terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Rrose Sélavy


"A faculdade de iludir-nos de que a realidade de hoje seja a única verdadeira, se por um lado nos sustém, por outro nos lança num vazio sem fim, porque a realidade de hoje é destinada a ser descoberta ilusão amanhã. E a vida não termina. Não pode terminar. Se amanhã termina, está terminada." Estou sentado diante da TV com um jovem senhor no alto de seus quase 86 anos muito vívidos e fascinantes. Conversamos, rimos, olhamos nos olhos um do outro, falamos errado - ao modo caipira -, dançamos na sincronia de risos cúmplices. A mentira das nossas conversas representam a verdade de uma relação constituída desde meu nascimento: "Foi um átimo, mas a eternidade. Sentimo-nos dentro de todo o desânimo das necessidades cegas, das coisas que não podem ser mudadas: a prisão do tempo; o nascer agora e não antes e não depois; o nome e o corpo que nos é dado; a cadeia das causas; o sémen lançado por aquele homem: meu pai sem querer fazê-lo; o meu vir ao mundo, a partir daquele sémen; involuntário fruto daquele homem; ligado àquele ramo; expresso por aquelas raízes." Estava iniciada minha vida; era a flecha desregrada que teria feito Zenão criar um outro tipo de paradoxo.
A realidade das mentiras de ontem, da verdade eterna do átimo do meu nascimento e a mescla que ambas cumprem no meu presente. A vontade irrefreável de rir, de sentir a história mais estapafúrdia como a pura verdade do ser, do nosso ser-em-comum. Os risos se alongam, o perfume do café vem da cozinha para abrilhantar ainda mais a falsidade de todas as histórias (que em certa medida se sustentaram sobre o peso efêmero da fumaça de café torrado que na vida do tal senhor foi mais que constante), o barulho da TV confunde minha cabeça e as histórias do Pirandello fazem-me pensar a respeito da minha vontade de tê-la companheira. Duchamp encarnava Rrose Sélavy e deixava Man Ray fotografá-lo. A série que brinda a vida, brinda também o amor. E o sentimento, que não mente mas também joga a partida da ilusão, não me deixa calar. A cada frase que cria uma história, história esta que se difere nas infinitas vezes que é contada por aquele senhor, surge uma verdade efêmera e eterna: a verdade de um amor que se cruza para além das fronteiras do dito real e do dito imaginário. Eis talvez a fonte dessa verborragia que falseia e autentica meus sentimentos. Escrevo um texto no momento mesmo em que meus sentimentos estão à flor da pele: quero a gentileza dos verbos errados, das preposições trocadas, das palavras inventadas que o senhor fala e com as quais elabora mirabolantes histórias de caronas fantasmagóricas, de lobisomens comedores de porcos, de viagens a grutas santificadas, de geadas devastadoras de amores e sonhos; quero também agora um aceno d'eros, um sopro miúdo de miúdos pulmões de quem se deita à minha direita.
As rosquinhas de pinga são um pileque de saudades pois as mãos que sempre as fizeram agora não mais as podem fazer; o café não ecoa só em aromas desta cozinha, mas dos momentos em que cadeiras na varanda formavam um círculo aventuroso de risos e mentiras de outros tempos, dos instantes em que uma cafeteira italiana e um só par de pequenas xícaras delicadamente arrumadas sobre um jogo americano eram um elo entre nossos sorrisos... Não sei das verdades da vida, não estou certo do jogo do futuro, não sei, não sei... Talvez a realidade de hoje seja mesmo amanhã uma ilusão, mas o vazio sem fim é hoje e é amanhã e não há nada para preenchê-lo. Talvez Rrose possa ser aquela que lance sempre mais perguntas não para nos tirar do vazio, mas para nos deixar a bailar por ele, como num salão onde eu possa novamente convidá-la para mais uma dança.
Deito minha cabeça numa daquelas almofadas cuidadosamente dispostas nas novas poltronas que adornam a sala. Não há como segurar o pensamento pois não somos nós a pensá-lo, mas ele a nos pensar; e Rrose brinda a vida, e eu novamente sinto um vazio no peito, e a cozinha explode em risadas, e Eros me chama do outro lado da tempestade que agora começou, escureceu o dia e se alonga, alonga, alonga...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Biombos de Namban


Os impressionantes biombos de Namban abrem um ambiente. Ao contrário da sua destinação originária - algo para separar lugares, circunscrever espaços - aqui vejo uma integração. Os portugueses, chamados "bárbaros do sul" (Namban Jin) pelos japoneses, chegaram a Nagazaki em 1543 e com eles toda uma circulação de mercadorias, gente e culturas. Foi a abertura de um mundo: dois velhos mundos que se cruzam e não mais se separam, mas param a minha cabeça neste instante. Estou pensando em como o projeto português de expansão comercial (e que por fim acabou sendo também colonial) aconteceu com a chegada a Africa, ao Brasil, a Índia. Um dos biombos retrata a partida de um lugar que supostamente seria Goa (pelos elefantes, pela arquitetura e pelos trajes) e o outro quando os Namban Jin chegam ao Japão. Mas fico impressionado pelos detalhes. A folha de ouro que serve como fundo, a delicada pintura sobre o papel, o sutil revestimento em laca, tudo é de uma finura e elegância impecáveis.
A narrativa de saída do "ocidente" e chegada ao "oriente" parece-me muito interessante. Mas um dado do segundo biombo deve ser notado: o final da viagem é ambientado numa casa da Companhia de Jesus onde jesuítas estão a esperar pelos novos europeus que chegam. Reflito um pouco e começo a ver como é curioso que o começo e o fim possam ser repetições incansáveis: o igual que quer encontrar o igual. Os biombos que tenho diante de mim foram concebidos entre os anos de 1593 e 1602 supostamente pelo artista japonês Kano Domi. Ora, apenas cinquenta anos após o primeiro contato com os japoneses e os companheiros de Inácio de Loyola já tinham por lá estabelecido uma "casa de conversão" e de acolhimento dos pares, dos iguais. É no mínimo curioso... Mas volto a pensar sobre os povos que ali se ligavam. Abriu-se o mundo como globo e a arte Namban apenas figurativamente separava os espaços com biombos, estes que eram o retrato do círculo-mundo que a partir de então seria inseparável. A ocidentalização do oriente retorna nas duas japonesas que estão ao meu lado com suas máquinas fotográficas a disparar fotos a todo instante. Fico pensando em como será o retorno das duas ao Japão, em como era o retorno dos portugueses do Japão e vejo como o retorno pode ser dolorido.
Estava encarando uma realidade que estava por acontecer (e aconteceu?) a mim mesmo e sabia que os trópicos haviam levado plumas para a cabeça do diabo na cena infernal que na sala de cima acabara de ver. O painel do Inferno, cujo autor é desconhecido, era a insinuação de um fim, mas de um fim infindável: no inferno o sofrimento é eterno. O retorno era do mesmo? Não havia como não pensar em Nietzsche. E eu pensava: será que volto com um cocar que para mim fizeram os Namban Jin? Estava sendo deglutido pela ânsia de prolongamento do tempo sem retorno, estava querendo as plumas que já não eram minhas e que não poderiam jamais ser. Nenhuma pena pôde ser retirada das minhas asas (e a plurisignificação de pena me nauseia). E as japonesas insistem em tirar fotos, e o rangido do assoalho gera angústia, e o gordo que entra destraído com o mapa do museu nas mãos me irrita, e a volta de imagens de meses atrás me persegue, e tudo se acumula... O retorno do mesmo, do igual. Etimologicamente descendente de Gleich (que faz parte da expressão nitzscheana: Ewige Wiederkunft des Gleichen, "Eterno retorno do mesmo") é o termo Leiche, em português, cadáver. A confusão mental neste momento começa a me armar ciladas e o cadavérico (o mesmo que insiste em querer aparecer) passa a fronteira da imaginação do desconhecido autor do painel Inferno e chega a mim como uma proposta nada infernal: a felicidade está antes da morte. O eterno retorno a si, que nunca é um si mesmo, parece que chegou para mim (em toda contradição que possa ter essa sentença). Entrego-me ao efêmero, ao único e instantâneo mundo possível que está nesse eterno retorno a lugar algum... e esqueço e não penso mais e hoje não é mais dia 36 e lençóis e colchas vão se encontrar...

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A velha e os grãos de areia


"Raconter les choses comme elles se sont vraiment produites, c'est tellement moche que ça devrait être interdit. Je t'invente une histoire, c'est la moindre des politesses". Ouvindo essas palavras da boca de um cigano que dizia ser filho do lendário prince des tziganes (e essa ascendência familiar pode muito bem estar ligada a tal modo de contar), ele caiu num sono cujas imagens dos sonhos lhe pareciam muito mais verdadeiras do que qualquer vista que tivera ainda há pouco da cidade em que estava hospedado. Voltou a se concentrar na leitura daquele conto sobre o rio. Não se lembrava quantas vezes já tinha lido e relido aquela história. Um trecho dessa carta (o conto era em forma de carta), em que o remetente acabara de entrar numa igrejinha abandonada de uma vila do interior através de uma porta sobre a qual estava escrito em um painel "Escolha vida futura. Entrada livre", era para ele muito marcante. No conto o personagem (fictício? verdadeiro? esta carta fora enviada?) é acolhido por uma velhinha toda vestida de preto e de gestos e sorrisos enigmáticos. Já dentro do lugar de escolha de vida futura, começa a se questionar sobre o passado. A certa altura o tal remetente diz para sua destinatária que o passado é feito de momentos e que cada um destes é como um minúsculo grão de areia cuja apreensão individual pode ser fácil, mas cuja reunião com os demais grãos é impossível.
O conto continuava, mas agora ele tinha se lançado em um dos grãos. Lembrava da primeira vez em que lera o conto, num escritório iluminado, numa tarde ensolarada de um sábado de janeiro, suado sobre um colchão colocado ao lado da estante dos livros. Agora para ele o que era lembrança também era presente, e achava que isso também estava no conto - mas não sabia mais, afinal havia tanto tempo que o lera. Não podia conferir isso agora, na nova leitura que estava fazendo? Não podia folhear o livro e tentar ver se essa ideia da lembrança presente estava ou não no livro? Porém, talvez apenas estivesse sonhando em ler; talvez seu sonho fosse somente a lembrança do conto; talvez as imagens que acreditava tão verdadeiras pudessem ser apenas uma fagulha mentirosa sobre uma sensação de prazer daquela tarde quente de janeiro; talvez o sonho pudesse ser um conto ou uma carta já escrita ou que desejasse escrever; ou talvez estivesse sendo minimamente educado como o cigano.
Inventava sua história de grãos de areia perdidos e, ao contrário do que pensava o remetente daquela carta-conto, tentava agrupá-los. Via que não era tarefa fácil, porém não desistia. Pensava que escrever a própria história com um pouco de invenção poderia ser uma saída para tentar fazer mais cedo o que sempre deixou para fazer mais tarde. Talvez pudesse ser assim, mas não confiava nessa história; aliás, não confiava em nenhuma história, nem nas que lhe eram contadas nem nas que contava para si próprio. Agora sabia que os grãos de areia eram mesmo únicos e que a rocha da qual provieram, depois de milhões de anos de desgaste provocados pelas águas do mar, era tão somente pré-história e estava antes da sua imaginação. Não havia uma rocha de grãos de areia, haviam os grãos e estes bastavam. O mar já fizera seu trabalho agora cabia a ele e apenas a ele remexer seus momentos, mesmo que lhe custasse o preço da verdade; mesmo que tivesse que concordar forçosamente com o sujeito que escrevera a carta que o inquietava.
Mas lembrou-se novamente do cigano e talvez isso o confortava. Não havia razão para pensar numa rocha remontada por grãos de areia, não havia motivo para tentar uma ideia de verdade sobre seus momentos, não precisava pensar na impossibilidade de reagrupar os momentos passados. Bastava-lhe encarar a partir do seu presente os falseamentos de cada um dos grãos em particular, e a lógica do cigano poderia ser uma arma para as tentações da verdade universal ou individual. Aliás, deixava-se dominar pelo sonho e via que até mesmo tal lógica tinha seu non sense, já que não havia como proibir os contos sobre como as coisas verdadeiramente foram, porque jamais as coisas foram verdadeiramente, porque os momentos na lembrança e contados sempre são sujeitos à bagunça que reina entre o sonho e a vigília, entre a consciência e a inconsciência, entre o engano e a saudade. Agora não lhe restava outra escolha senão adentrar o recinto cuja porta lhe propunha uma escolha livre e, lá dentro, encarar a enigmática velha, que talvez seja quem lhe dê um sorriso como bilhete de entrada para sua própria vida presente.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A gota d'água


Caminhava e via que acabara de cair na lente direita de seus óculos uma gota de chuva. Aquele ponto parecia que lhe entrava corpo adentro. Parecia que o órgão da visão cedia diante de qualquer pressão que sobre ele era feita, e isso o irritava. Não limpou imediatamente, como de costume, mas deixou a gotícula ali, como um espinho na carne. Continuou caminhando com um ponto que desfocava sua vista. Deixou que um pensamento lhe viesse à mente (porque às vezes é assim: um impedimento que livra uma passagem para refletir): não poderia ser o fora de foco um lampejo para novos focos? E, enquanto passava diante do hospital ortopédico (havia fraturado seu passeio?), lembrou-se da noite anterior.
Tinha ido assistir a um concerto para cello no oratório de Santa Cecília. Logo ao entrar na sala, percebera à esquerda o afresco que representava a decapitação de Valeriano, marido da santa que dava nome àquele lugar e com o qual ela, segundo contam, nunca manteve relações carnais em devoção eterna ao Cristo. Notou como a espada do algoz estava meio apagada e pensou que fosse obra do tempo. No entanto, veio depois a saber, ao conversar com um dos agostinianos, que segundo a tradição a espada não conseguira cortar o pescoço da santa pois ela havia respeitado o pacto com o cristo ao não se entregar a nenhuma mão profana. E talvez essa fosse a chave de leitura daquela imagem.
A noite era dedicada às composições de Bach, Boccherini, Lutoslawski, Ligeti e Prokofiev. Depois de uma bela sonata de Bach, executada por dois jovens músicos, um outro violoncelista, também muito jovem, começou a tocar umas variações de Lutoslawski. Ele não entendia de música contemporânea, mas aos primeiros sons agoniantes daquilo que parecia uma agressão ao instrumento, sentiu uma força exterior que lhe jogava para dentro de si. O jovem músico tocava apaixonado, com suspiros que podiam ser escutados por todos naquele pequeno oratório. A música soava abrupta, fragmentada, doentia. Havia um corte nítido nas sensações dos presentes. Depois de um agradabilíssimo bem estar provocado pela sonata de Bach, uma espada descia sobre a cabeça de todos ali. Ele imediatamente se virou para ver o afresco da decaptação e sentiu-se um pouco desconsertado. Era um som que o tirava da atmosfera que há pouco estava em completa sintonia: Bach, imagens do flagelo de uma santa, afrescos, uma crucificação de Francesco "il Francia" no presbitério. A aura de sacralidade tinha caído, ao menos para ele, que, agitado, entrou num turbilhão de pensamentos. Estava desfocado...
Mas agora era a gota d'água que lhe desfocava a visão das ruas, dos pórticos, da gente que espaçosamente se movia. Era um outro momento de dispersão interna, de devaneio em pensamentos, em agonias, em desejos... Um reencontro próximo com próximos, um desencontro distante na saudade, uma despedida estranha de prazer e desprazer, um ocaso de sentimentos, um desabrochar de sentimentos, um suspirar afobado nos jardins da rainha Margheritta, um corvo que com seus gritos desafinados lhe assustava de noite, uma catedral gótica que às vezes lhe roubava os pensamentos, uns lábios rachados pelo frio exagerado, outros lábios carnosos com um sorriso encantado, um desatino que parecia não ter fim... A espada que se apagara no instante mesmo em que iria decapitar Cecília não tinha se apagado para ele, pois entregara-se à profanação, aos delírios impuros da sua memória. Agora era como se o desfecho para a noite estivesse no golpe da espada luminosa do seu tão particular algoz que, atento aos chamados da hora, corta a carne já tão dolorida de sua vítima.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Agora


Deitado em sua cama, ouvia um saxofonista que acabara de conhecer, Joe Henderson, e tentava ritmar-se em mais uma leitura. Fechou os olhos e no escuro em que agora jazia meio adormentado viu círculos de luzes que lhe desferiam uma espécie de golpe de ansiedade. Estava tão calmo, porém, no momento mesmo em que se relaxava comodamente, a sensação oposta lhe pegava no contrapé. Lembrou-se do mar e dos campos de trigo, milho e café por onde, ainda jovem, fazia seus extravagantes exercícios. O aconchego da cama lançara-o de encontro a um espelho (e Mirror, Mirror era a canção que Henderson tocava) diante do qual parou e observou suas jovens rugas, seus poucos cabelos brancos, sua barba por fazer, seus olhos embebidos daqueles brilho meio fosco de quem recém acorda. Mas ele não havia sequer dormido quando viu os círculos de luzes espaventosos que giravam à sua frente como discos voadores. A abdução já tinha sido feita e o espelho agora o atraia ainda mais. Queria reconhecer-se. Era uma vontade absurda que agora o possuía: queria ter a posse sobre a capacidade de se sentir bem ou mal.
Engraçado como sua agitação não era algo que se percebesse em seu corpo como de costume, mas era velada, silenciosa, fatídica, como uma espécie de ressaca de um mar invisível, imaginário. Era talvez sua imaginação que o deixava daquela maneira. Tantas vezes já esteve contente com ela, graças ao anacronismo que lhe proporcionava, mas desta vez se sentia traído pois ela lhe deixava como que falsas pistas (e também não o eram as dos momentos de felicidade?) a incendiar-lhe o sono. Eram aqueles malditos círculos que acabara de ver. Por que teriam eles que se mostrar daquele jeito? Ele não entendia que eram apenas impressões que a luz do seu quarto deixava nas células de seu nervo óptico. Mas numa coisa agora penso eu que ele tinha razão: como simples impressões ópticas são capazes de nos retirar de um estado de espírito levando-nos diretamente para o oposto da sensação anterior? As sensações são assim, um prazer que sucede uma dor, uma angústia que tempera uma alegria. Entretanto, estou falando de sensações ou sentimentos? E ele voltava a pensar, como que a seguir o meu raciocínio, em que medida estariam os estados de espírito presos à mera relação com as coisas, à empiria. Decidiu deixar essas perguntas aos filósofos.
Agora começou a notar o piano do Chick Corea, que havia gravado junto com Henderson. O balanço harmônico daqueles toques colocava-o de novo diante do espelho. Mirando-se agora como um estranho lembrou de uma noite fatídica de inverno e logo pensou em se esquentar com um whisky. Abriu a garrafa e lembrou-se de Vinícius ("Nunca vi amizade nascer em leiteria. O whisky é o melhor amigo do homem. O whisky é cachorro engarrafado"), cujas obras completas da Nova Aguilar estavam sempre em suas mãos quando tinha seus 20 anos. Lembrou-se dos seus primeiros amores e também dos seus primeiros porres de whisky que aconteceram naquela época. Ao primeiro gole, que desceu liso e acariciando sua garganta, sentiu um passado que voltava e novamente via aqueles trigais ao lado dos quais despendia suas energias correndo; sentiu o mar batendo-lhe nas coxas e um pequeno guri que lhe sorria e gritava "tio... tio..."; sentiu o vento sul numa tarde invernal, quando sob um guarda-chuvas, apertado para dois, saía à procura de "ovos moles"; sentiu a voz do velho pai que, enfermo, lhe chamava pedindo ajuda para se mover na cama; sentiu os últimos suspiros incompreensíveis de uma moribunda que lhe pedia socorro; sentiu lágrimas saírem de seus olhos inadvertidamente; sentiu vozes próximas a lhe chamar no meio da noite; sentiu... agora já não tinham mais sentidos os círculos brancos que lhe haviam roubado seu momento de escuridão; agora as perguntas sobre impressões ou sensações pareciam banalidades diante do estupor de sentimentos em que havia se metido; agora era o único momento, era uma trança feita dos tempos pela imaginação; agora era agora...

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Mosaicos


Falando sobre Esposende, em Portugal, Murilo Mendes diz que queria ter tirado uma foto com a vista geral da cidade, mas que num ato falho havia esquecido a Kodak. Durante um devaneio sobre o que teria sido a foto e uma alucinação sobre a espera divina pelo homem, Murilo, no jogo de exame das palavras que lhe era peculiar, dá-se conta de que a foto falhada e o tal devaneio sobre a espera de Deus em meio ao qual escreve são frutos do princípio de movimento da palavra Esposende. Esposende é encabeçada pelo es-quecimento, este que pressupõe a memória, que por sua vez pressupõe o tempo, o qual pode ser subvertido pela imaginação.
Saindo da igreja de San Apollinario in Classe vinha-me à mente uma constelação de tempos nos quais tentava me enfiar à força. Aqueles mosaicos, as cores, a estrutura da igreja que acabara de ver já eram memória. A história da conquista de Odoacro e o fim do Império Romano do Ocidente, Teodorico e o apoio de Bizâncio para a derrubada de Odoacro, toda a arte paleocristã de caráter oriental que acabara de ver, tudo parecia, como para Murilo, uma vista geral não retratada ainda que, ao contrário do mineiro, eu tivesse feito várias fotos. Talvez tenha sido essa a sensação de uma incapacidade minha de estar presente no presente e, ao mesmo tempo, conseguir sentir o peso do passado, de como aquilo tudo atravessou os tempos. Mas do que estava me esquecendo naqueles momentos? Qual era il buco que, no ônibus de volta para Ravenna, proporcionava naquele instante a memória?
Pensava também no meu presente que estava em casa: um barolo que havia me dado como presente. Estava já como que antecipando o futuro do meu presente, como que sentindo o que seria o sabor daquele vinho que agora abro. Meu presente foi aberto e já o sinto na boca, mas ainda estou no ônibus pensando no buraco da minha memória, no meu esquecimento, no meu presente. Deixo o cálice (não o afaste de mim, ó Pai!) e chego em San Apollinario Nuovo. Mais mosaicos e a bela contraposição dos santos: mulheres do lado direito do altar, homens do lado esquerdo. Mas por que os reis magos estão no lado das mulheres? Talvez porque oferecem seus presentes ao menino Jesus que está no colo de Maria. O dia está gelado e a igreja é fria. Tento ver alguns detalhes, mas o mais curioso deles estava no mosaico central do Battistero Neoniano, para o qual a minha memória acaba de me levar. Trata-se da cena do batismo do Cristo no Jordão, na qual o sexo do messias se insinua entre as águas. Acho que não me lembro de ter visto alguma outra imagem em que o Cristo apareça completamente nu. Para mim foi como uma descoberta... Mas, absorto, nem a descoberta do sexo do cristo conseguia fazer-me esquecer a pergunta: o que tinha esquecido? O que neste dia tinha perdido, falhado? Era uma traquinagem dos meus pensamentos não me deixar esquecer a minha percepção de que tinha esquecido algo...
Mergulho no meu presente, que é vermelho e delicioso, mas no meu presente pareço esquecer-me e me perco na homografia. Que presente? O que faltava? O que falhava? Talvez o meu dia tenha sido de muita conversa a sós. Mas por que não tentar falar com os espectros daqueles outros tempos? O mausoléu que Teodorico mandara construir para guardar seu corpo morto está aí, à minha frente, com seu jeito de espaçonave primitiva. Talvez eu tenha tentado conversar com ele; talvez ele tenha tentado me falar algumas coisas, mas esqueci-me de lhe dar ouvidos; talvez a conversa poderia ter sido sobre o presente, ou sobre os presentes, o meu e o dele; talvez ele pudesse ter me contado como com as próprias mãos matou Odoacro naquele banquete; talvez ele, como cristão ariano que era, também poderia ter me falado das suas impressões sobre a arte bizantina e das suas desconfianças em relação à trindade... mas talvez não fosse com ele que eu gostaria de falar.
Tomo agora o meu barolo, que desde 2004 amadurece na garrafa, e vejo que a memória pode ser como uma pílula que desce ao fundo do cálice com o tinto envelhecido. Mergulha e torna-se mais ou menos opaca, mais ou menos feliz, mais ou menos viva. Depois de olhar um dia todo para o oriente, abro de novo as Janelas Verdes e revejo Murilo Mendes no ponto mais ocidental da Europa, Cabo Carvoeiro. Pode ser que ele estivesse olhando para o lado oposto ao que eu olhara hoje, mas parece que ele percebe minha presença e minha angústia na dor do esquecimento e da memória; e é de lá, num ato de amizade, que me fala:
"Tudo é terrível. Tudo é espantalho, espantável. Tudo ameaça precipitar tudo e todos. Tudo consegue retornar ao princípio e ao fim. Tudo é político, elíptico, oblíquo, ambíguo. Tudo é marítimo, árido, rochoso, ventoso. Tudo é tangente ao labirinto da sensação e da consciência. Tudo é desagradável. Tudo é futuro ou pré-histórico."

domingo, 2 de janeiro de 2011

Collegio di Spagna


Abriu um sorriso involuntário naquela manhã de domingo. Estava caminhando, passando pela estrada que ligava Bolonha até Saragoza quando, ao primeiro toque da guitarra de Billy Corgan, em Today, aquele sorriso lhe veio. Olhava para os fundos do Collegio di Spagna, para as pinturas que perto do telhado traziam uns leões de brasão e a máxima latina - que sempre estava presente nos mapas de navegação pré-colombianos - Non plus ultra. Realmente era aquela uma conjuntura para um sorriso espontâneo, feliz, de uma manhã de domingo. A caminhada matinal iria continuar, mas ele "não devia ultrapassar". O que exatamente? Talvez as inscrições no dorso do edifício do Collegio, que teve alguns hóspedes ilustres como Cervantes e Inácio de Loyola - além de Carlos V na ocasião de sua coroação em Bolonha -, queria lhe dizer algo para o dia, somente para o dia: não ultrapassar aquele dia. E talvez a letra simplista de Corgan era algo que iria ressoar todo o domingo, tal qual a máxima latina: Today is the greateast/ Day I've ever known/ Can't live for tomorrow,/ tomorrow's much too long.
Os impedimentos que supostamente paravam os navegadores do velho mundo, as grandes bestas do mar, os fins da Terra, foram destronados numa simples caminhada matinal. O Collegio, onde repousou Carlos V em meados de janeiro e fevereiro de 1530, dera o seu impulso à deposição dos limites. Pensando que no tal Collegio também estiveram hospedados o fundador da Companhia de Jesus e o escritor do Quixote, não lhe restava outra coisa senão esboçar um novo sorriso. A companhia de Inácio seria, como é notório, o elemento chave para a disseminação do cristianismo pelos Novos Mundos (custasse o que custasse, e, como se sabe, custou muito sangue); já as ululantes aventuras do herói ibérico eram para ele como que o motor propulsor para tentar realmente a todo custo esmagar o non plus ultra. Tanto os jesuítas como Dom Quixote não respeitaram a farsa do limite entre real e irreal (limites que também Murilo Mendes, outro estrangeiro que se refugiou na Itália por um tempo, dizia não reconhecer). Os primeiros, no entanto, assim o fizeram com esperança no ultra-mundano, o segundo, por sua vez, por simples descaso com seu juízo, num delírio extremamente real ou irreal - aliás, pouco importa a divisão inexistente.
Mas para ele que caminhava e escutava que hoje era o melhor dos dias toda a confluência de passado, presente e futuro se perdia num sorriso. Era assim que a vida se lhe mostrava, às vezes uma fragrância leve e adocicada, outras tantas um odor ocre como daquelas catacumbas palermitanas, onde tantos ainda esperam pelo outro mundo - com extremo respeito pela máxima latina - vestidos em trajes com os quais gostariam de adentrar o salão de festas da eternidade. Porém, como todo oximoro, ao mesmo tempo doce e amarga, a vida era algo que poderia ser espontânea nos seus paradoxos, como o sorriso da manhã, manhã esta que tinha tudo para ser o início de mais um dia cabisbaixo de solidão. Agora ele ria e, ao contrário do anúncio de quando despertou, estava feliz. O momento era de uma reflexão irreverente, com o sorriso nos cantos da boca: pensava em como o jogo político se armara para a coroação de Carlos V, em como Inácio - que durante parte da vida foi um dos súditos de Carlos - e seus colegas se reuniram em Montmartre para pensar uma ordem religiosa que teria como objetivo se lançar fora do interdito do non plus ultra, em como Cervantes - que nasceu súdito de Carlos - fazia pantomima das aventuras cavalheirescas e se deixava ir para além de qualquer non plus ultra sem precisar sair daquilo que lhe proporcionava sua imaginação. De certo modo, ele agora via como tudo na vida lhe parecia ridículo, como toda a história não era senão um trabalho hercúleo de carregar nas costas os delírios alheios. Respeitar ou não respeitar o non plus ultra não lhe dizia mais nada. Ele sabia que somente deveria estar no seu presente, mesmo que revendo memórias suas e alheias, mesmo que paradoxalmente lhe caísse no colo a tarefa de respeitar e não respeitar os confins da sua existência. Agora ele lia este texto que escrevo sobre ele e pensava, ainda com o sorriso matinal esboçado em sua face suada: tudo é uma grande real ilusão.