quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Nova carta


Para minha destinatária impossível.

Querida, talvez a sua carta ausente seja a mais cabal prova do hermetismo. O silêncio, sim, querida, o silêncio que lhe habita não é a falta de linguagem, a falta do seu discurso significante numa missiva que a mim poderia chegar, mas é a impossibilidade que temos em dizer a linguagem, de dizer a carta (ah, talvez seja muito lembrar o velho Heidegger, por quem você não tem muito apreço, bem o sei: a palavra para a palavra não se encontra em nenhum lugar). Um outro sujeito de língua alemã, também um tanto quanto difícil, dizia que o milagre da existência do mundo não poderia ser dito em nenhuma proposição significante por meio da linguagem, mas tão somente pelo fato da existência da linguagem. Nada, no entanto, pode dizer que a linguagem é, e daí o seu silêncio. Sei, isso lhe parece algo capaz de deixá-la estupefata, atônita, angustiada, mas isso é algo que os neoplatônicos, influenciados por aquilo que hoje chamamos gnosticismo, já sentiram. É o êxtase, querida, é o êxtase. É bobagem imaginar que a experiência desse vazio da linguagem (dessa sua carta que nunca me chega) seja um turbamento da razão, um estado psico-patológico ou algo ilógico. Nada disso! Aliás, nada mais lógico do que isso, afinal, não somos impossíveis um ao outro?! É a experiência da palavra, querida, a experiência deste nada que ao mesmo tempo é algo, um abismo silencioso. Mas já há tempos também, na Palestina, certos monges, isolados do mundo, diziam que era preciso oração até ficarem estupefatos, até atingirem o silêncio da linguagem que, no entanto, seria o lugar mesmo da linguagem: deus (e você também deve saber, querida, que tanto quanto os monges cristãos, também os cabalistas judeus pensavam, a partir da impossibilidade da pronúncia do nome divino, a emanação de toda criação a partir do nada que são as quatro letrinhas do tal tetragrama sagrado). E é a partir do pensamento sobre o deus da Palestina em suas diversas facetas, deus em relação ao qual você sempre quis manter distância (ingenuamente pensando ser isso possível - "não há como não ser crististianizado na nossa cultura", já dizia o velho Pasolini) e com o qual o judeu austríaco (por quem você tem tanta estima - aliás, como é comum no meio do qual brotaram nossas impossibilidades) tenta acertar suas contas, que esse silêncio da linguagem torna-se o pressuposto de toda linguagem, como se somente escalando este abismo silencioso, que é o tal deus, pudéssemos trocar nossas missivas. E a tolice de pensar-se fora de qualquer relação com esse fundo obscuro da palavra (e obscura iluminação, você deve saber, é outro tópico do misticismo) ainda paira no nosso tempo. Não, querida, não vimos o ocaso da metafísica. Talvez eu tenha sido hermético demais nesta missiva. Mas, não sei, talvez não seja questão de querer saber coisas que Hermes Trimegisto sabia, já que as letras também são cartas (ainda que em português não fique tão evidente como no italiano, no francês ou mesmo no inglês) e estas, em especial as nossas, não as quero pensar fundamentais, mas tão somente falar sobre e, com isso, talvez liberar nossa linguagem do silêncio divino que a ela impusemos.

Do seu remetente impossível.

Imagem: Anônimo miniaturista inglês. Livro gospel em pergaminho. 1150. Cathedral, Winchester

domingo, 27 de novembro de 2011

Retrair e saltar


Como um tigre acuado, retraído e sem modos, face a face com uma imagem (uma forma minuciosamente conhecida) em que a história parece apresentar sua inexorável faceta vingativa, vejo-me imerso na catástrofe do presente. "Que 'as coisas continuam assim' - eis a catástrofe. Ela não consiste naquilo que está por acontecer em cada situação, e sim naquilo que é dado em cada situação." Antes de o sol nascer é com a catástrofe da noite que sinto ter que acertar a conta; e como o tigre que se carregava de energia (nebulosamente retraído e sem que seus membros pudessem se mover - a incapacidade do gesto, do acolhimento), como que antes do salto, agora tento descolar-me da continuidade histórica (esta tentativa frustrada de construir a salvação, mas que apenas garante a vida na sua abjeta condição da repetição infernal de um castigo) para fazer explodir um movimento destes tesos músculos que me impedem qualquer gesto. Como o tigre devo saltar e deixar-me ir com o movimento da catástrofe, pois, "para que um fragmento do passado seja tocado pela atualidade não pode haver qualquer continuidade entre eles." E o descontínuo é a catástrofe; e na ruptura também não basta um simples salto ao léu, como armar as velas em meio à calmaria, já que a desventura pode acontecer no primeiro sorriso visto depois do salto (que, de fato, pode ser o mesmo já conhecido e que imobiliza o tigre antes do salto), mas é necessário ser estratégico: não basta dispor de velas, é decisivo ter a arte de posicioná-las para o bom vento da história.

sábado, 26 de novembro de 2011

Teoria da religião


§4. Ser Supremo.

Se nós nos representamos agora homens concebendo o mundo sob o dia da existência contínua (em relação à sua intimidade, à sua profunda subjetividade), devemos perceber também a necessidade para eles de emprestar a tal mundo as virtudes de uma coisa "capaz de agir, de pensar e de falar" (como, justamente, fazem os homens). Nessa redução a uma coisa, o mundo se dá ao mesmo tempo a forma da individualidade isolada e da potência criativa. Mas essa potência pessoalmente distinta tem, ao mesmo tempo, o caráter divino da existência a-pessoal, indistinta e imanente.
Num sentido, o mundo é ainda, de uma maneira fundamental, imanência sem limite claro (fluxo indistinto do ser no ser, penso na instável presença das águas no interior das águas). De modo que a posição, no interior do mundo, de um "Ser supremo", distinto e limitado como uma coisa, é então um empobrecimento. Há sem dúvidas, na invenção de um "Ser supremo", vontade de definir um valor maior que todos os outros. Mas este desejo de crescimento tem como consequência uma diminuição. A personalidade objetiva do "Ser supremo" o situa no mundo ao lado de outros seres pessoais de mesma natureza, que assim como ele mesmo é, também são sujeitos e objetos, mas dos quais ele é claramente distinto. Os homens, os animais, as plantas, os astros, os meteoros... se eles são ao mesmo tempo coisas e seres íntimos, podem ser encarados ao lado de um "Ser supremo" desse gênero, o qual, como os outros, está no mundo e que é, como os outros, descontínuo. Não há entre eles igualdade última. Por definição, o "Ser supremo" tem a dignidade dominante. Mas todos são da mesma espécie, na qual a imanência e a personalidade se misturam, todos podem ser divinos e dotados de uma potência operatória, todos podem falar a linguagem do homem. Desse modo, eles se alinham essencialmente, apesar de tudo, em pé de igualdade.
Tenho que sublinhar esse caráter de empobrecimento e de limitação involuntários: os cristãos não hesitam em reconhecer hoje a consciência primeira do Deus em que crêem nos diversos "Seres supremos" dos quais os "primitivos" guardaram alguma memória, mas essa consciência nascente não é uma eclosão, mas sim, ao contrário e sem compensação, uma espécie de estiolamento de um sentimento animal.

§ 5. O Sagrado.

Todos os povos sem dúvidas conceberam este "Ser supremo" mas a operação parece ter falhado em toda parte. O "Ser supremo" dos homens primitivos não teve, aparentemente, o prestígio comparável ao que devia obter um dia o Deus dos Judeus e, mais tarde, o dos cristãos. Como se a operação tivesse acontecido num tempo em que o sentimento de continuidade fosse muito forte, como se a continuidade animal ou divina dos seres vivos e do mundo tivesse desde o ínicio parecido limitada, empobrecida por um primeiro e estranho ensaio de redução à uma individualidade objetiva. Tudo indica que os primeiros homens estivessem mais perto do animal do que nós; eles o distinguiam talvez deles mesmos, mas não sem uma dúvida misturada com terror e nostalgia. O sentimento de continuidade que nós devemos emprestar ao animal não se impunha mais somente ao espírito (a posição de objetos distintos era-lhe exatamente a negação). Mas tinha-se tirado uma significação nova da oposição que ela apresentava em relação ao mundo das coisas. A continuidade, que para o animal não podia ser distinguida de nada mais, que era nele e para ele a única modalidade possível de ser, opôs no homem à pobreza do utensílio profano (do objeto descontínuo) toda a fascinação do mundo sagrado.
O sentimento do sagrado não é mais, evidentemente, aquele do animal que a continuidade perdia nas brumas em que nada era distinto. Em primeiro lugar, se é verdade que a confusão não cessou no mundo das brumas, estas opõem um conjunto opaco a um mundo claro. Esse conjunto aparece distintamente ao limite do que é claro: distingue-se do meio, do fora, do que é claro. De outro lado, o animal aceitava a imanência que o submergia sem proteção aparente, enquanto o homem, no sentimento de sagrado, prova uma espécie de horror impotente. Este horror é ambíguo. Sem nenhuma dúvida, o que é sagrado toma e possui um valor incomparável, mas, ao mesmo tempo, aparece vertiginosamente perigoso para este mundo claro e profano em que a humanidade situa seu domínio privilegiado.

§ 6. Os espíritos e os deuses.

A igualdade e a desigualdade dessas diversas existências, todas opostas às coisas que são os puros objetos, resolvem-se numa hierarquia de espíritos. Os homens e o "Ser supremo", mas também, numa representação primeira, os animais, as plantas, os meteoros... são espíritos. Um deslizamento é dado nesta posição: o "Ser supremo" é, num sentido, um puro espírito: assim também o espírito de um homem morto não depende de uma clara realidade material como o de um vivo; enfim, a ligação de um espírito de animal ou de planta etc. com um animal ou uma planta individuais é muito vaga: trata-se de um espírito mítico - independente das realidades dadas. Nessas condições, a hierarquia dos espíritos tende a se fundar sobre uma distinção fundamental entre os espíritos que dependem de um corpo, como os dos homens, e os espíritos autônomos do "Ser supremo", dos animais, dos mortos etc., que tendem a formar um mundo homogêneo, um mundo místico, no interior do qual, na maior parte do tempo, as diferenças hierárquicas são frágeis. O "Ser supremo", o soberano dos deuses, o deus do céu, geralmente é somente um deus mais potente, mas de mesma natureza que os outros.
Os deuses são simplesmente espíritos míticos, sem substrato de realidade. É deus, é puramente divino (sagrado), o espírito que não é subordinado à realidade de um corpo mortal. Enquanto é ele mesmo espírito, o homem é divino (sagrado), mas não o é soberanamente, já que é real.

Georges Bataille. Théorie de la Religion. Paris: Gallimard, 2003. pp. 44-50 - parágrafos do capítulo II (A humanidade e a elaboração do mundo profano), da primeira parte do livro. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Anônimo. O sétimo anjo do apocalipse anunciando o Reino do Senhor. (Têmpera, ouro em pergaminho). 1180. Metropolitan Museum of Art, New York.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Tempos e/ou sonhos


Exasperado, colado ao fundo azul do tempo, sinto apenas o grito monocórdico de uma minha voz distante. Eram os eventos de um tempo em que minha Ítaca jazia defronte aos meus olhos. Impossível era entretanto voltar, impossível. Mas o tempo é que volta enquanto eu fico escutando, na mais solitária solidão, a voz de alguém que se esgueirou no meu parcamente iluminado quarto para me dizer: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência... A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira! Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino! Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"
E nada mais. E nada mais! Porém, a voz que afunda minha presença na vontade de entrar pelo avesso do tempo sabe também que eu, poeirinha da poeira, desavisadamente tinha caído em tentação antes mesmo de sua sorrateira entrada. E a voz, por saber disso, desfez-se também em pó à procura da brecha na sua ampulheta rachada; eu não, já tinha espatifado meu contador contra a parede daquele quarto quando ainda havia sol, apenas para ver a dança da poeira com a sombra. Colado ao fundo azul do tempo sinto o grito monocórdico e a Ítaca dos meus sonhos sumirem em meio à poeira da ampulheta. E, mesmo colado, digo: Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes e nada mais, e nada mais. Ainda assim, talvez tudo isso não tenha sido mais do que minha passagem noturna pelo muro divisor da vida e da morte, e, mais do que o estranho demônio que no meu quarto entrara, possa ser o velho René Char a me dizer que viver torna-se a conquista dos poderes extraordinários pelos quais nos sentimos profusamente atravessados mas que somente exprimimos incompletamente com falta de lealdade, de discernimento cruel e de perseverança. Um sonho...
"À l'âge d'homme j'ai vu s'élever et grandir,
sur le mur mitoyen de la vie et de la mort
une échelle de plus en plus nue, investie d'un
pouvoir d'évulsion unique: le rêve... Voici que
l'obscurité s'écarte et que VIVRE devient, sous
la forme d'un âpre ascétisme allégorique, la
conquête des pouvoirs extraordinaires dont nous
nous sentons profusément traversés mais que
nous n'exprimons qu'incomplètement faute de
loyauté, de discernement cruel et de
persévérance."


Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Ideia da matéria


A experiência decisiva que, para quem a tenha tido, diz-se ser tão difícil de contar, não é nem mesmo uma experiência. Ela não é nada além do ponto em que tocamos os limites da linguagem. Mas o que agora tocamos não é, obviamente, uma coisa, tão nova e tremenda que, para descrevê-la, faltam-nos as palavras: é, muito mais, matéria, no sentido em que se diz "matéria de Bretanha" ou "entrar na matéria" ou, ainda, "índice para matéria". Nesse sentido, aquele que toca a sua matéria, encontra simplesmente as palavras para dizer. Onde termina a linguagem começa não o indizível, mas a matéria da palavra. Quem nunca atingiu, como em um sonho, essa dura substância da língua, que os antigos chamavam "selva", é, mesmo se se cala, prisioneiro das representações.
É como para aqueles que voltaram à vida depois de uma morte aparente: na verdade, não morreram verdadeiramente (pois assim não teriam voltado), nem se liberaram da necessidade de dever um dia morrer; mas, liberaram-se da representação da morte. Por isso, interrogados sobre o que lhes sucedeu, não têm nada a dizer sobre a morte, mas encontram matéria para muitos contos e para muitas belas fábulas sobre sua vida.

Giorgio Agamben. Idea della materia. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 15. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko).

Imagem: Edward Hopper. Hotel room. 1931, Thyssen-Bornemisza, Madrid.

Sobre as angústias e exasperações - confrontos com kairós

Kairós: de kairós em kairós, espécie de apetite da contingência: pode exprimir o ‘vazio’, em sua desolação, a inação, a pusilanimidade, a mundanidade. (...) Digo derrisório como imagem endoxal, sem julgamento, pois a mundanidade, ou seja, a submissão à exaltação do kairós, pode ter valor de radicalismo: fazer paralelo com o que Baudelaire diz do Haxixe: ‘causa no homem uma exasperação da personalidade e um sentimento muito intenso das circunstâncias e dos ambientes’: a mundanidade funciona como uma Droga. Radical, também, pois ela pode ter o valor de: “Nada a dizer (a escrever)” = sentido de Paludes. Ora, nada diz (está aí, creio, uma posição do Neutro) que escrever é um bem supremo – e há formas de mundanidade que são escritas: em Proust, é preciso toda uma obra ("O tempo perdido") para que a mundanidade seja superada e desclassificada pela escrita: é uma revelação que só se produz no fim extremo: a escrita expulsa a mundanidade (o kairós), mas ao cabo de uma longa iniciação, de um drama com novos episódios.



BARTHES, Roland. O Neutro. Anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977/1978. Texto estabelecido por Thomas Clerc. (Tradução Ivone Castilho Benedetti). São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 353-354. Imagem: F. Bacon.

domingo, 20 de novembro de 2011

Palavras e coisas


Há um infinito que não está além das coisas, mas que se afunda nelas mesmas; e é com uma espécie de mal estar que dele me dou conta. E tudo parece se complicar mais com a sensação de estar dentro das palavras, de ter sido absorvido pelo discurso, de ainda poder sentir aquele hálito quente que outrora me dizia coisas com palavras (ou dizia palavras com coisas). Havia o infinito na nossa finitude; havia palavra; era o encontro de olhares e um inefável abraço das nossas vozes. Mas agora não resta senão a desfaçatez de uma cumplicidade já não existente, de um rubor envergonhado onde antes via íris que cruzavam mares com notícias de mim mesmo, com palavras que me traziam o infinito no qual deleitosamente me afundava. E hoje são as coisas que naufragam em si mesmas e que não deixam nada além do infinito de si mesmas, a barreira intransponível para as palavras que diziam coisas (ou das coisas que diziam palavras). E lembro que era a voz do deus dos montes palestinos que revelava aos periclitantes hebreus uma verdade e esta, a verdade das coisas, só chegava por meio desse evento acústico. O mesmo sopro que tinha inflado de vida o barro era então o que revelava a palavra e, portanto, a morte. Agora escuto o silêncio, não mais a voz, e não há gosto mais amargo do que o que percebo neste infinito que me habita, nesta coisa de palavras que sou. Por que há o ser e não o nada?, perguntou-se Parmênides sem perceber que talvez eram as palavras que o enganavam. "Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa", e Álvaro de Campos enganava Fernando Pessoa que enganava Álvaro de Campos, mas ambos sabiam que o destino conduzia uma carroça pela estrada de nada...

Imagem: Tiziano Vecellio. Cristo e o bom ladrão. 1566. Pinacotena Nazionale, Bologna.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Ideia da felicidade


Em toda vida há algo que permanece não vivido, como em toda palavra há algo que permanece não exprimido. O caráter é a obscura potência que se assume como guardiã desta vida intocada: atentamente vela por aquilo que nunca foi e, sem que o queiras, inscreve em teu rosto a marca disso. Por isso a criança que acaba de nascer parece já se assemelhar ao adulto: na realidade, entre os dois rostos não há nada de igual, a não ser aquilo que, tanto em um como no outro, não foi vivido.
A comédia do caráter: no ponto em que a morte arranca das suas mãos o que estas tenazmente escondem, aquilo do que se apodera é apenas uma máscara. Neste ponto, o caráter desaparece: no rosto do morto não há mais traço do que não foi vivido, as rugas gravadas pelo caráter alisam-se. Assim também se escarnece da morte: ela não tem olhos nem mãos para o tesouro do caráter. Este tesouro - o que nunca foi - é recolhido pela ideia da felicidade. Ela é o bem que a humanidade recebe das mãos do caráter.

Giorgio Agamben. Idea della felicità. in.: Idea della prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 79. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Tintoretto. Alegoria da Felicidade. 1564. Scuola Grande di San Rocco, Venezia.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Parágrafo das ampulhetas


A W.B. e J.F.B.

Viro a ampulheta e recomeço. O que, propriamente? Talvez uma simples contagem; ou, ainda, o simples observar as partículas de poeira que descem do bojo gordo ao gargalo estreito para cair no outro bojo gordo ainda vazio. E assim, como poeira encapsulada, percebo os seres no meu em torno como gotas cristalizadas das lágrimas dos deuses que outrora caminhavam no tempo. Eles, eternos, que de algum modo sempre brincavam com a mortalidade dos homens, descobriram-se mortos e, como legado, deixaram a cristalização do tempo na forma dos seres, do ser. Ah, poeira encapsulada, quão triste para mim é vê-la desse modo, à espera do meu próximo giro. E o tempo das justificações, esperançosas ou céticas, cabe todo ele na pequena ampulheta. Quando pleno de poeira um de seus bojos, satura-se e enfada-se da existência esperançosa, já que nada mais há de receber; ao contrário, no mesmo instante em que se torna pleno, o outro bojo, ao soltar pelo gargalo a poeira, esvazia-se e enche-se de esperança. E é esse o nosso tolo joguete vazio. Ainda antes, já o velho Unamuno me dizia: "Tuvimos que abandonar, desengañados, la posición de los que quieren hacer verdad racional y lógica del consuelo, pretendiendo probar su racionalidad, o por lo menos su no irracionalidad, y tuvimos también que abandonar la posición de los que querían hacer de la verdad racional consuelo y motivo de vida. Ni una ni otra de ambas posiciones nos satisfacía. La una riñe con nuestra razón; la otra, con nuestro sentimiento. La paz entre estas dos potencias se hace imposible, y hay que vivir de su guerra. Y hacer de ésta, de la guerra misma, condición de nuestra vida espiritual." Cansado, arremesso a ampulheta contra a parede - como faria com uma granada em meio à guerra - e, carregando-me de tempo, observo o mistério da poeira que brinca à luz do sol.

Imagem: Giovanni Bellini. As quatro alegorias: Prudência (ou Vaidade). 1490, Galleria dell'Accademia, Venezia.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O que é um mistério?


Giorgio Agamben

Para responder a questão “O que é um mistério?”, gostaria de, primeiramente, pedir-lhes para transportar sua imaginação à Alemanha dos anos 1920. Não para os tumultos que agitavam as grandes cidades da República de Weimar naquele momento, no pós-guerra, mas para a calma e o silêncio da abadia beneditina de Maria Laach, na Renânia. Ali, um obscuro monge, Odo Casel, publica em 1921 Die Liturgie als Mysterienfeier (A Liturgia como festa mistérica) que marca o nascimento do que será chamado o “movimento litúrgico” (die lturgische Bewegung) e que irá exercer uma enorme influência no seio da Igreja Católica.

Os trinta primeiros anos do século XX foram chamados, com razão, a “idade dos movimentos”. Pois, tanto à direita quanto à esquerda da cena política, os “partidos” dão lugar aos “movimentos”. O movimento operário assim como o fascismo e o nacional-socialismo definem-se como movimentos e não simplesmente como partidos. Mas igualmente nas artes, nas ciências e em todos os domínios da vida social, vê-se surgir movimentos que progressivamente substituem as escolas e as instituições. Quando Freud, em 1914, procura um título para apresentar a psicanálise, depois de refletir, irá chamá-la “movimento psicanalítico”; não é uma escola, é o movimento psicanalítico.

Qual é a tese que Casel coloca no centro de seu movimento litúrgico? A liturgia cristã é um mistério. O que isso quer dizer? Ainda na sua dissertação doutoral, escrita em latim e discutida, em 1918, na universidade de Bonn e cujo título era De phiosophorum graecorum silentio mystico (Sobre o silêncio místico dos filósofos gregos), a estratégia de Casel está claramente colocada. Sob a aparência de uma pesquisa filológica erudita, nela já se vê enunciados as duas teses que irão guiar os movimentos litúrgicos. A primeira: os mistérios pagãos, os mistérios eleusinos, órficos ou dionisíacos não devem ser vistos como uma doutrina secreta que se poderia formular num discurso, o qual seria proibido revelar. Ao contrário, esta é, segundo Casel, uma significação tardia da palavra “mistério” que vem das escolas neo-pitagóricas e neo-platônicas. Na origem, o termo “mistério” designa para Casel uma práxis, uma ação, um drama, dromèna, como se diz em grego, isto é, gestos e atos pelos quais uma ação divina se mostra e se realiza no mundo para a salvação do homem que de tal mistério participa. De fato, sabe-se que nos mistérios pagãos o iniciado assiste a algo como um drama, como uma pantomima teatral. Clemente de Alexandria, que é um informante cristão, e enquanto tal tendencioso, mas que, parece, tinha sido iniciado antes de se tornar cristão, chama os mistérios eleusinos de um “drama místico” (drama misticon). É a primeira tese: não é uma doutrina secreta, é uma ação. O segundo ponto é que há uma conexão entre os mistérios gregos e a liturgia cristã. Essa conexão já tinha sido assinalada pelos historiadores das religiões como Reizenstein, Dietrich, Usener, Burnet etc., mas adquire uma nova significação, uma vez que ela é reivindicada pela própria Igreja. Trata-se de procurar para liturgia cristã uma genealogia não judia, pois, ao contrário, sabemos que a liturgia cristã foi muito influenciada por aquela da sinagoga – poder-se-ia ver aí, portanto, dado o contexto histórico, uma nuance anti-semita que, aliás, Casel jamais irá explicitar. Assim, a liturgia enquanto mistério é essencialmente uma actio, uma ação, uma pratica e não uma doutrina. A Igreja não é ou não é somente uma comunidade de crentes que se define pela profissão de uma doutrina cristalizada em dogmas; a Igreja se define muito mais pela participação no mistério, isto é, numa ação litúrgica de culto. Há, portanto, segundo Casel, um verdadeiro primado da liturgia sobre a doutrina, do mistério sobre o dogma, no sentido de que é pela liturgia que se pode chegar a uma definição verdadeira da doutrina e não o contrário.

Essa tese, que influenciou enormemente a Igreja católica, foi, entretanto, vista com certa desconfiança pela Cúria romana, como uma ameaça à função essencial do papa como guardião do dogma. Em 1947, depois do fim da guerra que dividiu a Europa, Pio XII publica uma encíclica, Mediator Dei, inteiramente dedicada à liturgia. Salientando ao mesmo tempo a importância vital, fundamental da liturgia para a Igreja, o papa aí reafirma o primado do dogma sobre a ação litúrgica ou, ao menos, a estreita conexão entre os dois. É nesse sentido que a tese de Casel é uma tese política e, pensando-se no contexto político do momento histórico no qual ela é anunciada, vê-se aí um primado da práxis sobre a teoria.

O que acontece nos mistérios litúrgicos? Qual é seu papel estratégico? Em 1928 Casel publica na sua revista o ensaio Mysteriengegenwart (A Presença mistérica). O núcleo mais próprio do mistério cristão, segundo Casel, é tornar novamente presente a ação de salvação do Cristo e de, antes de mais nada, tornar presente o próprio Cristo. Isto é, que o mistério não é uma re-presentação, mas uma apresentação, uma presença real e não somente simbólica. Mas, de qual gênero de presença se trata? Obviamente que não se trata da presença histórica, isto é, da crucifixão tal como aconteceu no Gólgota num certo dia de um certo ano; ao contrário, trata-se de uma presença particular que diz respeito não ao sacrifício histórico, mas ao sacrifício na sua efetividade soteriológica, isto é, o sacrifício enquanto produz a salvação e a redenção dos pecados dos homens. Casel tem o cuidado de especificar, portanto, que em questão nos mistérios litúrgicos está sim uma ação, mas uma ação eficaz. Uma realidade operativa – utilizo esse termo porque operatorius é o adjetivo que irá designar na liturgia patrística os efeitos da liturgia. A liturgia é operativa no sentido de que seus efeitos se produzem de qualquer modo.

É preciso refletir bem sobre essa tese central da teologia cristã sobre a liturgia enquanto ação sacramental: a liturgia produz seus efeitos ex opere operato, isto é, de qualquer como pelo simples fato de que um ato se cumpra, pelo simples fato de uma palavra ser dita, de um gesto ser cumprido, o efeito se produz absolutamente, sem falta. Independentemente das qualidade do padre: o padre pode ser um assassino, um blasfemador, pode estar completamente bêbado no momento do batismo ou da missa, mas o sacramento permanece válido e os efeitos se produzem. Os teólogos dão até mesmo exemplos extraordinários, como o de um padre que, para seduzir uma mulher, a batiza: o batismo permanece válido. Vejam bem, portanto, que o mistério da liturgia é no fundo o mistério da operatividade, de uma eficácia radical. Uma ação absolutamente eficaz sem relação com as condições que habitualmente garantem a eficácia de uma ação humana.

Deixemos de lado agora a análise de Casel, de sua interpretação da liturgia cristã. Primeiramente, o que ganhamos com tal análise? Nós nos liberamos da falsa noção do mistério enquanto doutrina secreta ou incognoscível: vimos, ao contrário, que o mistério é uma práxis, algo como uma ação dramática dotada, segundo Casel, de uma eficácia particular. É possível perguntar-se, contudo, se uma tal definição é condizente ao que sabemos dos mistérios pagãos e também à nossa experiência do mistério, talvez admitindo-se que uma tal experiência seja disponível para nós, modernos, além dos limites da liturgia cristã. Iremos, portanto, inverter o caminho e voltar ao mistério pagão do qual Casel tinha tirado seus desenvolvimentos. Os historiadores das religiões nos dizem que o mistérios eram aparentados a uma ação dramática e, nisso, Casel tinha razão. Para empregar as própria palavras de Rohde: “Os mistérios eleusinos eram uma pantomima acompanhada de cantos sagrados e de fórmulas que representavam a história do rapto de Perséfone, de sua busca empreendida por mestres até os reencontros.” Desse modo, não estamos longe da ideia de Casel. No entanto, tudo muda quanto ao que acontece realmente nos mistérios, particularmente no que concerne aos seus efeitos, sua eficácia. Nesse ponto, as fontes antigas permanecem muito vagas. Tudo o que nos dizem é que o iniciado adquire “doces esperanças”, que se torna bem aventurado pois conhece o realização de sua vida. Muito longe, portanto, da eficácia ex opere operato do mistério cristão segundo Casel.

A mais longa descrição que temos dos mistérios antigos se encontra num romance escrito em latim por volta do século II, As Metamorfoses ou O Asno de ouro, de Apuleio. O protagonista, que tinha sido transformado em asno no momento em que descreve sua iniciação ao mistério de Isis e a salvação que nele encontra, emprega a muito significativa expressão precária salus, uma “salvação precária”. Em latim Precarius é literalmente o que é obtido por uma prex, um pedido verbal, oposto a uma quaestio, que é uma demanda que quer obter a todo custo seu objeto – é por isso que quaestio, “questão”, irá se tornar o nome da tortura. Se nos mistérios cristãos a salvação era portanto garantida, nos mistérios pagãos, ao contrário, tudo é precário. Não há aqui nenhuma certeza, mas muito mais uma aventura noturna e incerta que tem lugar numa linha instável que passa entre o Deus infernal e o Deus celeste, o homem e o animal, a vida e a morte.

Se a mais longa descrição dos mistérios antigos se encontra assim no romance de Apuleio, é porque entre os romances e os mistérios há, iremos ver, uma relação estreita; e é na análise desta relação que gostaria de concluir minha exposição.

Em 1962 Reinhold Merkelbach publica sua monografia Roman und Mysterium in der Antike (Romance e mistério na Antiguidade). A tese do livro é clara: retomando a ideia sobre a origem dos romances clássicos que tinha sido proposta por Kerényi, o autor, por meio de uma análise detalhada de vários romances gregos e latinos, mostra que não somente há uma ligação genética entre os mistérios e os romances clássicos, mas que os romances antigos devem ser lidos como verdadeiros Mysterien-texten, “textos mistéricos”. Qual é o elemento comum que liga tão estreitamente mistério e romance? É que nos mistérios, como nos romances, vemos pela primeira vez uma existência individual se ligar a um elemento divino, ou sobre-humano, de tal modo que as sortes e os episódios de uma vida singular adquirem uma significação que os ultrapassa e tornam-se nesse sentido misteriosos. Na verdade, é o que ainda acontece hoje em um romance: o enredo de episódios e de circunstâncias que o autor tece ao redor de sua personagem (por exemplo, Isabel Archer no Retrato de uma senhora de Henry James; ou Anna Karenina no romance de Tolstoi) é também o que vai constituir esta vida singular como um mistério que é preciso compreender, que a própria protagonista vai compreender. Mistério que não é necessariamente sagrado e que pode ser, ao contrário, inteiramente profano e, às vezes, até mesmo miserável, como é o caso de Emma Bovary, mas que não deixa de ser um mistério. De todo modo se trata de mistério, pois há nele, como em Elêusis ou em Apuleio, uma iniciação. Iniciação a quê? À própria vida. Com isso quero dizer que, nos romances, a vida aparece como um mistério no qual a própria vida é ao mesmo tempo a iniciadora e o único conteúdo do mistério. Está aí, parece-me, uma definição possível do romance que é também, entretanto, uma definição do mistério.

Conferência proferida durante a programação do “Festival de músicas sagradas do mundo”, ocorrido entre os dias 5 e 9 de junho de 2010, nos “Encontros de Fez”, organizado pela fundação “Espírito de Fez”. Este texto, juntamente com os dos demais participantes do Festival, foi publicado, originalmente em francês, em Le voyage initiatique. Paris: Albin Michel, 2011, organizado por Nadia Benjelloun. (Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Guido Reni. Baco menino. 1615-1620. Galleria Palatina, Firenze.

sábado, 5 de novembro de 2011

Sobre cartas impossíveis


Para minha destinatária impossível.

Querida, por pouco cheguei a pensar na sua possibilidade. Puro devaneio, puro devaneio. Aliás, acho que são as minhas cartas puros devaneios sobre sua possibilidade; não pode ser diferente. Acho que nunca cheguei a lhe falar sobre as cartas, não? Pois é, sei que essa história de meta-discursos pode ser algo que a incomode, mas, como não fazer diferente hoje que o dia abre seu azul e me diz as histórias de suas imprudências? Cheguei até mesmo a pensar a respeito da legibilidade da história e no que Benjamin (acho que você não o leu...) dizia sobre o momento de dialética em supensão no qual, por um átimo, a história fulgura diante dos nossos olhos. Acho que é o azul deste dia que suspende suas imagens; aliás, acho que não só o azul deste dia, mas de todo este novembro (o mês pós-revolucionário por excelência), o que dá às minhas retinas suas imagens, possíveis ou, com mais certeza, impossíveis (desculpe-me pelas ambiguidades, mas, fizeram-se necessárias...). Ah, e talvez seja isso que me faça pensar novamente em algo como a sua possibilidade: pura imprudência. Aliás, toda essa história parece ser uma grande imprudência. Não me dou conta de que todo encontro é um desencontro, de que toda conversa com você não passa de grunhidos. Inerte e ativo, no paradoxo da desantenção, quase acreditei na sua presença. Pura falsidade: você está completamente cooptada pela sua inexistência, mas, tolo, às vezes ainda creio na sua existência; parece que não percebo que é apenas imagem no fundo cansado e obscuro das minhas lembranças. É, querida, talvez seja a hora de, tal como os ajudantes kafkianos - os quais, na sua quase invisibilidade, tanto chamavam a atenção de Benjamin -, seguir a viagem alegre e vazia da existência... Peço desculpas pelos delírios (e perdi as contas de quantas vezes já fiz isso), mas era sobre as cartas que gostaria de lhe falar; ora, é sobre o impossível que gostaria de falar, portanto. Mas, como? Não sei, querida, não sei... tudo está tão confuso que chego a pensar que esta carta já tinha sido escrita por alguém, em outro tempo, e que somente a reescrevo, como que ouvindo um ditado vagando pelo ar; ou talvez tenha sido eu mesmo a escrevê-la em outro novembro - e, talvez, você ainda era possível -, mas só agora consigo apreendê-la com palavras. Então vejo que não posso lhe falar sobre as cartas, que não há razão para lhe falar sobre as cartas, e que só você mesma poderá, algum dia (talvez num outro novembro, depois de, também você, prosseguir um tempo na viagem alegre e vazia), perceber quão impossíveis são estas cartas...

Do seu remetente impossível.

p.s.: desculpas pela má qualidade do postal, mas é de um sol de novembro, talvez o mesmo que me iluminava quando ainda não conseguia apreender esta carta...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A reação estilística



Todos juram ser puros:
puros na língua... naturalmente:
signo de que a alma é suja.
Sempre foi
assim. Para mentir não é preciso ser obscuro.
Iludem-se, monstros, que a morte
iguala! Não sabem que é exatamente a morte
(seu álibi de servos católicos)
que desagrega, corrói, torce, distingue:
também a língua.
A morte não é ordem, orgulhosos
monopolistas da morte,
e seu silêncio é uma língua muito diversa
para que com ela vocês possam se fazer fortes:
exatamente ao redor dela gira

a vida! E vocês têm medo
da sua santa morte, do caos que implica:
o seu unilinguísmo é uma defesa!
A Língua é obscura
não límpida - e a Razão é límpida,
não obscura! O seu Estado, a sua Igreja,
querem o contrário, com a sua intenção.

São infinitos os dialetos, as gírias,
as pronúncias, porque é infinita
a forma da vida:
não é preciso calar-lhes, é preciso possuí-los:
mas vocês não os querem
porque não querem a história, orgulhosos
monopolistas da morte: os poetas
falam como padres e, proféticos,

cantam vitória, por toda parte,
as Cassandras: é passado o tempo das esperanças!
Tinham razão eles, escondidos
dentro das paróquias.
Agora saem à luz do dia,
tagarelas das privilegiadas angústias,
das livres esperanças impostas
pela força do capital que não se estingue.
Gadda! Você que é língua obscura
e razão obscura,
refuta-lhes as interessadas lisonjas,
no seu límpido raciocínio!
Moravia, você que é límpida língua
e límpida razão, repele o mal
por eles forçado, no obscuro ponto

dos seus nervos... Estou só,
vocês estão só. Nesta luta que é a luta
suprema, porque reassume todas as outras
e ninguém nos escuta.
Gostariam de reduzir o homem à pureza, eles
que são o caos! Ah, abra-se
sob seus pés a terra e falem
o seu esperanto no inferno.
E, no entanto, mesmo quem estimo e amo,
com quem tenho em comum a alma
em tantos aspectos, sabe, da língua, o externo
valor de história, como
se a história levasse ao uno, a um superno
ponto que nivela toda paixão,
quase como se o seu fim fosse a homologação

das almas! Não, a história
que será não é como a que foi.
Não consente juízos, não consente ordens,
é realidade irrealizada.
E a língua, se é fruto dos séculos contraditórios,
contraditória - se é fruto dos primórdios
tenebrosos - se integra, ninguém se esqueça,
com o que será e que ainda não é.
E esse seu ser livre mistério, toda forma lícita.
Queimar as instituições,
estupenda esperança para quem agora geme,
é uma esperança que as reais paixões
que nasceram não podem prever, nem os sons

novos das suas palavras.
Não chorem os católicos pela grandeza
do passado, chantagistas: pela Desesperança.
Mas os comunistas não se acostumem
à renúncia e à redução dos corações,
com a Esperança: com a grandeza da revolução.
Na língua se espelha a reação.
E a língua das suas palavras é a língua
dos patrões e das suas massas de servos.
Seja ainda viva e vibrante
no julgar, no acusar, convence,
sábio: mas se é o fruto
do homem burguês - que se lança
às novas conquistas, velho e horrendo
no coração - só pode exprimir

o homem, na sua histórica miséria.
Não há caminho de saída e mesmo quem se opõe
é aquele homem, miserável, ímpio,
estúpido, frio, irônico,
que torna facciosa toda sua mais séria
paixão, que não crê nas paixões alheias...
E nele reúnem-se nos dias do relaxamento
inimigos e amigos: recomeça a guerra vil
do descrédito, da doença, da
cegueira da célula
ou sacristia: e retorna o estilo
de um tempo, nos corações
como nos versos: e é melhor morrer.
......................................

Pier Paolo Pasolini. La reazione stilistica. In.: La religione del mio tempo. Milano: Garzanti, 2001. pp. 155-158. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Pier Paolo Pasolini. Auto-retrato n° 2, 1965.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Horologium Vitae

1.8. Estamos habituados a associar a divisão cronométrica do tempo humano à modernidade e à divisão do trabalho nas fábricas. Foucault mostrou que, nos limiares da revolução industrial, os dispositivos disciplinares (as escolas, os quarteis, os colégios, as primeiras manufaturas reais) já a partir do fim do século XVII tinham começado a dividir a duração do tempo em segmentos, sucessivos ou paralelos, para obter assim, por meio da combinação das simples séries cronológicas, um resultado geral mais eficaz. Ainda que Foucault mencione o precedente conventual, raramente se notou, entretanto, que, quase quinze séculos antes, o monaquismo tinha realizado nos seus mosteiros, com fins exclusivamente morais e religiosos, uma escansão temporal da existência dos monges cujo rigor não apenas não tinha precedentes no mundo clássico mas que, na sua intransigente incondicionalidade, talvez não foi igualado em nenhuma instituição da modernidade, nem mesmo na fábrica taylorista.

Horologium é o nome que, na tradição oriental, designa significativamente o livro que contém a ordem dos ofícios canônicos segundo as horas do dia e da noite. Na sua forma originária, remonta à ascese monástica palestina e síria entre os séculos VII e VIII. As ofícios da oração e da salmodia nele são ordenadas como um “relógio” que assinala o ritmo da oração do amanhecer (orthros), da manhã (primeira, terceira, sexta e nona horas), do pôr do sol (lychnikon) e da meia-noite (que, em certas ocasiões, durava toda a noite: pannychis). Essa atenção em dividir a vida segundo as horas, em constituir a existência do monge como um horologium vitae, é ainda mais surpreendente se se considera não apenas a primitividade dos instrumentos de que eles dispunham, mas também o caráter aproximativo e variável da própria divisão das horas. O dia e a noite eram divididos em doze partes (horae), do pôr ao nascer do sol. As horas não tinham, portanto, como hoje, uma duração fixa de sessenta minutos mas, exceto nos equinócios, variavam de acordo com as estações, e as diurnas eram mais longas no verão (no solstício chegavam a oitenta minutos) e mais curtas no inverno. A jornada de oração e trabalho era no verão, desse modo, o dobro da invernal. Além disso, os relógios solares, que nessa época eram a regra, funcionam somente durante o dia e com o céu claro, e no resto do tempo o quadrante é “cego”. Ainda assim, mais o monge deverá ater-se indefectivelmente à execução de seu ofício: “Quando o tempo está nublado”, lê-se na Regola del maestro, “e o sol esconde do mundo os seus raios, tanto no monastério quanto em viagem ou nos campos, os irmãos estimarão o transcorrer do tempo calculando mentalmente as horas (perpensatione horarum) e, dependendo da hora, cumprirão seus ofícios costumeiros e, mesmo que esteja atrasada ou adiantada em uma hora a obra de Deus (opus Dei) não será descuidada, no momento em que, por ausência do sol, o relógio está cego”[1]. Cassiodoro (séc. VI) informa aos seus monges que fez instalar no mosteiro um relógio de água, de modo a poder calcular as horas também durante a noite: “Não toleramos que vocês ignorem totalmente a medição das horas (horarum modulos), tão útil ao gênero humano. Por isso, além do relógio que funciona com a luz do sol, quisemos um outro hidráulico (aquatile), que mede a quantidade das horas tanto de dia quanto de noite” (De institutione divinarum litterarum, Pl, 70, 1146 a-b). E, quatro séculos mais tarde, Pier Damiani convida os monges a transformar-se em relógios viventes, medindo as horas com a duração das suas salmodias: “O monge, se quer calcular as horas quotidianas, habitue-se a medi-las com seu canto de modo que, quando as nuvens cobrirem os céus, constituam-se numa espécie de relógio (quoddam horologium) com a duração regular das suas salmodias” (De perfectione monachorum, Pl, 145, 315 c-d).

Em todo caso, à escansão do ritmo das horas são garantidos, sob a responsabilidade do abade, encargos especiais (significatores horarum, chama-os Pier Damiani; Cassiano e a Regola del maestro os chamam simplesmente conpulsores e excitantes), cuja importância não pode ser superestimada: “O marcador de horas deve saber que nenhum esquecimento no monastério é mais grave do que o seu. Se ele antecipa ou atrasa a hora de uma reunião, toda a sucessão das horas está turbada.” (ibid.).

Os dois monges que, na Regra del maestro, têm o dever de acordar os irmãos (e, acima de tudo, o abade, chacoalhando-lhe levemente os pés, mox pulsantes pedes[2]), desenvolvem uma função tão essencial que, para honrá-los, a regra os chama “vigigalli”, galos sempre despertos (“tão grande é junto ao Senhor a recompensa para aqueles que despertam os monges para a obra divina que a regra, para honrá-los, chama-os vigigallos[3]). Eles devem dispor de relógios capazes de assinalar as horas inclusive na ausência do sol, porque a regra nos informa que era sua responsabilidade olhar o relógio (horolegium, segundo a etimologia medieval, quod ibi horas legamus) tanto de noite quanto de dia (in nocte et in die[4]).

1.9. Não importa quais foram os instrumentos para medir as horas, é certo que toda a vida do monge é modelada de acordo com uma implacável e incessante articulação temporal. Assumindo a direção do monastério constantinopolitano do Stoudion, Teodoro Studita descreve com estas palavras o início da jornada conventual:

“Transcorrida a segunda custódia da noite ou depois da hora sexta, no momento em que está para começar a semana, toca o sinal do relógio d’água (piptei tou ydrologiou to syssemon) e a este som o despertador (afypnistes) se levanta e percorre as celas com a lamparina, despertando os irmãos para a doxologia matutina. Instantaneamente ressoam as madeiras acima e abaixo e, durante o sinal, todos os irmãos se reúnem no nártex e rezam em silêncio, e o sacerdote, com o turíbulo em mãos, incensa o sagrado presbitério... (Descriptio constitutionis monasterii Studi, Pg, 99, 1703).”

O mosteiro é, nesse sentido, antes de mais nada uma escansão horária integral da existência, na qual a todo momento corresponde o seu ofício, tanto de oração quanto de leitura ou de trabalho manual. Claro que já a Igreja primitiva tinha elaborado uma liturgia das horas e, em continuidade à tradição da sinagoga, a Didachè prescrevia aos fieis a reunião para oração três vezes ao dia. A Tradição apostólica, atribuída a Hipólito (séc. III), desenvolve e articula esse hábito ligando as horas da oração aos episódios da vida de Cristo. À oração da terceira hora (“nessa hora Cristo foi visto dependurado na cruz”[5]), à da sexta e da nona (“nessa hora as costelas de Cristo são feridas e jorram água e sangue”), Hipólito agrega a oração da meia-noite (“se tua mulher está contigo e não é crente”, aponta o texto, “saia para um quarto e reze”[6]) e a do canto do galo (“levanta-te no cantar do galo e reze, porque àquela hora, ao cantar do galo, os filhos de Israel negaram Cristo”[7]).

A novidade do mosteiro é que, tomando literalmente a prescrição paulina da oração incessante (adialeiptós proseuchesthe, I Tes., 5, 17), ele, por meio de uma escansão temporal, transforma toda a vida em ofício. Confrontando-se com esse preceito apostólico, a tradição patrística tinha dele retirado a consequência que Orígenes retoma no De oratione, isto é, de que o único modo possível de entender esse preceito era que, “se a vida do santo é uma grande incessante oração, uma parte dessa, isto é, a oração no sentido estrito do termo, deve ser feita pelo menos três vezes ao dia” (Pg, II, 452). Completamente diferente é a interpretação monástica. Cassiano, expondo as instituições dos Padres egípcios, que segundo ele representam o paradigma perfeito do mosteiro, escreve:

“Aqueles ofícios que, pelo sinal do preposto, nós somos obrigados a cumprir para o Senhor em horas e intervalos distintos (per distinctiones horarum et temporis intervalla), eles [os padres egípcios] os celebram espontaneamente sem interrupção (iugiter) durante toda a duração do dia, agregando-os ao trabalho. Assim, cada um na sua cela, separadamente, exercita incessantemente a obra das mãos (operatio manum), sem por isso omitir a recitação dos Salmos e das outras Escrituras. Misturando a todo instante preces e orações, eles passam o dia todo nesses ofícios, os quais, ao contrário, celebramos somente em tempos estabelecidos (statuto tempore celebramus[8]).”

Ainda mais claro é o ditado das “conferências” que ele dedica à prece, na qual a continuidade da oração define a própria condição monacal: “Todo a finalidade do monge e a perfeição do seu coração consiste na contínua e ininterrupta perseverança na oração (iugem atque indisruptam orationis perseverantia),”[9] e a “sublime disciplina” do mosteiro é a que “nos ensina a aderir a Deus sem interrupção (Deo iugiter inhaerere)”.[10] Na Regola del maestro, a “arte santa” que o monge aprende deve ser exercitada “noite e dia incessantemente” (die noctuque incessanter adinpleta[11]).

Não se poderia dizer de modo mais claro que o ideal monacal é o de uma mobilização integral da existência por meio do tempo. Enquanto a liturgia eclesiástica divide a celebração do ofício pelo trabalho e alimentação, a regra monástica, como é evidente na passagem citada das Istituzioni de Cassiano, considera a obra das mãos como parte indiscernível do opus Dei. Já Basílio interpreta a frase do apóstolo (“comendo ou bebendo, qualquer coisa que façam, façam-na para a glória de Deus” – I Cor., 10, 31) como responsável por uma espiritualização de toda a atividade do monge. Não apenas, desse modo, toda a vida do mosteiro se apresenta como a execução de uma “obra divina”, mas Basílio tem cuidado de multiplicar os exemplos tirados do trabalho manual: como a fabricante, enquanto bate o metal, tem em mente a vontade do comitente, assim também o monge segue com cuidado “toda sua ação, pequena ou grande (pasan energeian kai mikran kai meizona)”, porque é consciente a todo instante de fazer a vontade de Deus (Regulae fusius tractatae, Pg, 31, 921-923). Mesmo na passagem da Regola del maestro na qual os ofícios divinos são claramente distinto dos trabalhos manuais (opera corporalis[12]), estes últimos devem, no entanto, ser seguidos com a mesma atenção com a qual se seguem os primeiros: enquanto o irmão segue um trabalho manual, deve fixar a atenção na obra e ocupar a mente (dum oculis in laboris opere figit, inde sensum occupat[13]); não surpreende, portanto, que os exercitia actuum, que se alternam com o ofício divino, sejam definidos pouco depois como uma “obra espiritual” (spiritale opus[14]). A espiritualização da obra das mãos que desse modo se realiza pode ser vista como um precursor significativo daquela ascese protestante do trabalho, em relação à qual o capitalismo, segundo Max Weber, representa a secularização. E se a liturgia cristã, que culmina na criação do ano litúrgico e do cursus horarum, foi eficazmente definida uma “santificação do tempo”, no qual todo dia e toda hora são constituídos como um “memorial das obras de Deus e dos mistérios de Cristo”[15], ao contrário, o projeto dos mosteiros pode ser precisamente definido como uma santificação da vida por meio do tempo.

A continuidade da escansão temporal, interiorizada na forma de uma perpensatio horarum, de uma articulação mental do transcorrer das horas, torna-se aqui o elemento que permite agir sobre a vida dos indivíduos e da comunidade com uma eficácia incomparavelmente maior do que aquela que podia atingir o cuidado de si dos estóicos e dos epicureus. E se nós estamos hoje perfeitamente habituados a articular nossa existência segundo tempos e horários, e a considerar também a nossa vida interior como um decurso temporal linear e homogêneo, e não como um alternar-se de unidades discretas e heterogêneas para medir segundo critérios éticos e ritos de passagem, não devemos, entretanto, esquecer que é no horologium vitae dos mosteiros que tempo e vida foram pela primeira vez intimamente sobrepostos até quase coincidir.


[1] VOGÜÉ, A. De. La règle du maître, a cura di A. de Vogue, “Sources Chrétiennes” 105, Paris, Cerf, 1964, 3 vol. p. 266.

[2] Idem. p. 172.

[3] Ibid. p. 170.

[4] Ibid.

[5] IPPOLITO. La tradition apostolique de S. Hippolyte, a cura di B. Botte, “Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen” 39, Munster, Aschendorff, 1963. p. 90.

[6] Idem. p. 92.

[7] Ibid. p. 96.

[8] CASSIANO, Jean CASSIEN. Institutions cénobitiques, a cura di J.-C. Guy, “Sourcs Chrétiennes” 109, Paris, Cerf, 2001. p. 92.

[9] CASSIANO, Jean CASSIEN. Conferences, a cura di Pichery, “Sources Chrétiennes” 64, vol. 3, Paris, Cerf, 1959. p. 40.

[10] Idem. p. 83.

[11] VOGÜÉ. Op. Cit. p. 372.

[12] Idem. p. 224.

[13] Ibid.

[14] Ibid.

[15] RIGUETTI, Mario. Storia liturgica, vol. 2, Milano, Ancora, 1950. p. 1.

Giorgio Agamben. Altissima Povertà. Regole monastiche e forma di vita. Vincenza: Neri Pozza Editore, 2011. pp. 30-37. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Fra Angelico. São Francisco recebendo os estigmas. 1429. Pinacoteca Vaticana, Roma.