sexta-feira, 6 de julho de 2012

Destinatária impossível



Para minha destinatária impossível

Querida, sinto-me cansado. Um misto de exaustão física e desgaste da alma. Deve parecer estranho para você ler-me nesses termos. Mas é assim. Estou cansado da repetição do mesmo, dos enfadados rostos sem expressão desses homens antropologicamente mudados (ah, como me lembro do velho Pasolini nestes momentos), desses espectros travestidos de corpos. Parece-me que a vida nada mais é que um degredo da morte e que o absurdo da existência caiu na mais tacanha forma de obviedade. E foi pensando nisso que hoje lembrei-me da sua impossibilidade. Desde a última vez em que lhe remeti (!?) uma destas minhas banais cartas, nunca mais havia pensado neste tempo diferido, nesta minha tentativa de diferença em meio à cansativa repetição do mesmo (e você sabia que quando a mãe de Derrida descobre o "a" da différance fica chocada?! Talvez, como mãe, intuísse que as palavras de seu filho nunca fossem capazes de exprimir seu significado sem outras palavras... uma mãe sabe bem o que é diferir...). É, querida, o ciclo dos tempos não faz mais do que apreender esses espectros corporificados numa roda infernal e, para mim, a tentativa de fuga fez do "a" a diferença absoluta. "A" sem o qual o alfabeto dormiria em paz, longe de tantas palavras possíveis, "a" com o qual construí sua impossibilidade. Ah, querida, até mesmo minhas exclamações de cansaço parecem as mesmas! Até mesmo a minha desesperançosa rota de fuga desses ciclos abjetos do tempo das repetições parece prisioneira inevitável do mesmo. Tudo não é senão um esboço pálido do fim pintado em cores fortes... E sinto-me cansado, como que bradando tolamente pela impossibilidade que em você, em mim ou nestas cartas parecem ser o meu único modo de inserir o "a" no ciclo que não o deseja, de fazer da diferença dos tempos a minha différance e, com isso, continuar a escrever sabendo que nenhum possível poderia ser a insígnia destas vazias cartas ao léu.

Do seu remetente impossível. 

p.s.: achei, dentre meus papéis, corpos que ainda eram corpos - mesmo ou justamente porque imaginados pelo Pontormo - e pensei que talvez você pudesse gostar... 

Imagem: Pontormo. Estudo anatômico. 1550. Galleria degli Uffizi, Firenze.   

Um comentário:

Letícia Amaral disse...

"Deve naturalmente saber que toda carta sua me alegrará. Mostre-se, porém, indulgente com as respostas, que talvez o deixem mais de uma vez com as mãos vazias" (Rilke, Pisa 1903)