domingo, 8 de setembro de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XV


E no princípio era o sonho, logo transformado nas asas de um abutre que pairava então sobre minha cabeça. Tangendo toda forma de realidade, soavam em mim, como ecos, os ruídos quase guturais daquele abutre-sonho. A ave da minha vida, sonhada e esperada, desnudada agora na sua real figura. Olhava para cima, atônito, tentando enquadrá-la num plano sequência, como se aquilo tudo fosse um filme no qual eu figurava como um qualquer, um sórdido personagem secundário da própria vida. Era o vazio que preenchia a cena, o vasto e noturno céu, que, agora, depois das asas do abutre, ocupava minha lente. Aos sons obscuros da ave agora misturava-se o noturno, a vasta escuridão do sonho que, de início, era o próprio abutre. Tudo, tudo não era senão a fantasia de achar-me em um filme-abutre-sonho que agora era eu mesmo. Todo o tempo, todos os anos, todos os desejos, todos os quaisquer, absorvidos pelos hifens que hoje me condenam às conexões mais disparatadas e à submissão ao filme-abutre-sonho-eu, ou, melhor dizendo, ao meu fantasma...

Imagem: Jusepe de Ribera. Tício. 1632. Museo del Prado, Madrid.

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