domingo, 8 de julho de 2012

Do caderno de Lisboa





A Bernardo Soares 


Viver, para o bicho humano, é estar em desassossego.
Nunca desabitamos, exceto nos momentos de sono ou nos autênticos desvarios. Desvario não é o desassossego.
Desassossego é a náusea em terra firme. 
Reconhecer-se sem interior e submerso numa exterioridade imponderável, a vida. 
Não há submersão, falar assim é recorrer a metáforas metafísicas. Há isso e ponto, aprenda a conviver com isso até que sobrevenha algo que nunca será explicado, nada. 
A vida sem explicações ou soluções: desassossego. 


A luz desta cidade me comove até os ossos. Um grande rio encontrando o mar e logo ali, como numa aparição, as ruelas medievais, os morros, as construções mouriscas, os cheiros, as cores, os sons. Há momentos em que deixo de ser um guardião embotado de meus pensamentos para, simplesmente, contemplar, como um pobre Antão em desertos pagãos e povoados. A contemplação é o delírio da exterioridade. Não saio de mim, nunca sairei, mas é como se um limiar entre interior e exterior se impusesse aqui e agora: eu contemplo esta cidade. É como estar embriagado sem uma gota de álcool. 

É apenas quando me alheio do desassossego habitual, sossego!, que consigo me me sentir mortal, carniça ambulante, estrangeiro de passagem pela vida, mas não o viajante cristão que espera encontrar sua Ítaca logo depois do vale de lágrimas. Há apenas o vale de lágrimas e ele é belo em sua falta de sentido e incompreensível imensidão. Mas, sentir-me mortal, no fugaz entorpecimento da vigília desassossegada, não me traz qualquer angústia. Desaparecerei como um grão de areia lançada ao vento. Sem medo.

O silêncio destes espaços infinitos me acalma. Sem memória, sem individualidade, fundir-se à imanência sem bordas. A vida individual é um transbordamento dolorido. Mas o efetivo contemplar, sua frágil mística profana, dura alguns átimos, logo mais serei o fiel e anônimo cumpridor de prazos, cão zeloso e amedrontado de uma pequena e anônima engrenagem de uma das tantas máquinas anônimas e absurdas que movimentam o vazio de nosso tempo.
                       
Os gregos antigos chamavam bios xênicos a vida contemplativa. Quem contempla não tem um lugar próprio, é sem casa, apátrida, o mais estranho estrangeiro. Antecipa diabolicamente a morte em sua vida. Lúcifer, o anjo da lucidez. É como se um relampejo de eternidade se manifestasse, como num rápido clarão, aos olhos humanos e mortais daquele que vê. Deus é muito frágil, deus morre conosco, esta é sua tragédia, sua humildade e sua força. Desespero. 

Imagem Jnf. 

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