segunda-feira, 22 de abril de 2019

Incidentes lamentáveis ou ações criminosas?



Jonnefer Barbosa 


No dia 11 de abril de 2019, Leonardo Kuntz, engenheiro agrônomo de 22 anos, atropelou e matou instantaneamente minha prima de 10 anos, Michelli Barbosa Szczpanski, na estrada rural que liga Guarapuava a Campina do Simão, municípios do estado do Paraná. O homicídio aconteceu diante da mãe da criança e do padrasto. O limite de velocidade da pista estreita e sem acostamento é de 60km/h. A camionete Ranger dirigida pelo engenheiro trafegava a quase 190km/h.

Minha prima foi morta em frente à sua casa, no sítio onde meus avós viveram, local em que passei a primeira infância, e onde depois viveu o irmão mais novo de meu pai, avô de Micheli, que não conheceu a neta, pois faleceu em 1999. Esta região é chamada de Canhada Funda, em virtude do vale ali existente, que faz com que a estrada em linha reta tenha um declive abrupto a aproximadamente 50m antes do local do atropelamento. Na perspectiva de quem observa a estrada da entrada do sítio, esta característica do relevo, ao impedir a visibilidade dos carros quando estes estão na parte baixa, produz um efeito ótico como se estes desaparecessem por alguns instantes no horizonte, para logo depois voltarem a ser vistos. 

Michelli retornava do colégio no ônibus escolar da prefeitura, por volta do meio dia. Dizia que não tinha mais idade para atravessar ruas pegando a mão de um adulto. Ela desceu do ônibus, observada pela mãe. Olhou para os dois lados e atravessou. Não havia nada no horizonte quando iniciou a travessia, o dia era claro. No momento em que terminava de atravessar a pista, quase na entrada de sua casa, a camionete passou “como um vulto e a arrastou” – nas palavras do motorista do ônibus escolar, que naquele instante voltava a pegar a estrada.

Uma camionete grande e potente a 190km/h atravessa 53 metros em 1 segundo. Leonardo Kuntz não freou tampouco desviou. Michelli foi morta na pista contrária de seu desembarque, praticamente fora da estrada. A ponta do lado direito da camionete a atingiu, arrastando-a por 38 metros. A batida causou um rombo na camionete, só explicável pela velocidade desta no momento da colisão: para um corpo leve e desprotegido de uma menina de 10 anos produzir tamanho estrago em um automóvel feito para enfrentar condições extremas, foi necessária uma grande velocidade.

O homicida é filho de um latifundiário da região, um dos maiores plantadores de batatas do sul do Brasil. Mesmo que tenham presenciado o crime a mãe e o padrasto da criança, o motorista e o monitor do ônibus escolar, além de várias crianças presentes no transporte coletivo, no relato feito pelo boletim de ocorrência do 16º Batalhão de Polícia Militar de Guarapuava consta apenas a palavra do homicida, que mente ao dizer que chamou o resgate e que prestou socorro – a criança estava morta na estrada e quem chamou o resgate foi o motorista do ônibus, a pedido da mãe da criança. A mãe e o padrasto permaneceram ao lado do corpo da filha durante todos os angustiantes momentos até a chamada do resgate, desmentindo as afirmações do atropelador. Um inquérito policial tramita na polícia civil de Guarapuava.

Uma filha de sitiantes pobres foi morta por um rico latifundiário que costuma andar nas estradas rurais da região como em uma pista particular de corridas. Os testemunhos dos moradores da Campina do Simão confirmam que o homicida é apreciador contumaz das grandes velocidades. O assassinato de Michelli foi veiculado nos jornais da região apenas como um trágico acidente, favorecido pelas péssimas condições do transporte escolar rural e possivelmente pela imprudência da vítima, que não foi acompanhada por monitores no momento da travessia. Omitiram-se detalhes importantes como o instante e o local da colisão (ela praticamente já havia atravessado a pista, observada pelo motorista e pelo monitor) e a velocidade inadmissível com que a Ford Ranger de Leonardo Kuntz transitava em uma estrada vicinal. Se, na travessia da pista, estivessem ao lado de Michelli sua mãe ou o monitor do ônibus escolar, também teriam sido mortos.

Leonardo Kuntz trafegava em uma pista rural repleta de sítios e casas, teve condições de ver à distância o ônibus escolar, mas como um jovem rico que possui toda a institucionalidade em sua proteção (especificidades brasileiras), não hesitou em usufruir de sua fonte de adrenalina, a velocidade extrema. Assumiu o risco de causar mortes, mas no boletim de ocorrência da polícia militar e no início do inquérito da polícia civil seus gestos inconsequentes no momento do atropelamento foram qualificados de “condutas não delituosas”.

Alguns dias antes do homicídio cometido por Leonardo Kuntz, o próprio presidente da República Federativa do Brasil criticava a existência de radares em rodovias federais, dizendo que teriam o único intuito de “retorno financeiro ao Estado”, determinando o cancelamento da instalação de 8.000 novos radares eletrônicos no país. Também prometeu revisar contratos de radares já existentes em estradas federais, ampliar a validade da CNH de cinco para dez anos e aumentar o limite de pontos para sua suspensão, de vinte para quarenta. Até as lombadas eletrônicas foram colocadas em questão pelo atual presidente.

Não se trata apenas de implantar um neoliberalismo inconsequente em um país cujas rodovias interioranas lembram cenários distópicos. Na lógica governamental pós Bolsonaro, enquanto algumas vidas definitivamente não importam – ou seja, da maior parte da população, os pobres –, as elites e as forças policiais que a defendem atuam com a garantia de matar pessoas sem, paradoxalmente, cometer homicídio. Matar sem qualquer consequência jurídica, com proteção da lei e chancela presidencial. Governar, no vocabulário bolsonarista, não é proteger populações, mas resguardar que a perversidade de alguns poucos milionários e os interesses de empresas estadunidenses não sofram qualquer limitação política.

O assassinato de Michelli soma-se a lutos recentes que, juntos, compõem a insuportabilidade dos critérios do Brasil bolsonarista. Lutar por justiça em seu caso, assim como nos assassinatos de Evaldo Rosa e de Luciano Macedo, metralhados com 80 tiros pelo exército brasileiro, torna-se um gesto imediatamente político. Não são mortes por “incidentes lamentáveis”, como na expressão do ex-juiz que hoje assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública. São homicídios que não podem ser esquecidos e, muito menos, encobertos.


 publicado em Outras Palavras

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Pequeno parágrafo sobre A História




Numa história de amor e ódio, li que "alguns de nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos". Essas palavras soavam desde as ruínas da civilização em meio à floresta: eram os passos d'A História a embrenhar-se no desconhecido para, tudo conhecendo, oferecer-se como nosso sonho, como sentido do progresso. E rumamos, desde então, munidos da onisciência como projeto e do futuro como destino certeiro, guiados pelas palavras que preencheram nossos pesadelos, esses que só a nós pertencem, acreditando que as manhãs seriam mais doces e que a brisa dos dias nos acariciariam a face já sem o suor do trabalho, mas plena da luz da glória da paresse. E nesse presente que é pura passagem, o tempo do projeto cumpre-se diuturnamente: a manhã nos brinda com mais um massacre, os poderosos mijam em nossas cabeças e nos fazem crer que é chuva, o nada que antes aterrorizava agora já não é senão um companheiro da precariedade de um mundo que se sustenta em fiapos esgarçados, e a exploração (de si e dos outros) dá a tônica dos nossos pesadelos que, agora, parecem acontecer muito mais na vigília do que no sono. Outrora, parece que esperávamos pelas palavras soterradas que, após terem sido derrotadas pelo esquecimento, um dia voltavam lentamente em pelo desejo do outro e, no outro, se reacendiam pelo nosso desejo: nem nossos mortos estavam seguros, mas lutávamos por eles. Não dormíamos muito e ainda podíamos sonhar um pouco mais longe, para além de nós mesmos, abdicando da propriedade sobre nossos sonhos e pesadelos. Agora nos tornamos senhores d'A História em que sonhos e pesadelos têm proprietários, em que deglutimos os desejos do outro crentes de já sabermos tudo, de não termos outro destino senão o d'A História na qual tudo já se cumpriu e tudo já foi conhecido. Às margens do desejo, A História nos quer fazer crer que só nos resta assistir ao que seria o fluxo inexorável do tempo que nos deixa, atônitos, sem palavras e sem memórias, sem mortos e sem vivos, apenas como proprietários e senhores de nossos pesadelos cotidianos.