quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Carta à destinatária impossível



Para minha destinatária impossível.

Há coisas que foram jogadas fora, querida. E é procurando por elas que encontro estas cartas que escrevo a fim de que você, como eu, também as busque. Dentre elas, talvez a que mais gostaria de encontrar, sejam as palavras. Estas, tão abundantes e, ao mesmo tempo, tão em extinção neste nosso mundo particular, sempre me faltaram. Eu as procurei por tudo, querida: nos meus sonhos, nos meus papeis, no espelho que, acho, você me deu e que com carinho escondo no fundo do guarda-roupas. Mas não as encontro. Talvez sejam elas apenas resquícios dos pensamentos do mundo que guardo em algum lugar no fundo de minhas retinas; talvez sejam mesmo tão impossíveis quanto você. Aliás, me desculpe a franqueza, mas hoje faço a pergunta que sempre desejei fazer: quem é você? Sei que é possível que você nunca encontre esta carta e que, assim, a pergunta permaneça em mim como sempre esteve, em silêncio. Mas pode ser que agora, enquanto a formulo, encontre algumas palavras ou coisas que foram jogadas fora. São tantas conjecturas, querida, que já não sei por qual motivo gostaria que você também buscasse tais coisas. Perco assim o porquê desta carta; mas talvez ela, como todas as outras, e, por que não, como a vida, nunca tiveram um. Acho que nunca passei de um artesão de inutilidades e que as cartas que a você remeti não fizeram mais do que engrossar o volume daquelas coisas jogadas fora. Há um oceano de coisas ínfimas a preencher o espaço de nossas impossibilidades, querida. E, nesse mar sem bússolas, me lembro daquele verso de René Char que, para mim, sempre ecoou as palavras que, como as luzes de um farol, vinham gritadas por seus olhos: "apenas os olhos são ainda capazes de lançar um grito". Mas meus olhos, querida, são arredios e, desequilibrados pelas por vezes ofuscantes luzes que chegam do farol, insistem em mirar coisas ínfimas, em tentar traçar mapas que suturem a ausência: a sua, a minha, a das coisas, a das palavras. E não é por isso então que se desenham cartas, mapas? E não é o mundo, ou isso a que chamamos mundo, um encontro de palavras jogadas no uni-verso?

De seu remetente impossível.

Imagem: Paul Gauguin. Fragrant, fragrant (Noa Noa), 1893-4. Musée des Arts Africains et Océaniens, Paris.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Pequeno parágrafo etílico



Aparecem sonhos, vozes, esqueletos de um sono atroz. Tudo parece rodar nas maltrapilhas vozes insolentes da última amada, aquela encontrada na lista telefônica dos rincões mais sórdidos. Dançam os sons no ritmo das vozes: crueldade, abandono, solidão. São vozes e nada mais. Fantasmas que abusam do sonho em que lhes possibilitei entrar. Ah, vida antiga!, ah, sóis dos dias quentes! Como um tolo sondei a vida de outrora; como um tolo pensei sonhar como um sonhador. São só sombras, espectros que emergem dos solilóquios mais sombrios. Era eu a falar ainda há pouco? Ou eram as vozes dos meus fantasmas, das minhas sombras, desta insistente vida jamais vivida? Entorno meu copo, mais um e nenhum mais. Mas já é tarde, as vozes voltam quentes e pesadas, como o último réquiem à última amante. São as teias de uma amarga espera, são as palavras que se soltam em meio à bebedeira. Quase em prantos, relaxo e tento olhar para a foto de uma antiga amada. Mas o que é o amor senão um sopro de segundos? Nada dura senão como desejo e, assim, nada dura nada. Sobras de uma noite in veritas, rastros de alguém que passou por este meu eu. Sonho? Talvez... inerte, pesado, imundo. E sobra-me a voz de Ana Cristina César, perdida em algum lapso de sono: "Não volto às letras, que doem como uma catástrofe. Não escrevo mais. Não milito mais. Estou no meio da cena, entre quem adoro e quem me adora. Daqui do meio sinto cara afogueada, mão gelada, ardor dentro do gogó. A matilha de Londres caça minha maldade pueril, cândida sedução que dá e toma e então exige respeito, madame javali. Não suporto perfumes. Vasculho com o nariz o terno dele. Ar de Mia Farrow, translúcida. O horror dos perfumes, dos ciúmes e do sapato que era gêmea perfeita do ciúme negro brilhando no gogó. As noivas que preparei, amadas, brancas. Filhas do horror da noite, estalando de novas, tontas de buquês. Tão triste quanto extermina, doce, insone, meu amor."

Imagem: Alex Webb. Bêbado. Merida, 1983.  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Pequeno parágrafo sobre o êxtase



Sonhávamos com a utopia e nos despertamos gritando.

A eternidade, no despertar, mostra-nos que nem mesmo ela é eterna. Engraçado como esboçamos, diante da vida, medidas infames diante da nossa pequenez: eternidade. Oras, qualquer patife encalacrado diante das circunstâncias em que sua vida parece não mais se dar a nenhum sentido tende a abraçar a eternidade como último sonho. Mas falo aqui dessa eternidade desenhada pelas linhas metafísicas das luzes, do perdurar incalculável que transcende o tempo da vida, seja na forma do perene seja no deleite das formas puras. Suportar a vida, esse pífio sopro que à tola suposição cogitada de um mineral nem seria notada, percebendo que a atravessamos para nada (ainda que não em pura perda), é uma árdua tarefa. Mas que suportar é esse? O que no vão das horas - este redemoinho que nos faz parecer carne crua na boca de Chronos -, nos sonhos com a vida feliz, nos faz calar? Como nos deixar cair silenciosos e ainda dormindo quando o que nos resta é gritar a des-esperança que é a vida? Sem esperas, acordamos gritando: sim, de desespero, mas que reverte a digestão cronológica e nos põe de volta ao relento. Abandono, tal qual o cristo, abandono. E aí está nossa força: aniquilação, negação da grande negação divina. Nenhuma seta em direção ao eterno, apenas kairós, tempo oportuno, tempo do despertar da noite escura do nada.

Imagem: Caravaggio. São Francisco em êxtase. 1595. Wadsworth Atheneum, Hartford.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Pequeno parágrafo sobre o insone



O tempo aqui se arrasta. Aliás, como me deixo levar por este vagar tão insosso? Ameaçam-me sombras de outrora, de um tempo muito próximo a este que se arrasta. A vontade é de dormir, mas também envelhecemos a cada vez que entramos em um sonho. Um sono denso, obscuro e vazio. Sim, talvez seja isso o que mais deseje. Porém, não há opções nestas confluências estranhas entre tempo e espaço (que, não, Leminski, no meu caso não é nem um sonho que conto nem um poema que faço). Tudo, não só o tempo, se arrasta. Mas que tudo é esse se tampouco sei se sou eu que o sonho ou ele que lentamente me passa? Como não ser um tolo esperançoso por uma noite de sono e ainda assim aguentar esta vida que se arrasta? 

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Ascensão e Queda. 1797-98.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Pequeno parágrafo sobre o céu


No intratável dos astros, nessas esferas candentes de outrora, procuro os sons da minha voz que tenta dizer as coisas deste mundo. O passado, os astros, esse silencioso e obtuso grito em forma de pequenas esferas que cruzam o nosso céu, só é palpável na sua forma mais banal: a palavra. O caos inerme é transformado em cosmos, e nem mesmo nossa incapacidade de se dar conta de que é o caos aquilo para além do qual não podemos sentir é deixada ilesa: ganha o nome que nega o caos, mas que é incapaz de negar esse passado que cruza a abóbada no mais profundo azul: nada. Os sons de um suspiro doce que ainda há pouco escutava e que agora são apenas ecos, são a sombra que tocam o presente; o brilho evasivo de um olhar que evita o toque do caos dura o instante mesmo em que foge e toda a eternidade; qualquer sinal do grito do caos (que, de maneira tola, ousamos chamar universo) se vai para sempre e permanece sem cessar. Não sobram palavras. Vivemos esquecendo o caos que nos esquece e, como certa vez Picabia viu em uma faísca que cruzava o céu, percebo que "a vida só tem uma forma: o esquecimento".

Imagem: Vincent Van Gogh. Café na praça do forum de Arles. 1888.  Rijksmuseum Kröller-Müller, Otterlo.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Um diálogo com o destrutivo


Há um mundo por ser destruído, há palavras soltas daquilo que já deveria ter sido preso, há um som interminável de uma voz vazia e cheia de angústia que me incita a deixar a destruição de lado. Toda sorte de mácula e dor cobrem a alma perdida em devaneios, e qualquer espaço de vida é tomado pelo peso dessa voz. Um torpor absoluto, um desgosto por não ver caminhos em nenhuma parte. A sordidez de um tempo que diz que a vida vale a pena ser vivida e não sua verdade, isto é, que é o suicídio que não vale a pena. Neste insosso caldo no qual são cozidas vidas espectrais, desconfiar da marcha das coisas e ter consciência de que tudo pode andar mal não são atitudes da confiança em pessoa, mas constatações cínicas de que é possível construir um mundo. É doloroso apagar os vestígios das malfadadas tentativas de destruição: este tempo tudo reconstrói à velocidade daquela voz vazia. Não há refúgios, porém, e estamos expostos a esse palavrório. E quando, como hoje, tudo parece emoldurado num quadro de loucura, talvez só reste, do caráter destrutivo, a incompreensão. O mundo está à prova e o desejo de destrui-lo talvez seja a ira que Aquiles sentia. Nenhuma imagem de Ítaca, de um mundo novo, deve ser idealizada. Não desejo compreensão e, com isso, não idealizo nenhuma imagem. É o que resta do caráter, é o que, talvez, ainda me dê uns últimos suspiros para abrir caminhos pela necessidade de ar fresco e espaço livre, para além do ódio que ronrona miúdo aos meus ouvidos. Implodir o mundo desde esta encruzilhada, sem esperanças e não em puro desespero, sem perspectivas de um lugar próprio, uma tão esperada casa, e não consolado pelo próprio ato destrutivo. Desolado, isto é, isolado de todo contato que salva e que remete ao intratável do mundo como se este fosse sempre possível de ser consolado, o caráter destrutivo só pode emergir como a alegria do improvável, a última e derradeira chance (ou sorte) de atravessar a vida para a nada, entretanto, não em pura perda.

Imagem: Pieter Brueghel (O velho). Provérbios. (detalhe) 1559. Rockox House, Antuérpia.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Pequeno parágrafo sobre o absurdo



Sopram ventos do absurdo, arrebatadores da alma, que me lançam ao abismo em que um dia sonharam poetas encontrar o inefável. As palavras latejam em minha cabeça, como esse vento maldito que me tonteia e empurra às bordas do trem da vida. Um lance de dados? Nada terá tido lugar senão o lugar, e o vento sopra mais forte, anguloso e surdo como o vazio do lugar. Nada, nada, nada. A negação absoluta que reverte a vida e o acaso desta ciranda intermitente fazem-me gritar em silêncio. Puro desespero, mas palavras ainda latejam em minha cabeça. Estou surdo, ab-surdo; me dou conta de que são os ventos, as sombras, o vazio do nada. Tolos poetas extasiados. Viver sem viver em si, esperando morrer por não morrer, Tereza D'Ávila, é a tolice de um encontro absurdo. Não percebe que é o desespero?! Não percebe!? São estes ventos torpes que nos carregam para o mundo dos espectros, para este Hades quotidiano deste dilacerado mundo. Minha visão se embaça, o som toca minha pele como fogo, o silêncio me entope. Exilado no próprio corpo, me esvaio com a força deste vento que parece não ter fim...

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Morreu a verdade. 1810-14.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Pequeno delírio em parágrafo XVI


A la hora de la partida
llevadme fuera,
para que sienta,
las mañanas de seda
y las noches de terciopelo.

Esas mañanas y esas noches
que eran cuando nací,
que seguirán cuando yo muera.
Mario Rivero.

Uma mísera dose de um suposto realismo parece querer fazer as vezes de anfitriã. Mas nada menos palatável do que essa balela do real. Insuportáveis mulheres com seus perfumes sintéticos, seus cheiros de morte, às voltas, sem saber como, com a vida, que dança sob formas opacas e desfiguram qualquer real. Desgastado pelo vazio dos números, sinto, cheio de impropérios, o irreal que se descortina por trás de todo sonho, de toda esperança. Esse vazio atômico de uma explosão que se dera antes que nossa infame espécie, esse milésimo de segundo do mundo mineral, tivesse visto a luz. Que luz? Uma suposta luz real? Sonhamos nosso desterro, imaginamos os muros do paraíso e o sondamos desejosos por derrubá-lo com nossas forças reais. A anfitriã da noite ganha força: como superar a imobilidade? Como saltar para além dos muros desse jardim que ansiamos como um abutre à espera da carniça? Queria poder descansar, como diz o poeta, cada um de meus poros, cada vil milímetro deste corpo que apodrece na boca de Chronos... 

Imagem: Inge Morath e Saul Steinberg. A série das máscaras. 1962.