também ele atormentado por monstros...        




terça-feira, 9 de julho de 2013

Pequeno parágrafo sobre o grito


Sobre ele encontrava-se uma imensidão de entulhos: uma massa disforme das mais variadas coisas, todas elas habitantes de suas lembranças. Para ele, naquele exato momento, era impossível se mover. Permanecia inerte e sufocado pelo peso de tudo aquilo. Ao mesmo tempo, entretanto, num paradoxo inimaginável, era como se a possibilidade de livrar-se dos entulhos não pudesse liberá-lo, libertá-lo. Era como se tivesse que "acertar as contas" com cada um dos infindáveis objetos que lhe impediam o movimento. Era como o impossível (comparação desprezível e insignificante, pois o impossível é o interdito por excelência). Tomou, de repente, uma daquelas coisas sob as quais se encontrava e viu que se tratava de algumas frases de um colega de Che Guevara. Leu em voz alta: "A letra mata, talvez, porém faz durar e reviver." Imediatamente se deu conta da malfadada operação de libertação em que se encontrava. Jamais conseguiria novamente se mover; era agora a letra que, de modo contrário ao que pensam os juristas, jamais é morta, mas, tal como acabara de ler, o que mata. Estava morrendo (isso, este continuísmo no presente, também um insignificância no que diz respeito à morte). Inscrito, escrito, marcado, seu mundo não existia senão como as salutares coisas que agora o pressionavam com um peso inaudito (e, de fato, o espanto nunca se ouve, nunca é trabalho de uma voz, mas do corpus assustador que um dia se ousou dar nome, assinalar com o peso assassino da letra). Completamente perdido em si mesmo - esta, sua maior prisão -, não havia mais como respirar. Como alguém que acaba de perder a visão, desesperado, tentou aplacar o medo do encontro com o sem nome - que de algum modo, como um profeta, o dono da vox clamantis in deserto, intuía estar próximo - com um grito surdo. E tal grito, de maneira contrária àquela de Adão (que, ao decair, exclama um "ai", uma pura interjeição de dor que abre aos homens o tempo histórico, o tempo das letras e dos sons significantes), jamais poderá significar um tempo, isto é, nunca lhe dará uma história (seja a malfadada history ou as encantadas stories). Morre, não em silêncio, mas com o grito de mais puro silêncio: eis o último homem.

Imagem: Caravaggio. São Jerônimo. 1607. Museo di S. Giovanni, La Valletta. 

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Pequeno parágrafo sobre os hábitos



Usamos nossas vestes como se nos fossem próprias, isto é, os modos justos com os quais poderíamos dar a ver os nossos hábitos (e, não por acaso, hábito é o outro modo de dizer nossos costumes, nossas vestes, nosso modo próprio na impropriedade da exposição). Entretanto, nesse espúrio gesto apropriativo, acabamos por nos esquecer que o uso não é mais do que um servir-se ou um estar habituado, mas jamais uma propriedade, um próprio. As vestes, nossos hábitos, não cruzam o muro que nos separa do nosso ser próprio, pois não temos ou somos nenhuma propriedade, e só nos resta a impropriedade daquilo que chamamos história - e, talvez, por isso o paraíso, cuja etimologia remonta ao avéstico paridaéza (que significava os jardins cercados, os espaços fechados ao exterior), tenha sido, nos imaginários mitológicos - sobretudo judaico e cristão -, o único lugar em que ao homem não era necessária nenhuma veste, pois lá encontrava-se irremediavelmente investido, no seu ser, com a própria glória divina. Relegados ao exterior, lançados para fora dos muros que cercam o paraíso, só nos resta a percepção da nudez (a percepção do mal de nossa impropriedade) e, a partir disso, a tentativa de construção de um espaço de uso, onde, cientes da perdição (vagamos, erramos), tentamos ser com os outros perdidos, ousamos construir o nosso éthos, a nossa imprópria, e apenas passível de uso, morada habitual.

Imagem: Pieter Brueghel. Provérbios (detalhe). Rockox House, Antuérpia. 
 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pequeno parágrafo sobre a salvação


Não há senão o resto vermelho do tinto nos cálices, e tudo o mais é metafísica. A estranheza de estar num lugar inóspito, tal qual um marinheiro em águas distantes (e Ulisses, longe e consciente da impossibilidade de sua Ítaca). Toda e qualquer tentativa de encontrar-se é relegada a um modo de estar ao lado, de circular pelos espaços vazios da existência. Passando pelos tormentos alheios, como algum assistente de Virgílio na barca dantesca, vejo todo espectro de prazer circundado por lembranças, preso às sevícias da memória de alguém que sequer me lembro. Lembro aquilo que supostamente Kafka disse a Janouch: "há esperanças, não para nós", e, numa glosa paródica, digo: "há salvação, não para nós". Tento descer ao fundo dessas memórias de alguém, mas só percebo a insistência de uma memória do mundo - muito, muito maior do que a dos mortais. Há gritos pelas ruas e tudo o mais é silêncio. Estou só num mar arredio - o mar das falas outras, dos espaços outros, desse fio de insanidade que parece querer guiar-me são, porém, jamais salvo...

Imagem: Tintoretto. Descida ao inferno. 1568. San Cassiano, Venezia.