segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Pequeno parágrafo sobre furtos


Eis que ela tinha um devaneio enquanto brincava na praia. Era tomada de um pensamento mais ou menos assim: "Toda música tem um destinatário, mesmo que ele jamais a ouça. Pode parecer absurdo, mas é certo que com frequência esse destinatário não chegará a ouvir a música que lhe fora destinada. Não se trata de uma impossibilidade tout court, mas de algo como uma interdição que o compositor coloca a si mesmo: no fundo, oras, é ele mesmo o destinatário! Mas como um seu fazer pode ser distanciado de si a ponto de poder voltar para si? É justamente essa a impossibilidade, a interdição. Nunca se compõe uma música (e, acho, talvez isso valha para toda obra de arte) para os demais, mas para esse outro que habita o compositor e que jamais irá ouvir a música que a ele fora feita. Tal é a maldição do artista: uma condenação a continuar com-pondo (pondo algo que lhe escapa junto com esse outro em si, que também não perceberá a composição senão como ausência), sempre, como sua única possibilidade de estar vivo." Eu me mantinha inerte, com o olhar fixo para ela, tentando escrever estas breves linhas de seu pensamento antes que ela se desse conta de que havia um estranho que a observava. Era inútil tentar disfarçar, pois, penso, ela já sabia que eu acabara de escrever suas ideias sobre a música. Meu pensamento tremia e eu tentava recompô-lo, provava uma dor angustiada por ter escrito aquele pensamento que nem ao menos sabia se era dela, ou se alguém antes dela já o tinha pensado. Aliás, com que direito tentava apreender um pensamento? Uma vergonha apoderou-se de mim; sentia-me nu, despido de qualquer possibilidade de dirigir a palavra àquela moça, pois a palavra, apenas sabia usá-la por tê-la furtado justamente dela, daquela moça que talvez tivesse pensado estas minhas linhas e que, agora, sumia, num mergulho, em meio à multidão que brincava na praia. Se estas linhas desse pensamento outro têm alguma razão, talvez possa ser esta: pensamos apenas pelo outro que nos pensa e, assim como uma música, jamais nos será possível entender - ou, melhor, pensar - a destinação do pensamento...

Imagem: Paul Gauguin. Mahana no atua. (O dia do Deus). 1894. Art Institute, Chicago.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Pequeno parágrafo sobre o torpor



Nada mais do que o som oco dos seus passos. Era um dia cinza, talvez como seu humor, e, em meio a tantos possíveis pensamentos, apenas o som do nylon de sua jaqueta suada parecia fazer algum sentido. O vento frio, a luz opaca, os rostos inexpressivos da gente que por ele passava; tudo o que talvez pudesse ser dito vivo a ele não era senão os esboços irônicos da morte que há pouco sentira na voz de alguém por quem tanto zelava. Continuava em seus passos; o som do nylon, porém, insistia em dar-lhe notícias do que aparentava ser uma espécie de filme com a história de sua vida. Era estranho, era muito estranho. Lembrou dos comentários que Pasolini certa vez fizera a respeito de seu Édipo rei (esse delírio de autobiografia do poeta): "O cinema - que é uma sequência infinita que reproduz de um único ponto de vista toda a realidade - é fundado assim sobre o tempo: e, por isso, obedece às mesmas regras que a vida: as regras de uma ilusão. Estranho dizer isso, mas tal ilusão, é preciso aceitá-la." Pasolini, de quem tanto gostava, dizia isso sabendo que aquele que evita aceitar a ilusão da própria vida, acaba perdendo a própria realidade. Ora, seu caminhar "cinza" em um dia "cinza" já era algo que, de algum modo, queria alertá-lo sobre o beco sem saída da ficção que é a vida (e lembrar de Pasolini não era um alento?). Não havia - e não há - saída, e então o ruído ensurdecedor daquela jaqueta colocava-o defronte ao vazio da conclamada realidade. Tudo não era senão Ficção. Todos os rostos, o vento frio, a luz opaca, tudo o que ele uma vez pensou ser vida, agora lhe mostrava a única face possível: o torpor, o sonho de uma vida...

Imagem: Piero della Francesca. O sonho de Constantino. Basílica de S. Francesco, Arezzo.

domingo, 8 de setembro de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XV


E no princípio era o sonho, logo transformado nas asas de um abutre que pairava então sobre minha cabeça. Tangendo toda forma de realidade, soavam em mim, como ecos, os ruídos quase guturais daquele abutre-sonho. A ave da minha vida, sonhada e esperada, desnudada agora na sua real figura. Olhava para cima, atônito, tentando enquadrá-la num plano sequência, como se aquilo tudo fosse um filme no qual eu figurava como um qualquer, um sórdido personagem secundário da própria vida. Era o vazio que preenchia a cena, o vasto e noturno céu, que, agora, depois das asas do abutre, ocupava minha lente. Aos sons obscuros da ave agora misturava-se o noturno, a vasta escuridão do sonho que, de início, era o próprio abutre. Tudo, tudo não era senão a fantasia de achar-me em um filme-abutre-sonho que agora era eu mesmo. Todo o tempo, todos os anos, todos os desejos, todos os quaisquer, absorvidos pelos hifens que hoje me condenam às conexões mais disparatadas e à submissão ao filme-abutre-sonho-eu, ou, melhor dizendo, ao meu fantasma...

Imagem: Jusepe de Ribera. Tício. 1632. Museo del Prado, Madrid.