domingo, 29 de julho de 2012

Uma conversa




a. Que sentido há em escrever? Nenhum, talvez algo ainda exista no ato da leitura, da verdadeira leitura, como X aconselharia. Tu te sentirás sempre uma merda trazendo novas quinquilharias para uma biblioteca habitada por tantos monstros admiráveis, como X, aliás...

b. Não diga besteiras, caro A., só há literatura se o ato da escrita se volta para esta insuportável atualidade, aquilo escapa à diacronia, que nem X, nem N, nem Z sequer suporiam! O que marca o sentido da literatura é seu índice temporal, que é único, não se repete e talvez se torne obsoleto se não captado no instante certeiro. É sempre esta singularidade, irredutível diriam alguns filósofos...

a. Tu sucumbes ao academicismo e à cerveja. Diacronia... A literatura, o que é isso? Se consumiu e  também se consumou. Foi excretada pelo humanismo, seja lá o que isso foi!, e morreu com ele. Duas fumaças, ponto.

b. Você sucumbe ao comodismo. Então criemos galinhas e leiamos, como novos Des Esseintes, algo de  Y, X, H, etc. Não me parece um horizonte aceitável.

a. Se eu te disser que muitos "estudiosos" da literatura buscam os autores não pelo estado de convulsão, desapropriação ou instigamento que uma obra pode trazer (vida, efeitos, poxa!), mas por que o nome de VC ou JJ  (ou da cadela-que-o-pariu) é comentado nas rodinhas, ou tem uma sonoridade, como uma marca, uma insígnia de prestígio, você há de me convir que não é só a literatura que já se extinguiu. E os novos leitores? Os viciados em facebook, estes que passam boa parte de suas vidas em frente a um computador, na casa dos pais?! Falta-lhes fibra, disciplina e paciência para ler um GV, quanto mais ST, ou sentir o transbordamento por um mero verso de P. Falta-lhes o salto para a vida, em suma. Esta é a maioria da humanidade, bovina e satisfeita, mesmo na dor e na servidão. Escrever para quem? Para o burocrata da universidade? Fiquemos com um bom autor do séc. XIV, um vinho, e façamos honra ao deus da carnificina.

b. E choremos pelo cavalo de Turim... O emblema de nossa condição.

a. O cavalo de Nietzsche.

c. Desculpem-me, posso entrar na conversa? A questão não é a literatura ou a escrita, o problema é como mudar o mundo, precisamos partir para ação. Olha só, em meu departamento já formei um coletivo...

a. Caia fora!

c. Mas e os resquícios da ditadura? E a fome no mundo? E a débâcle ambiental?

a. E o seu carguinho futuro em alguma Ong ou nas rebarbas do funcionalismo público? Este ativismo me enoja, apenas edulcora a grande catástrofe, o Terror. Caia fora e leve consigo seu  gramscianismo de araque.

b. Eia C, moleque, seu engajamento não vai além da punheta computadorizada. Ainda não aprendeu que a política é apenas a continuação da guerra por outros meios!? Logo você, seu covarde, que tem medo da própria sombra. Suportaria o ar nauseabundo de uma barricada? Onde estaria você alguns dias depois do abril de 64? Certamente na saia de sua mãe, pilantra! Você e sua geração 'amelie poulain'  me fazem rir... Sua "política" só atesta o diagnóstico daquele grande salafrário...

c. L?

a. Fukuyama... O fim claustrofóbico dos possíveis na história. Não questiono a legitimidade e a urgência de certos temas, mas sobretudo me enoja a maneira pequeno-burguesa com que eles são tratados, como se bastasse uma mera correção cosmética, um ajuste estrutural (se isso não fosse uma baita contradição em termos!), motivado pelas ações de coletivos bundões e corporativos, debates acadêmicos ou digitações de polegares e de indicadores em teclados, para este ser, com um pouquinho de solidariedade entre condôminos, o mais belo de todos os mundos. Você, avatar "jovem" de mídia social, marca ambulante com o rótulo de uma esquerda fajuta, saiba de antemão, é quem teria mais a perder com uma mera desestabilização estrutural! A verdade deste mundo - da carnificina - não é me revelada neste seu ambiente plastificado, na normalidade cinzenta de um condomínio fechado ou de um campus universitário, mesmo nos gritos dos "indignados" que querem apenas um emprego e "reinserção econômica", mas nos campos sarauís, ou em Darfur, na Síria, no Iraque e no Afeganistão, na violência indômita de qualquer país da América Central, na derrota dos índios Achè, nos seringueiros friamente assassinados, nos tiros em qualquer periferia. Mas a servidão e a catástrofe não são naturais, precisaríamos da grande revolução, para muito além de todas as até agora conhecidas, e uma resistência integral, para muito além da exigida pelos resistentes anti-franquistas ou a resistência francesa. O inimigo se dispersou como vírus e as barricadas estão aí, no mundo, precisam ser erguidas... Mas os maiores oprimidos ainda querem pagar suas contas no banco, ainda sonham em ter casa, família sorridente e dois carros na garagem. E tudo ainda se resume, afinal de contas, para vocês, a rede social intelectualizada e não pensante, entre usar ou não uma sacola orgânica ou votar para S ou para Z, participar de um coletivo ou apresentar uma comunicação. Ó netos alienados do espetáculo, paridos por dois progenitores satânicos: a resignação e o amor próprio. Por isso minha melancolia, por isso o fim irremediável também da escrita.                    

c. Vocês estão fechados no heideggerianismo de esquerda, estão lendo muito Y... Demonstram um abatimento diante das potencialidades dos movimentos e lutas, das conquistas sociais das últimas décadas.  

b. Sei deste papo... O mundo em ruínas e você falando dos progressos do bolsa família! Não use os fantoches de movimentos e lutas para justificar sua abstinência de pensamento. Rousseau é ainda revolucionário para este seu discurso de merda. Você só me demonstra a agonia de uma certa "esquerda" sorridente. Que hoje só existe neste bairro!

c e coro hipster. Fascistas!

b. Mudemos de boteco.

a. Imediatamente.  


imagem j. 

sábado, 28 de julho de 2012

O Silêncio da Linguagem



1. Na seção da Fenomenologia do Espírito em que desenvolve as figuras da consciência infeliz, Hegel trata da oração e da sua relação com o pensamento. Jogando com a etimologia do termo Andacht (oração, devoção, da mesma raiz que denken, pensar), ele escreve que a consciência infeliz geht... sozusagen nur an das Denken hin und ist Andacht, “por assim dizer, apenas vai ao pensamento e é oração”. “O seu pensamento como tal”, ele acrescenta, “permanece o informe zumbido de sinos ou um quente e nebuloso apagamento, um pensamento musical (ein musikalisches Denken) que não atinge o conceito, que seria a única imanente modalidade objetiva. A este infinito, puro sentir, advém o seu objeto, mas de modo que este sobrevenha não como con-cebido (begriffenes) e, portanto, como algo de estranho. Assim está presente o movimento interior do puro sentimento, que se sente, entretanto, dolorosamente, como cisão (Entzweiung); o movimento de um infinito desejo (Sehnsucht) que tem a certeza de que a sua essência é um tal puro sentimento, um puro pensamento, que pensa-se como singularidade..., mas, ao mesmo tempo, essa essência é o além inacessível que, enquanto é apreendido, foge, ou, ainda, já fugiu”.
A oração é, portanto, uma experiência de linguagem que vai em direção ao pensamento sem jamais atingi-lo; ela é tensão e infinita nostalgia, que jamais com-preende o que quer apreender e jamais chega onde quer ir. No seu desejar, ela certamente faz experiência da própria cisão, do próprio não ser apenas um mero som, mas não a supera nem pode atingir a unidade senão na forma de um “momento musical” (musikalisches Moment – pense-se naquelas breves e intensas composições para piano de Schubert, que parecem inconclusas e cujo conceito é inapreensível, que os editores intitularam moments musicaux). Por isso, a oração não pode verdadeiramente pensar [denken], jamais pode reconhecer-se na cisão, estar em casa na alteridade; pode apenas dar graças (danken], isto é, receber do exterior o que, na verdade, é ela mesma que faz.

2. É possível exaurir a experiência que está em questão nesses antigos textos sírios nos termos do Andacht hegeliano? Eles mesmos, na verdade, indicam a própria experiência central como algo que está além da oração. Mar Isaac, de fato, fala dela [que define como nome, téoría, que, no vocabulário técnico da filosofia grega, designa o pensamento supremo) como de uma experiência que “separa a oração dos lábios” e como de uma passagem do pensamento “àquilo que se tornará não-oração, mais excelente do que ela, pois os movimentos da língua e do coração durante a oração são as chaves; o que está depois deles é o ingresso na cela do tesouro”. O intelecto sai dos movimentos da oração e entra “nos movimentos do espírito” e, aqui, “não tem que orar”, “orar, não ora”. Assim, para João de Dalyatha, “pelo estupor produzido pela luz, a oração é interrompida” e o que então acontece, “na região da admiração”, é uma “operação do espírito, não dos movimentos da oração”. Essa região central que, em um dos mais antigos textos aqui apresentados, a carta de João o Solitário, é também definida “oração espiritual”, não é nem mesmo algo como “um pensamento musical”, que continuamente tende a um inatingível conceito; nela, como não se ouvem soar palavras, não se ouve canto nem “zumbido de sinos”: “mais interna do que a língua e mais profunda do que os lábios”, ela é “mais interna do que as palavras” e “além do canto”.
A experiência que aqui está em questão não é, portanto, simplesmente oração no sentido hegeliano. Ela não se limita a ir em direção do pensamento, mas o atinge. Quem a realiza não apresenta, por isso, a figura do servo, nem a que Hegel, a respeito da consciência infeliz, caracteriza como o desdobramento de servo e patrão em uma única e dupla figura; “um, enquanto é servo”, escreve João de Dalyatha, “propriamente ora; quando é nascido do espírito no mundo da oração, é filho de Deus e dispõe da riqueza”.
Mais do que ao Andacht da consciência infeliz, ela se assemelha à figura do êxtase (Ekstase), de que, em uma passagem do Prefácio à Fenomenologia sobre o qual se deveria atentamente refletir, diz-se que era “nada mais do que o puro conceito” (nichts anderes als der reine Begriff). É, ao contrário, na dimensão dessa identidade de êxtase e puro conceito que podemos nos aproximar da experiência de pensamento que aqui está em questão. Ela define, de fato, o seu centro com o nome que, na filosofia hegeliana (a filosofia que – não devemos esquecer – pensava si mesma como a realização da experiência cristã) indicará o próprio sujeito: o Espírito.
Êxtase, espírito, pensamento, conceito: mas sabemos nós verdadeiramente o que significam essas palavras?

3. “Silêncio” e “estupor” são os dois termos por meio dos quais esses textos nos significam a sua experiência extrema.
“Daqui em diante”, escreve João de Dalyatha, “não é lugar de palavra para o qual o curso da pena possa escorrer por caminhos de palavra. Daqui um termo é colocado, o silêncio. À inteligência somente é permitido passar e ver em si a anulação de todo mistério; é lícito para ela entrar e estupefazer-se pela beleza da admiração que está além de tudo e fechada em tudo”. “Não há verdadeiro nome para a realidade do mundo novo”, escreve Isaac de Nínive, “mas uma ciência simples, que está além de todo nome, signo, figura, cor, forma e designações compostas”; onde a oração cessa, tem-se somente “olhar no estupor”. E João o Solitário assim descreve o termo último do itinerário da mente: “Silêncio espiritual, quando desiste também dos movimentos induzidos pelas criaturas espirituais e somente na Essência se produzem os seus movimentos, no estupor pelo silêncio que está sobre ela”.
Como devemos pensar a experiência que é aqui indicada como silêncio e como estupor, ou ainda, em um insolúvel cruzamento, como “estupor pelo silêncio”?  E o que significa para o homem – o falante, o vivente que tem a linguagem – fazer experiência do silêncio, estupefazer-se pelo silêncio? Está aqui em questão algo que não tem nenhuma relação com a linguagem, um mais íntimo e secreto nexo, que se trata, portanto, de experimentar e trazer à luz?
João o Solitário apresenta a oração espiritual como um itinerário que atravessa as palavras e o canto e progressivamente se silencia nestes. Mas a figura do silêncio, da qual aqui se trata, não é de modo algum um simples calar-se, um “silêncio da língua”. Ao contrário, esse silêncio fala e canta, é um “cantar na mente e em espírito” e um “discurso espiritual”. Releiamos inteiramente essa passagem:

Silêncio é Deus, e no silêncio é cantado a Deus o cântico que é digno dele. Não digo no silêncio da língua. Se alguém se cala com a língua não sabendo cantar na mente e no espírito, este, no seu silêncio, é ocioso, e maus pensamentos vêm até ele porque se cala exteriormente mas não sabe cantar interiormente, dado que ainda não se dissolveu a língua do homem escondido porque balbuciante. Como, de fato, diz respeito a este infante e criancinha natural, do mesmo modo, diz respeito ao infante interior, espiritual, porque como é fechada a língua da criancinha que não conhece ainda palavra, e a sua língua está apenas dentro da boca, não tendo o movimento da palavra, assim também a língua interna da mente será muda de toda palavra e de toda consideração, e somente estará e será pronta para aprender o balbucio do discurso espiritual.”

Isto é, trata-se, para além do silêncio, da língua carnal, do dissolver-se da língua “interna à mente”, de modo que o íntimo infante aprenda o balbucio do “discurso espiritual”. O itinerário através das figuras do silêncio é, também, na mesma medida, um itinerário através das figuras do discurso: “Esses graus e medidas estão no silêncio e no discurso”. Come devemos pensar, então, essa região do silêncio que é, também, o discurso supremo e o “canto mais digno”?
Aquele que faz experiência desse silêncio “espiritual” percorre toda a linguagem e todos os predicados e, em cada um deles, faz silêncio, em cada um deles pensa, atinge o conceito e, em todo pensamento, novamente faz silêncio, isto é, atinge o limite daquilo que é pensado segundo “uma ciência e um saber composto”, isto é, em proposições, e pensa, no fim, “além de todo nome”, apenas o ser, o absolutamente simples. Mas, neste ponto, quando ele faz calar já toda a linguagem e todas as categorias, e “somente na essência se produzem os seus movimentos” (a essência, a ousia, é a categoria suprema), então ele “estupefaz-se”, realiza a experiência do ser como experiência do “estupor pelo silêncio que está sobre ele”, e, nesse estupor, o silêncio se inverte novamente em linguagem, o silêncio fala e canta, mesmo se apenas em “espírito”.
Uma carta de João de Dalyatha exprime exemplarmente esse último nexo de silêncio e linguagem. Ela caracteriza a razão do estupor como “o lugar cuja língua é o silêncio”:

“O lugar cuja língua é o silêncio, através de que serão expostos os seus mistérios?... O lugar cujo nome é estupor, também a explicação dos seus mistérios é silêncio e, se se deve chamá-lo linguagem, este é um silêncio sem movimentos e sem denominação”.

O lugar, em direção a que é conduzida a viagem através dos graus e medidas do silêncio e do discurso, é, portanto, aquele em que o próprio silêncio se faz linguagem e o estupor tem uma voz. Mas o que é este lugar cujo silêncio é a língua? O que se diz no silêncio e no estupor?

4. Já a figura do silêncio que encontramos na mística tardo-antiga e na Gnose tem as características de uma linguagem, que profere e exprime o que a linguagem humana não pode dizer. No Corpus Hermeticum, I, 31, o Deus, invocado como “indizível e inexprimível” (anéchlalete, arrete) é, todavia, “proferido com a voz do silêncio” (sioupe fonoúméné). Particularmente significativa é, nessa perspectiva, a Sigé gnóstica, sobre cuja função fundamental – mesmo se puramente negativa – na gnose valentiniana e sobre cuja descendência na mística cristã e na filosofia é oportuno refletir.
Na gnose valentiniana, o Abismo (Bythós), incompreensível e não gerado, que eternamente preexiste, tomou em si um pensamento (énnoia) silencioso, Sigé, e este “silêncio” é o primeiro, negativo fundamento da revelação e do logos, a “mãe” de tudo o que é gerado pelo Abismo. Em um denso fragmento das Excerpta ex Theodoto lemos: “O Silêncio (Sigé) – dizem os Valentinianos –, sendo mãe de todas as coisas que emanaram do Abismo, o que não podia dizer do indizível calou, o que compreendeu, chamou-o incompreensível (ô mèn ouch éschen eiptein peri tou arretou sesigechen, ô dé chatélaben, touto ácharalepton prosegóreousen)”.
O silêncio com-preende, portanto, o Abismo como incompreensível. Sem Sigé e o seu pensamento silencioso, o Abismo não poderia nem mesmo ser pensado como incompreensível e indizível. Enquanto abre, assim, a dimensão arque-original do Abismo, o silêncio é o místico fundamento (negativo) de toda possível revelação e de toda linguagem, a língua original de Deus enquanto Abismo (em termos cristãos: a figura da demora do logos na arché, o lugar original da linguagem).
Em um código de Nag-Hammadi (VI, 14, 10), o silêncio é, de fato, explicitamente colocado em relação com a voz e com a linguagem na sua dimensão originária:

“Eu sou o silêncio
inatingível
e a Epinoia
de que muito é lembrança.
Eu sou a voz
que dá origem a muitos sons
e o Logos
que tem muitas imagens.
Eu sou a pronúncia do meu nome.”

E é em um apócrifo cristão (Mart. Petri, X) que o estatuto do silêncio como Voz, por meio da qual o espírito se une a Cristo, é expresso do modo mais claro: “Eu te rendo graças... não com a língua por meio da qual são proferidos o verdadeiro e o falso, nem com o discurso que é proferido pela técnica da natureza material, mas com a voz eu te rendo graças, ó rei, que é conhecida através do silêncio (diá siges noouméne), que não é ouvida no visível, não é produzida através dos órgãos das boca, que não continua nos ouvidos carnais, não é ouvida na substância perecível, que não está no mundo e não é colocada na terra, nem escrita nos livros, nem é de alguém nem não é de alguém; com aquele silêncio da voz te dou graças, Jesus Cristo, com o qual o espírito em mim consegue amar-te, falar-te e ver-te”.
Uma sombra da figura da Sigé, do silêncio de Deus como fundamento abissal da sua palavra, está presente também na teologia e na mística cristãs sucessivas na ideia do Verbo silencioso que demora indizivelmente no intelecto do Pai (Verbum quod est in silentio paterni intellectus, Verbum sine verbo, escreverá Eckhart). Já S. Agostinho coloca uma correspondência entre essa demora e esse nascimento do Verbo no Pai e a experiência de uma palavra silenciosa que não pertence a nenhuma língua: “Verbum autem nostrum, illud quod non habet sonum nec cogitationem soni, sed eius rei quam videndo intus dicimus, et ideo nullius linguae est; atque inde utcumque simile est in hoc aenigmate illi Verbo Dei; quod etiam Deus est, quoniam sic et hoc de nostra nascitur, quemadmodum et illud de scentia Patris natum est” (De Trin., XV, 14, 24).
Um tratado russo antigo sobre o ensinamento das letras (sobre o qual Jakobson chamou a atenção) estabelece uma homologia entre o dúplice nascimento do Verbo divino (já o Concilio de Constantinopla de 553 afirmava que existem dois nascimentos de Deus o Logos) e o nascimento da palavra humana.
“E a palavra no homem é imagem do Filho de Deus, pois o filho de Deus nasceu duas vezes; em primeiro lugar, ele nasce do Pai por um incompreensível nascimento, como o raio de sol, e permaneceu não conhecido no Pai; em segundo lugar, nasce sem paixão, na realidade da carne... da puríssima Virgem, a Mãe de Deus, e foi visto por todos na carne sobre a terra... Por amor seu e imitando o dúplice nascimento do Filho de Deus, também a nossa palavra tem o seu duplo nascimento. Porque primeiro nasce na alma, mediante um incompreensível nascimento, e hospeda-se não conhecida junto à alma; e, em seguida, nascida de novo mediante um segundo nascimento carnal, emerge dos lábios e se revela a quem escuta”.
Não há, portanto, verdadeira oposição entre a Sigé gnóstica e o Logos cristão, que jamais se liberou completamente dela. O silêncio é apenas o fundamento negativo do Logos, o seu ter-lugar e o seu permanecer não conhecido na arché que é o Pai. Essa demora (como a da Sigé junto do Bythós) é uma demora abissal – isto é, in-fundada – e dessa característica abissal da teologia trinitária não consegue sair totalmente.
É a esta figura do silêncio como experiência do lugar abissal (do “nascimento”) da linguagem que devemos aproximar aquela que os padres sírios descrevem como “oração espiritual”. Aquilo de que nela se faz experiência é o próprio incompreensível nascimento da palavra, a sua demora sigética no abismo divino. Se esse lugar – segundo a expressão de João de Dalyatha – “não é lugar de palavras”, é porque ele não é o próprio lugar da palavra: experiência não de linguagem, mas da linguagem e do seu ter-lugar abissal.
Por isso, o estupor não é de modo algum uma experiência psicológica, mas, ao contrário, uma experiência puramente lógica, e, como tal, descrevem-na os padres. No momento em que Isaac expõe o gerar-se da teoria e do estupor na rescisão das palavras dos lábios, ele acrescenta: “Esta, chamamos visão durante a oração, e não uma qualquer semelhança ou forma figurada, como dizem os tolos”. E João de Dalyatha adverte que, no estupor, somente “à inteligência é permitido passar e ver em si a anulação de todo mistério”. Nesse sentido, o êxtase – longe de ser, segundo a representação corrente em uma cultura que perdeu toda consciência das próprias tradições de pensamento, uma túrbida experiência psicológica – é, verdadeiramente, nas citadas palavras de Hegel, experiência do “puro conceito”: o “mistério”, que aqui se apaga, é o mistério da linguagem e do seu in-fundamento divino.

5. O que está, portanto, em questão no silêncio e no estupor é a experiência do fundamento negativo (do in-fundamento) da linguagem, do seu ter-lugar no abismo de Deus. Nesse abismo, o silêncio é fundamento, mas – para retomar as palavras da Ciência da lógica hegeliana – é fundamento (Grund) no sentido em que ele é o que vai ao fundo (zu Grunde geht) para que a linguagem seja como in-fundada (grundlose). Desse ir ao fundo surge o estupor: estupor que a linguagem, que o ser, que Deus são: in-fundados. E esse estupor só pode ser silencioso, porque nenhuma proposição (nenhum “saber composto”) pode dizer o ter-lugar da linguagem, a sua demora divina. (Por isso todo autêntico estupor confina com angústia e desespero, a experiência do ser com a do nada).
Silêncio e estupor não são patrimônio exclusivo da mística. Se lermos agora um texto que certamente pertence à tradição da filosofia (isto é, de uma doutrina que tem desde o início reivindicado a sua relação privilegiada com o estupor e a maravilha), é com uma experiência não dissimile que nos encontramos confrontados:

“E agora descreverei a experiência de maravilhar-se pela existência do mundo, dizendo: é a experiência de ver o mundo como um milagre. Sou então tentado a dizer que a expressão justa na língua para o milagre da existência do mundo, ainda que não seja nenhuma proposição na língua, é a existência da própria linguagem... transferindo a expressão do milagroso de uma expressão por meio da linguagem à expressão pela existência da linguagem, disse somente, de novo, que não podemos exprimir o que queremos exprimir, e que tudo o que dizemos sobre o milagroso absoluto permanece privado de sentido”.

Nessas palavras de Wittgenstein, a experiência suprema de pensamento – que faz experiência da maravilha pela existência do mundo – é a experiência de que a linguagem seja; mas isso, portanto, que a linguagem seja, nenhuma proposição pode dizer: ela é silêncio (ou insensatez). Também aqui, “o lugar cuja língua é o silêncio” é a região sigética em que a linguagem tem lugar.
A uma região não diversa nos conduzem as palavras de Heidegger (“A palavra para a palavra não se encontra em nenhum lugar”) e a sua tese segundo a qual somente onde a linguagem “retorna ao sem som” é que ela corresponde ao seu lugar originário.
Por isso, terminada a leitura desses textos, na qual a experiência da mística parece acertar as contas com a experiência da filosofia, se quisermos verdadeiramente responder à provocação radical que eles nos propõem, isto é, se quisermos verdadeiramente nos confrontar com eles, então talvez deveremos nos perguntar:
E se a linguagem, mais do que ter-lugar como in-fundada no silêncio, ao contrário, jamais tivesse tido lugar? O que seria uma palavra que tivesse sido completamente emancipada da Sigé, que não fosse mais nem fundada nem in-fundada no abismo de Deus? Tal palavra não permaneceria mais em estupor e silêncio, mas não estaria nem mesmo além destes, em um lugar mais originário. Ao contrário, jamais tendo tido lugar, ela seria a simples e habitual palavra do homem. 

Giorgio Agamben. Il silenzio del linguaggio. In.: Margaritae. Testi Siriaci sulla preghiera. Venezia: Arsenale Editrice, 1983. A cura di Paolo Bettiolo; commenti di Giorgio Agamben, Sergio Quinzio. pp. 70-79. Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko. (Trata-se de um ensaio incluído como comentário à reunião de textos sobre a oração organizada por Paolo Bettiolo e Michele Bertaggia. O livro foi publicado na coleção dirigida por Massimo Cacciari na pequena Editora Arsenale em 1983, tendo uma muito exígua tiragem de 99 exemplares, hoje muito difíceis de encontrar. O ensaio de Agamben jamais foi republicado em nenhuma das suas reuniões de ensaios, tampouco reproduzido em alguma outra revista ou meio de distribuição.)

Imagem: Andrea da Firenze. Caminho da Salvação (detalhe). 1365-68.  Cappella Spagnuolo, Santa Maria Novella, Firenze.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Desvarios labirínticos


A Giorgio Caproni

"Por que achar o fio do Labirinto? / O importante é viver dentro dele". Era difícil dormir, era difícil não dormir, era difícil desemparelhar a jamais emparelhada trama da vida. Nenhuma surpresa á mais surpreendente do que encontrar velharias. Nada de novo, não há novo. Tudo empenha, tudo desagrega o nada que vejo permear o todo. Néant, niente, nothing... revelações inóspitas da dureza crua da matéria. Nenhuma palavra, nenhum som, nem mesmo o esperado e acalentador sopro divino. Matéria bruta soprada, movimento, desalento. As portas se fecham e com elas o labirinto sem corredores faz-se mais nítido. Nada de movimento, tudo de movimento; terra perdida entre o sono e a vigília, nenhum sonho, todos os sonhos. Matéria, matéria, tudo é matéria mar-téria, artéria, sangue, movimento, artilharia pesada à espera de oponentes... labirinto, labirinto, mas vazio, devastado, sem portas e sem janelas... sonoro, sonoro labirinto da memória. Tudo se foi, tudo se vai, importa não sair, importa viver, im-porta, de-porta, ex-porta... sair sem fios, sem Ariadne, como um touro alheio ao seu próprio sangue a escorrer pelo chão da Plaza. Somem os sonhos, sobem desvarios, sobram imagens. Nada de novo, não há novo. Despedaça-se o que escreveria sem deixar chances de escrita às palavras soltas. Sopro, matéria soprada... descaso, acaso, chance, caso. Nada resta senão a importância desimportante do viver... E saio andando carregando comigo o esgarçado livro da vida a soltar suas páginas rabiscadas pelo chão já batido das estradas pelas quais tantos outros, tantos eus, já passaram... 

Imagem: Tintoretto. Criação dos animais. 1551-52. Galleria dell'Accademia, Venezia.

domingo, 22 de julho de 2012

Carta a Célia


Mas porque teu peito estremece com esses suspiros, e tuas luminosas faces de lágrimas são banhadas? por que distrair teu coração com tão vã ansiedade? Por que tantas vezes me perguntas quanto tempo meu amor vai durar? Desgraçadamente, minha Célia, não sei responder a esta pergunta. Acaso sei quanto tempo minha vida ainda vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Acaso a imagem de nossa frágil mortalidade te está constantemente presente, para desanimar horas mais felizes e envenenar mesmo as alegrias que o amor inspira? Pensa que, se a vida é fácil e a juventude é transitória, mais motivo ainda para usar o presente momento, sem nada a perder de tão perecível existência. Apenas mais um momento, e esta não será mais. Seremos como se jamais houvéssemos sido, nem uma só recordação de nós restará à face da terra, e nem as fabulosas sombras do além nos darão guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas atuais dúvidas sobre a causa original de todas as coisas, jamais, infelizmente, serão dissipadas. De uma só coisa podemos estar certos - é que, se há um espírito supremo que preside a nossos destinos, deve agradar-lhe ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando daquele prazer para que fomos criados. Que esta reflexão dê repouso a teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias, levando-se nelas a te fixares para sempre. Basta uma vez ter conhecido esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma vã superstição. Mas, ao mesmo tempo que a juventude e a paixão, minha bela, satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar a nossas amorosas carícias.


David Hume. O Epicurista. In: Ensaios morais, políticos e literários. (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 162.  Imagem:  "La Toilette", 1889,  Henri de Toulouse-Lautrec. 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Pequeno parágrafo sobre a lástima



Caminhava atônito, observando a luz opaca do dia castigado pelas nuvens. Pensava nas últimas linhas que acabara de ler: "O tédio é o eco em nós do tempo que se dilacera..., a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que sustenta - ou inventa - a vida...". E sentia, sob o céu cinzento de uma manhã de inverno, o tempo rasgando a própria pele. Não era somente o tédio, no entanto, seu motor delirante, mas também as ausências que o preenchiam. Não saberia dizer qual a relação entre o tédio e essas ausências que agora ajudavam-no a inventar - ou a sustentar - a vida. Como fantasmas, as ausências (brancas, aconchegadas em seus braços, dira Drummond) eram a insígnia do delírio, da impressão cáustica daqueles "seres" de outrora no seu agora. E sentia o tédio que não parava de ecoar e, junto dessa repetição distante da própria voz, ouvia os muito mais altos sussurros das ausências, das vozes sem emissor, do puro eco do tempo, da pura decadência da vida pelos umbrais da memória. Pensou então em Cortázar e em como as ausências eram as recordações soltas pela casa, que agora vinham e ecoavam como tédio dizendo-lhe: "No vayas a lastimarte"...

Imagem: Edvard Munch. Separação. 1896. Munch Museum, Oslo.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Pequeno parágrafo sobre a matéria bruta



"O tempo passou e passa, exceto nas praias, que não têm idade." À falta de idade, à a-temporalidade das praias, nós, Ulisses que de praias partimos em busca da própria Ítaca, marcamos nosso ritmo com o metrônomo do que chamamos o existir. Existimos na margem estreita da memória, mas também sob o único impulso vital que nos vem com a imagem das praias sem idade: o esquecimento. Nas suas primeiras fotografias, Agnès Varda gostava de fazer composições desfocadas nos primeiros planos. Fazia com que o próximo se apagasse em detrimento do distante que se anunciava com a clareza da imagem límpida. Jogando com imagem e memória, a cineasta deixava seus rastros na praia deserta a que damos o nome de memória. Parece-me que a memória, como as praias, não tem idade e, como tolos Ulisses, estamos sempre atrás dela como o observador de uma foto com o primeiro plano desfocado: vemos com clareza as coisas distantes somente à medida em que deixamos a proximidade na distorção da falta de foco. Fasto e nefasto, memória e esquecimento, dentro e fora, todos esses pares fictícios que nos fazem imaginar uma vida - própria e alheia - bem formada, bem marcada, orientada. A fragilidade dessas nossas cisões - de fato, nossa fé na sua possibilidade - parece querer ignorar o fato de que a vida é tão somente a matéria bruta indiscernível e de que, ao olhar para os dois planos, focado e desfocado, da foto, o que vemos é o prenúncio de morte que toda foto carrega consigo. Nem um passado tocado e retocado pelo foco, nem um presente desdenhado pela crueza de um pleno esquecimento desfocado. Estamos na praia e riscamos com nossos pés descalços as areias de tempos a-temporais; estamos na praia e sentimos a brisa dos ventos preteridos - esse outro, sorrateiro e multiforme nome do passado; estamos na praia e só agora nos damos conta de que o ritmo que pensávamos encontrar somente na distante e focada Ítaca, está também bem aqui, no desfocado murmúrio das espumas das ondas...

Imagem: Trecho de Les plages d'Agnès. Documentário de 2008 dirigido por Agnès Varda.

domingo, 8 de julho de 2012

Do caderno de Lisboa





A Bernardo Soares 


Viver, para o bicho humano, é estar em desassossego.
Nunca desabitamos, exceto nos momentos de sono ou nos autênticos desvarios. Desvario não é o desassossego.
Desassossego é a náusea em terra firme. 
Reconhecer-se sem interior e submerso numa exterioridade imponderável, a vida. 
Não há submersão, falar assim é recorrer a metáforas metafísicas. Há isso e ponto, aprenda a conviver com isso até que sobrevenha algo que nunca será explicado, nada. 
A vida sem explicações ou soluções: desassossego. 


A luz desta cidade me comove até os ossos. Um grande rio encontrando o mar e logo ali, como numa aparição, as ruelas medievais, os morros, as construções mouriscas, os cheiros, as cores, os sons. Há momentos em que deixo de ser um guardião embotado de meus pensamentos para, simplesmente, contemplar, como um pobre Antão em desertos pagãos e povoados. A contemplação é o delírio da exterioridade. Não saio de mim, nunca sairei, mas é como se um limiar entre interior e exterior se impusesse aqui e agora: eu contemplo esta cidade. É como estar embriagado sem uma gota de álcool. 

É apenas quando me alheio do desassossego habitual, sossego!, que consigo me me sentir mortal, carniça ambulante, estrangeiro de passagem pela vida, mas não o viajante cristão que espera encontrar sua Ítaca logo depois do vale de lágrimas. Há apenas o vale de lágrimas e ele é belo em sua falta de sentido e incompreensível imensidão. Mas, sentir-me mortal, no fugaz entorpecimento da vigília desassossegada, não me traz qualquer angústia. Desaparecerei como um grão de areia lançada ao vento. Sem medo.

O silêncio destes espaços infinitos me acalma. Sem memória, sem individualidade, fundir-se à imanência sem bordas. A vida individual é um transbordamento dolorido. Mas o efetivo contemplar, sua frágil mística profana, dura alguns átimos, logo mais serei o fiel e anônimo cumpridor de prazos, cão zeloso e amedrontado de uma pequena e anônima engrenagem de uma das tantas máquinas anônimas e absurdas que movimentam o vazio de nosso tempo.
                       
Os gregos antigos chamavam bios xênicos a vida contemplativa. Quem contempla não tem um lugar próprio, é sem casa, apátrida, o mais estranho estrangeiro. Antecipa diabolicamente a morte em sua vida. Lúcifer, o anjo da lucidez. É como se um relampejo de eternidade se manifestasse, como num rápido clarão, aos olhos humanos e mortais daquele que vê. Deus é muito frágil, deus morre conosco, esta é sua tragédia, sua humildade e sua força. Desespero. 

Imagem Jnf. 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Destinatária impossível



Para minha destinatária impossível

Querida, sinto-me cansado. Um misto de exaustão física e desgaste da alma. Deve parecer estranho para você ler-me nesses termos. Mas é assim. Estou cansado da repetição do mesmo, dos enfadados rostos sem expressão desses homens antropologicamente mudados (ah, como me lembro do velho Pasolini nestes momentos), desses espectros travestidos de corpos. Parece-me que a vida nada mais é que um degredo da morte e que o absurdo da existência caiu na mais tacanha forma de obviedade. E foi pensando nisso que hoje lembrei-me da sua impossibilidade. Desde a última vez em que lhe remeti (!?) uma destas minhas banais cartas, nunca mais havia pensado neste tempo diferido, nesta minha tentativa de diferença em meio à cansativa repetição do mesmo (e você sabia que quando a mãe de Derrida descobre o "a" da différance fica chocada?! Talvez, como mãe, intuísse que as palavras de seu filho nunca fossem capazes de exprimir seu significado sem outras palavras... uma mãe sabe bem o que é diferir...). É, querida, o ciclo dos tempos não faz mais do que apreender esses espectros corporificados numa roda infernal e, para mim, a tentativa de fuga fez do "a" a diferença absoluta. "A" sem o qual o alfabeto dormiria em paz, longe de tantas palavras possíveis, "a" com o qual construí sua impossibilidade. Ah, querida, até mesmo minhas exclamações de cansaço parecem as mesmas! Até mesmo a minha desesperançosa rota de fuga desses ciclos abjetos do tempo das repetições parece prisioneira inevitável do mesmo. Tudo não é senão um esboço pálido do fim pintado em cores fortes... E sinto-me cansado, como que bradando tolamente pela impossibilidade que em você, em mim ou nestas cartas parecem ser o meu único modo de inserir o "a" no ciclo que não o deseja, de fazer da diferença dos tempos a minha différance e, com isso, continuar a escrever sabendo que nenhum possível poderia ser a insígnia destas vazias cartas ao léu.

Do seu remetente impossível. 

p.s.: achei, dentre meus papéis, corpos que ainda eram corpos - mesmo ou justamente porque imaginados pelo Pontormo - e pensei que talvez você pudesse gostar... 

Imagem: Pontormo. Estudo anatômico. 1550. Galleria degli Uffizi, Firenze.   

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Pequeno parágrafo sobre o imperfeito


Havia sons e, por trás deles, palavras. Era o crepitar de galhos secos sob meus pés, eram beija-flores, bem-te-vis, sopro de vento invernal nas cerejeiras em flor. Eram sons e, por trás deles, palavras. Havia um mundo descoberto na última manhã de sol neste mundo. Havia um mundo e tudo o que nele havia eram palavras que agora, somente agora, depois do fim do mundo, descubro. Vejo e via que o imperfeito do tempo, que o tempo imperfeito, era o modo como aqueles sons, com todas as palavras que carregavam, armavam para mim o único tempo perfeito. As palavras que agora descubro são o mundo que havia, e nada mais. Havia um mundo feito de sons e as palavras que por trás daqueles sons se escondiam não me faziam sentido, senão como canto de bem-te-vis, como crepitar de galhos secos, como beija-flores com seus ruídos frenéticos. E descubro, junto com as palavras, a perfeição de um mundo cheio desses imperfeitos, pleno da imperfeição dos verbos (e no princípio não era o Verbo?) que agora vejo zanzar não mais como os sons da última manhã de sol naquele mundo, mas como minha única imperfeição possível. Não há e não havia mundo perfeito e tudo não passava de um era uma vez...

Imagem: António Lopez. Membrillero de Ciudad Florida. 1970. Coleção Privada.