domingo, 29 de maio de 2011

Carta



Para a minha destinatária impossível

Querida, escrevo para avisar que cheguei. Onde? Não sei precisamente. Na verdade, acho que cheguei onde sempre chego, para onde sempre vou, de onde sempre venho. Aliás, antes de continuar, peço desculpas pelo possessivo da minha dedicatória, mas não tinha como ser diferente. É comum usarmos possessivos quando temos um carinho, mas com você acho que isso não é possível. Cheguei, mesmo que você pense que eu nunca chego, que estou sempre em andanças. É, talvez você tenha razão, mas sua razão é impedimento para que eu chegue? Acho que não, já que sempre chegamos, mesmo que essa chegada seja um constante movimento. Tampouco busco razões para lhe escrever. Qualquer afirmação que lhe faça não passará de um disfarce, de uma manifestação duplamente falsa e ressentida, de um acreditar-me forte quando sou fraco (não, não quero re-sentir). Deixo o fio das coisas que passaram e chego; talvez seja o fim do caminho, talvez seja o ponto zero do meu labirinto, mas chego alegre e risonho, como não poderia nas suas razões. Não sou Teseu, sou Dionísio! Eu jazia ali há tempos, restava apenas um véu de Teseu sobre minha face, um disfarce que me deixava atônito na minha viagem. E penso que você nunca viu; mas isso porque acho que ainda não nos encontramos (ou será que sim? Não sei...). Ah, não sei se lhe pedi desculpas pelo possessivo que usei quando me dirigi a você, se não o fiz, eis aqui a desculpa. Não pretendo reler o que escrevo aqui, não pretendo revisar, quero que a carta chegue sem que eu me apoie no fio que talvez você mesma tenha me dado. Acho que os encontros aristocráticos, que as armadilhas da viagem me deixaram um pouco transtornados. Você deve saber, mas não sou afeito à vida na coorte. Ah, talvez eu não lhe tenha dito, mas sim, estive com reis e rainhas, em castelos de areia, cartas e cristais. Minhas pupilas, como os pupilos dos gênios que você costumava visitar, viram os recortes precisos e geometricamente alinhados nesses castelos. Mas era impossível ver tudo isso se você fosse possível. Você não é quem você pensa, nem eu sou quem penso ser. Somos uma intermitência no decurso da vida do mundo e nada mais. Talvez nem isso; talvez somos nada. Por que há o ser e não o nada?, já se perguntou um filósofo. Até o Álvaro de Campos uma vez disse que não tinha feito propósito nenhum e que talvez tudo fosse nada. Ah, querida, queria ver seus olhos ausentes na viagem; queria saber se seus punhos cerrados são os mesmos que se abrem diante das minhas vistas cansadas. Mas a viagem foi longa, como você talvez saiba (ou não). É sempre longo o caminho que não se detém nos espaços traçados. Lembro agora que o traço é o corte que separa o mundo do homem do divino. O templo é fruto de um traçado (daí a etimologia comum) e o meu caminhar não se fia a nenhum traçado. Fiar-se também tem a ver com o fio que talvez você tenha me dado. Mas já lhe disse, não sou Teseu, não quero percorrer labirintos; estou apenas na minha viagem. Talvez você é quem deva desfazer a teia não para me dar os fios, mas para dançar as transmutações dessa viagem. Aliás, já lhe disse que acabo de chegar? Pode ser, talvez tenha lhe dito. Mas o caminho é sempre longo demais para eu saber onde cheguei. Sei que sempre vou, venho, volto, parto novamente; tento manter meu movimento contínuo. É, querida, a vida me dá encargos que não carrego. E tantos carregam a mesma coisa, nem que seja em pensamento (e lá na tabacaria penso que há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!), que a vida parece a repetição sempre insólita e imóvel de uma mesma cena. Acho que me alongo nesta carta, querida, mas é a longa travessia da barca que me faz olhar para os dois lados e não me deixa parar onde antes havia parado. Não posso repetir aqui os detalhes das cartas anteriores, já que delas acho que não me lembro (nem me lembro se cheguei a escrevê-las). Cartas são cartas, mas também são mapas e deles agora me livro. Acho que livro esta carta do seu papel de carta quando a coloco aqui, no meio do livro que estou escrevendo. Acho que nunca a enviarei para você.

Um beijo do seu remetente impossível.

p.s.: acho que lhe pedi desculpas pelo possessivo, não?

Imagem: Lorenzo Lotto, Retrato de um homem em seu estúdio. 1527. Venezia. Galleria dell'Accademia.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Anacronismos



Para E. H., com um amor anacrônico.

Nos discursos, em geral de amor, hodiernos muitas vezes a banalidade das anacronias - falsiformes - surge como recurso cortês (como numa pseudo leitura original de Tristão e Isolda). O jogo entre recordações e devires, nessas anacronias, é mascarado como prazer, como uma espécie de fotografia - emoldurada e agora descrita na mensagem romântica - da fulguração do momento ímpar: um peripatético gesto cuja paixão (e aqui falo dela no seu significar mais ambivalente, como pathos) é estoicamente reprimida e reconfigurada (o gozo póstumo) num esquema moral a partir do qual a pseudo-anacronia é construída.
A memória, o simples lembrar - que no discurso pseudo-anacrônico é vista como uma espécie de mágica das sensações -, irrompe fortuitamente em toda mescla de impertinências do presente. Lendo o conto de Macedônio Ferdandez sobre o Sr. Schmitz (homem cuja faculdade de prever o futuro lhe fora tolhida, ou melhor, reduzida ao mínimo - 8 minutos -, por meio de uma cirurgia cerebral) tenho a sensação de que era uma crítica a essas versões do anacronismo - a essas banalizações dos discursos sobre a faculdade mnemônica - que tinha em mente o escritor argentino. O Sr. Schmitz que antes de perder a capacidade de prever (perda que lhe propiciou a morte sorridente numa cadeira elétrica) havia também sofrido uma intervenção que lhe tirara certa dimensão da recordação (o que lhe tinha possibilitado a criação de um outro passado para si: e era justo neste, no passado inventado a posteriori, que havia cometido o crime que lhe conduzira à cadeira elétrica), passou a vida num eterno presente. Tal presente é o presente dos festivais anacrônicos dos discursos erotológicos contemporâneos.
Nas meras lembranças camufladas de anacronia está inscrita uma capacidade de articular tempos diversos? Ao que parece, não. A presença, a existência (poderíamos dizer uma espécie de Dasein), estaria jogada não numa abertura de mundo, mas num simples ambiente (o véu das diferenças temporais permaneceria intocado). O mundo dominado por narrações e ideais erotológicos - como se a única dimensão humana possível fosse a das trocas libidinais, uma espécie de economia de Eros pautada em desejos de querer ter, de anexar algo a si - desconhece assim uma presença a partir da qual as relações inter hominis podem ser constituídas não em trocas, mas em dons - estes também desejos, mas por reconhecimento. De fato, as trocas fundamentalmente se ligam à percepção do passado e na expiação (satisfação) de ações que nele foram cometidas e cujas lembranças lançam suas sombras no presente: daí o re-sentimento, a declaração amorosa saudosista e a vingança (formas, digamos, de tentar reviver um passado, de anacronizá-lo - e é a tal intento que nomeio pseudo-anacronismo, isto é, nada mais do que aquilo para o que Nietzsche já havia chamado a atenção).
Tentar jogar com tempos - declarar ao outro amado a anacronia dos desejos - requer um presente fugidio sim, porém jamais eterno. Não se foge para o eterno como modo de, a partir dele, tentar encontrar no presente um tempo. Do eterno - este inexistente - não se toca o tempo, isto é, não se toca a vida. Tempo e eternidade (oximoro que em Murilo Mendes é posto à flor da pele) não são as duas faces de um suposto todo completo (a alegoria dos homens esferas platônica é exemplar nesse sentido), mas um presente que, podemos dizer, é decomposto, é, por assim dizer, um presente contemporâneo (com-tempos requer um ir e vir, um esquecer e um relembrar: nem Sr. Schmitz, nem Funes). Viver a vida presente na sua mais absoluta imanência, requer um modo de montá-la e, mais do que declarações de amor saudosas (ditas, anacrônicas - como se anacronismo fosse sinônimo de saudades), uma coragem (que no grego ler-se-ia thymòs; ou uma ira, desta vez humana, não divina) patológica (uma paixão pela existência na lembrança ou na previsão que são presentes).
No escuro quarto de Funes havia cheiro de umidade e, certamente, fungos por ali viviam. Tal como estes, a vida obscena no quarto das memórias é relapsa e, na escuridão do passado inesquecido, deixa crescer ranços luminosos que invadem o presente de maneira soturna e sorrateira. Porém, é na forma de lidar com isso que podemos abrir um tempo efetivamente anacrônico: não um iludir-se (e também um iludir outrem) com as imagens imóveis de outrora (seus cheiros, suas sensibilidades), tampouco um fechar-se como uma concha que guarda um segredo de si (aqui, como na máquina mitológica de Jesi, a parede espessa da concha isolaria um mito da vida sobre o qual não se poderia predicar a existência ou não-existência), mas colocar as imagens sobre a mesa, degluti-las com toda a voracidade possível, compondo um tempo da existência aqui, um mundo onde reconhecer a si mesmo e ao outro.
Nas bordas do texto, um telefonema traz as notícias de uma morte. Uma despretensiosa e dedicada vida acaba. Rompem meus pensamentos tempos outros: nos quais as páscoas eram animadas por ovos pintados, em que me esbaldava com refeições matinais que eram verdadeiros banquetes, quando o frio e a umidade eram alento para boas histórias dos tempos em que nem português naquele povoado se falava... Agora sim, lembro, já saudoso, mas não espero com isso nem prever (seja para os próximos 8 minutos) um lugar hipotético onde reencontrar o ente querido, nem rememorar incessantemente, como se pudesse satisfazer a existência no ressentimento. São apenas lembranças que não deixam de me constituir no meu tempo presente e que, portanto, como imagens na minha mesa, monto e remonto seus sentidos para com isso viver - sem passado, nem futuro, muito menos num eterno presente.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Ideia da luz



Acendo a luz de um quarto escuro: de fato, o quarto iluminado não é mais o quarto escuro, que perdi para sempre. No entanto, não se trata do mesmo quarto? Não é, portanto, o quarto escuro o único conteúdo do quarto iluminado? O que não posso mais ter, o que infinitamente recua ao infinito e que, ao mesmo tempo, lança-me para frente é somente uma representação da linguagem, o escuro pressuposto à luz; mas se abandono a tentativa de apreender esse pressuposto, se volto minha atenção para a própria luz, se a recebo - então o que a luz me dá é o mesmo quarto, o escuro não hipotético. O único conteúdo da revelação é o que está fechado em si, o velado - a luz é somente a chegada do escuro a si próprio.

Giorgio Agamben. Idea della luce. in.: Idea della prosa. Macerata: Quodlibet, 2001. p. 109. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

Imagem: Marc Riboud. CHINA. Yunnan province. Bed of MAO TSE-TUNG in cave. 1965.

domingo, 22 de maio de 2011

Pequena nota sobre a luz


Fiat lux! E eis que a cosmogonia judaico-cristã inaugura seu lugar ao sol. À luz estão os corpos expostos, postos e aí os vemos. Mas também escutamos; escutamos o som triste e amargo dos corpos expostos (depostos na existência inaugurada): rangidos de fluidos, movimentos orgânicos, tudo ao ouvido. É necessário timpanizar a filosofia, dizia Derrida. A-luz-cinado timpanizo a luz. O ritmo, que emprega sua força à alucinação - talvez pela ideia dos trezentos milhões de metros por segundo -, está também na música. Crio, timpanizando, uma etimologia vulgar pensando na lux da boca do deus judeu: luxúria. O pecado da noite invade a luz dançando com seus gestos obscenos (gestos que estariam desde sempre fora da cena, fora da luz, portanto). Mas penso e vejo que a obscenidade está na luz. Delírio? Pode ser, mas como lembram os irmãos Campos, tanto Haroldo como Augusto, no delírio há lírio. Enfim, todo o jogo é áureo, reluzente, augusto... e os campos de lírio só mostram sua beleza à luz. Um certo messias uma vez disse, delirando: "Olhai os lírios do campo, como crescem, e não trabalham e nem fiam". Ele que, diz-se, fazia com que cegos voltassem a ver, que dava, portanto, luz a olhos opacos, deixava-se guiar pelas imagens dos lírios e, com lirismos, contava suas imagens parabólicas - líricas imagens... A noite aparece, desaparecem as luzes e delírios e alucinações ganham seu lugar. Luxuriosamente os espectros, plenos de luz, dão-se a ver na escuridão; são como luzes de velas que iluminam o estúdio do pintor, que dão à tela a dimensão do visível, das cores. Os espectros, os fantasmas; os seres noturnos que são luz. É na noite que a faculdade fantasmática - a fantasia, a imaginação, que são nomes vários para a mesma coisa: criar imagens - liberta-se das sombras do dia, dos mandamentos da consciência e as imagens dançam impunemente no palco do teatro cujos espectadores já se foram. Ah, luz... escuto seu movimento de milhões de metros por segundo, sinto seu perfume de lírios e sua força a queimar minha pele... mas nunca te vejo...

Imagem: Mestre das luzes de velas. São Sebastião curado por Irene e pelas mulheres piedosas. Século XVII. Collezioni Comunale d'Arte di Bologna.

sábado, 21 de maio de 2011

Gastronomia mitológica


Incertitude, ô mes délices

Vous et moi nous nous en allons

Comme s’en vont les écrevisses,

A reculons, à reculons.

Apollinaire, Le bestiaire

Chamei de “maquina mitológica” um modelo que se assemelha, pelo menos em aparência, àqueles usuais nas ciências naturais. Esse modelo deve servir para configurar seja os objetos historicamente verificáveis, seja os objetos historicamente hipotéticos que estão sobre a mesa da assim chamada ciência do mito ou da mitologia. Configurar esses objetos significa coloca-los em relação entre si e com e o observador, com intento gnoseológico. Mas, no âmbito dos mitos e da mitologia, quem compõe um modelo arrisca-se sempre a compor ou combinar entre mitos e mitologia materiais mitológicos, isto é, tornar-se mitógrafo mais do que mitólogo. De fato – é um lugar comum, um conceito óbvio, para não dizer uma trivialidade –, os materiais mitológicos que se encontram na história apresentam quase sempre uma tendência vivíssima para fazer-se modelos, imagens exemplares; e toda operação gnoseológica que objetive coloca-los em relação entre si sem destruir-lhes as presunções pode conferir novo ardor a essa tendência. Compostos, combinados juntamente num modelo, os materiais mitológicos cederão a qualidade exemplar a que se arrogam ao próprio modelo que os reúnem todos. Desse modo, o instrumento gnoseológico que o modelo deveria ser, torna-se ele mesmo um material mitológico. A “máquina mitológica” acaba assim mitológica porque reingressa entre os materiais da mitologia, não porque serve para conhece-los.

Em alguns trabalhos precedentes[1] propus o modelo “máquina mitológica” como um mecanismo que produz materiais mitológicos – isto é, que produz objetos historicamente verificáveis –; mecanismo que declara, entretanto (sem que necessariamente nele se deva crer), ocultar no seu interior uma câmara secreta com paredes impenetráveis na qual hospedaria o mito, seu centro motor invisível não verificável na história.

Esse modelo pode ter certa utilidade, permitindo a resolução de problemas epistemológicos que dizem respeito à relação entre o mito e os materiais mitológicos: entre o objeto latente, que não é verificável na história, que não é predicável de existência ou de não-existência histórica (isto é, o mito), e os objetos que chamei de “materiais mitológicos” (isto é, a mitologia ou as mitologias, a respeito das quais encontramos testemunhos na história). O modelo “máquina mitológica” apresenta a vantagem de não colocar a pergunta “o que é o mito?”, ou, ao menos de declarar essa pergunta como mal posta, falso problema, uma vez que não é possível dizer o que é o objeto que se aniquila por si só quando se declara a sua existência ou a sua não-existência.

Dadas essas vantagens, não gostaria de renunciar ao meu modelo. Não podendo, no entanto, esconder que esse modelo é ele mesmo algo mitológico, subitamente renunciei a considera-lo um instrumento frio e lúcido, e me proponho a reduzir, muito ou pouco, a margem de erro na sua aplicação, sublinhando alguns aspectos propriamente gastronômicos do funcionamento da máquina mitológica, vista como receita para satisfazer, no âmbito da ciência, a fome de mitos. Um modelo é sempre algo muito similar a uma receita. E não é possível separar o modelo “máquina mitológica”, ou ainda, as palavras “máquina mitológica” de uma outra cifra lexical. Não se pode pronunciar aquelas palavras sem gerar nos ouvidos de quem escuta um fonema espectral e, talvez, também diante dos olhos de quem escuta, uma espécie de ectoplasma: fonema espectral, ectoplasma, que os alemães chamam “der Hunger nach dem Mythos”, fome de mitos.[2] Evocar esse ectoplasma significa colocar-se no ponto de fuga em que aquela que foi chamada a ciência do mito ou a ciência da mitologia aniquila-se por si só.

Quando li pela primeira vez esse ensaio, em francês, tive que agradecer à língua francesa, já que a sua fonética tornava-se veículo de uma apreciação preliminar do ectoplasma, no instante em que traduzia para o francês o nome do ectoplasma, “der hunger nach dem Mythos”. Em francês: “la faim de mythes”. E não somente a minha duvidosa pronúncia do francês fez assim com que a “faim” se identificasse com a “fin”, a “fome” com o “fim”, “Hunger” com “Ende”. Ponto de fuga, certamente, mas também ponto de apreciação histórico de uma relação com o mito que imagino como uma busca, não somente capaz de destruir, mas obrigada a destruir o seu objeto: como uma cruzada que não poderá conquistar o seu Santo Sepulcro sem o ter destruído de antemão. O modelo “máquina mitológica” é, antes de tudo, a máquina de guerra que conquista enquanto destrói, o artifício que conhece o seu objetivo aniquilando-o. Ter fome de mitos quer dizer preparar-se para comer os mitos quando estes deporem as suas armaduras. Já que, de outro modo, não são comíveis. Trata-se de descascar os camarões, já cozidos no fogo da busca e tão logo tenham assumido durante o cozimento a cor vermelha que é o objeto da nossa fome. Essa cor vermelha é a cor daquilo que está morto e, morrendo, assumiu a cor daquilo que é vivo, maduro, agradavelmente comestível. A finalidade da moderna ciência do mito ou da mitologia, a finalidade dos mitólogos modernos, é esta: ter sobre a mesa algo muito apetitoso que, se hesitação, dir-se-ia vivo mas que está morto e que, quando estava vivo, não possuía uma cor tão agradável. A cor da vida não é uma prerrogativa muito freqüente do que está vivo. O que está vivo frequentemente não é muito comestível para nós e a cor da vida é, aos nossos olhos, a cor do que comemos com viva satisfação.

O modelo “máquina mitológica” – já disse – é uma receita útil para tornar os materiais mitológicos agradavelmente mortos, pulverizados pela cor da vida, esplendidamente comestíveis. É preciso acrescentar, de fato, que se o que está vivo frequentemente não é muito comestível para nós, também o que está morto e aparece exatamente como morto não é muito apetitoso. A “máquina mitológica” é a receita para preparar materiais mitológicos a fim de que apareçam sobre a mesa científica bem mortos, mas também muito apetitosos. E para sublinhar os seus aspectos e as suas virtudes gastronômicas permitam-me salientar que há uma coincidência quase perfeita entre as regras que compõem o modelo “máquina mitológica” e aquelas que compõem um outro modelo mais célebre: o trecho exemplar do Guide culinaire de A. Escoffier a propósito da preparação dos camarões.[3] Eis aqui o texto, dotado de todas as qualidades que dele deveriam fazer um texte de chevet[4] [livro de cabeceira] dos mitólogos: “Quel que soit leur apprêt, les écrevisses doivent toujours être bien lavées et châtrées...” [“Independentemente de sua preparação, as lagostas devem ser sempre bem lavadas e castradas...”] – Permitam-me aqui tirar a palavra do mestre da gastronomia por um instante para salientar a exatidão do seu ensinamento, não somente para esses crustáceos, mas em particular para os mitos. Sobre a mesa do laboratório da ciência do mito, os mitos, qualquer que seja a “apprêt” que se lhes reserva, “devem sempre ser bem lavados e castrados”. Mas, ainda que não seja muito difícil compreender o que significa “lavar”, “bem lavar” os mitos, isto é, submete-los à água do laboratório, libera-los assim da lama das suas hipóstases históricas, com reserva naturalmente de colocar mais tarde aquela terra em análise filológica –, dito tudo isso, permanece a dúvida sobre o que significa “castrar” os mitos. O mitólogo poderia avançar hipóteses pouco fundadas. Mas há uma explicação precisa encontrada na explicação de Escoffier: castrar os mitos quer dizer “les débarrasser du boyau intestinal dont l’extremité se trouve sous le milieu de la queue, ce qui se fait en saisissant cette extrémité avec la pointe d’un petit couteau et en le retirant doucement pour ne pas le briser” [“livra-los do tubo intestinal cuja extremidade se encontra no meio da cauda, isso que se faz apertando essa extremidade com a ponta de uma pequena faca e puxando-a delicadamente para não o quebrar”]. Não somente isso. Há coisas melhores, muito mais esprit de finesse, muito mais savoir faire metodológico nas palavras do mestre Escoffier. Ele especifica, de fato, que “Laissé dans les mythes, ce boyau risquerait, principalement au moment du frai, de leur donner de l’amertume” [“Deixado nos mitos, esse tubo arriscaria, principalmente nas épocas de desova, a deixa-los amargos”]. E é notório que os mitos estão quase permanentemente “au moment du frai”. Mestre Escoffier enuncia ainda uma outra regra áurea da metodologia da ciência do mito. “L’opération de châtrer les mythes”, diz, “ne doit pas se faire qu’au dernier moment, et les mythes doivent être mis immédiatement dans la cuisson, sinon leur eau s’échappe par l’orifice de cette blessure, et ils se vident” [“A operação de castrar os mitos só deve ser feita no último momento e os mitos devem ser colocados imediatamente no cozimento, senão sua água escapa pelo orifício dessa ferida e eles se esvaziam”].

Evidentemente, no entanto, as palavras de mestre Escoffier me deixaram de tal modo hipnotizado com a sua precisão, com a exatidão das regras metodológicas que propõem, que me fizeram cair num erro aos meus olhos muito grave. A competência desse mestre me fascinou tanto ao ponto de me fazer esquecer a minha norma metodológica fundamental: eu disse “mitos” onde deveria ter dito “materiais mitológicos”. Edifiquei conscientemente os muros que sempre deveria levantar entre o mito, não verificável na história e cuja existência ou não existência não é predicável, e os materiais mitológicos, verificáveis na história, materiais cuja existência é indubitável. E disse – é um lapso talvez eloqüente e revelador e de certo modo ambíguo –, disse que castrar os mitos, não os materiais mitológicos, quer dizer isso e aquilo etc.. Muito provavelmente isso significa que a qualidade mitológica da “maquina mitológica” assumiu e produziu essa ambigüidade. Impossível fugir por muito tempo. Os escrúpulos mais louváveis, a inquietude despertada pelo máximo sombreamento de consciência epistemológica, submergiram pela nossa gulodice. O rigor dura apenas uma manhã.

A guisa de exemplo de advertência, gostaria de mostrar um só caso da aplicação da “máquina mitológica” exatamente no âmbito de um mito da máquina.

Em um recente ensaio, que integra o seu livro sobre Mito da máquina, R. Tessari[5] sugere reconhecer no aforismo do Manifesto futurista de 1909, “Um automóvel de corrida é mais belo do que a Nike di Samotracia”, a primeira linha “d’un surprenant roman d’amour: le conte courtois d’un héros moderne fils de la Déesse-Usine, qui rend hommage au culte d’une nouvelle Dame [o automóvel] et compose pour elle des madrigaux passionnés” [“de um surpreendente romance de amor; o conto cortês de um herói moderno filho da Deusa-Indústria, que homenageia o culto de uma nova Dama [o automóvel] e compõe para ela madrigais apaixonados”]. O amor do poeta futurista e da máquina (automóvel[6]), os quais “semblent s’enfuir vers la forêt enchantée de l’Art et du Mythe”, [“parecem fugir para a floresta encantada da Arte e do Mito”] seria um amor culpado de lesa vassalagem e adúltero, nos confrontos de um sistema econômico soberano do poeta e esposo legítimo da máquina. Um sistema econômico – rei Marco, uma máquina-Isolda, um poeta futurista-Tristão, para seguir a interpretação de Tessari. Ele nota, no entanto, que a veneração dos futuristas pela máquina, ao invés de romper com uma tradição literária secular, recai “dans le plus caractéristique des lieus communs de l’erotisme occidental” [“no mais característico dos lugares comuns do erotismo ocidental”]: o mito tristânico. “Marinetti et ses disciples ne sont pas les apôtres d’une dimension humaine révolutionnaire, mais les épigones d’une culture bourgeoise européenne qui, en affirmant de préférence sous forme de mythologie érotique ses différents niveaux de conscience des contradictions historiques, joue constamment ses chances sur l’antithèse entre Eros et Ágape, passion manichéenne et mariage catholique...” [“Marinetti e seus discípulos não são os apóstolos de uma dimensão humana revolucionária, mas os seguidores de uma cultura burguesa europeia que, afirmando preferencialmente sob forma de mitologia erótica seus diferentes níveis de consciência das contradições históricas, jogam constantemente sua sorte sobre a antítese entre Eros e Ágape, paixão maniqueísta e casamento católico...”]. Quando se torna Isolda a máquina (automóvel) aparentemente salva o homem moderno do inferno econômico; mas, na realidade, todas as virtudes das quais a máquina é depositária no romance cortês futurista coincidem com “les valeurs les plus chères à chaque système capitaliste” [“os valores mais caros a todo sistema capitalista”]. Esses materiais mitológicos podem somente enganar, fingir uma separação entre máquina e sistema econômico: “l’histoire et le mythe (offensés, l’une per l’outrance de l’idéalisme, l’autre par la grossière destitution de l’idole féminine) se vengent des futuristes en décevant toutes leurs velléités révolutionnaires et en les entrainant dans les plus obscures implications de la logique industrielle bourgeoise et de l’archetype tristanique” [“a história e o mito (ofendidos, um pelo excesso do idealismo, o outro pela grosseira destituição do ídolo feminino) se vingam dos futuristas decepcionando todos seus impulsos revolucionários e levando-os às mais obscuras implicações da lógica industrial burguesa e do arquétipo tristânico”]. Ter-se-ia, assim, não apenas os desabrochamentos do ânimo “vulgairement ‘tristanique’” do pequeno-burguês moderno (sentimentalismo e “luxúria” frustrados) no culto do automóvel ou da motocicleta, mas também os florescimentos daquelas tonalidades de maniqueísmo e de religião da morte (horror pela mulher símbolo da terra/natureza e sua substituição pela máquina (automóvel); sofrimento pelo ciclo de nascimento e morte que aprisiona o “espírito”; culto das armas e da guerra) que Tessari, com base em Denis de Rougemont, declara presentes nas relações entre o mito tristânico e as heresias da Idade Média.

Mas, para quem quer recorrer ao modelo “máquina mitológica”, esse autodenominado maniqueísmo dos materiais mitológicos da idade média e do futurismo muda imediatamente de fisionomia. Se se considera a gênese do romance cortês futurista e das interpretações, muito duvidosas, de Denis de Rougemont como produções da máquina mitológica, as paredes impenetráveis que ocultariam o motor imóvel da máquina surgem e nos obrigam a olhar de perto os produtos, o produtor, não os movimentos mais misteriosos e duvidosos do suposto produtor remoto, mas aqueles explícitos do produtor imediato. Não o mito ou o arquétipo, não predicável de existência nem de não-existência, que se pode tranquilamente colocar entre parênteses ou identificar com o vazio, mas as articulações operativas da máquina mitológica. Os elementos dos assim chamados mitos do amor da Idade Média, que induziram Denis de Rougemont a ligar aqueles “mitos” com o maniqueísmo, são os produtos de uma cozinha não medieval, mas medievalizante [medievaleggiante]. São alimentos preparados sobre a mesa do laboratório filológico do século XIX, segundo a receita da máquina mitológica. As páginas de um grande chef como Gaston Paris nos permitem estudar in flagranti essas manipulações. Gaston Paris e os seus ilustres colegas, compreendidos aqueles especialmente gulosos por “Realien”, degustaram os textos e, aos mitos, deram uma interpretação muito saborosa segundo a receita burguesa e maniqueísta, já que burguesa. Mergulharam os materiais mitológicos no caldo fervente que tinham preparado e ficaram fascinados diante da cor rosa assumida por aqueles camarões. Eis as palavras de Gaston Paris que são a receita perfeita e, ao mesmo tempo, os seus resultados: “Cette épopée celtique, morte elle-même en créant sa posterité, n’a pas seulement charmé le moyen age: la poésie moderne est encore imprégnée de son esprit et lui doit deux de ses éléments essentiels: l’avventure et l’amour, c’est-à-dire la recherche du bonheur sous les deux formes de la supériorité individuelle et de la possession absolue d’un autre être”[7] [Essa epopeia celta, que morre ao criar ela mesma sua posteridade, não encantou somente a idade média: a poesia moderna ainda está impregnada de seu espírito e lhe deve dois de seus elementos essenciais: a aventura e o amor, isto é, a busca pela felicidade sob as duas formas da superioridade individual e da possessão absoluta por ou outro ser”]. Note-se bem: “la supériorité individuelle”, “la possession absolue”. A Idade Média está muito distante; próximo, o burguês do século XIX. E próximo está o perito em gastronomia. Gaston Paris disse: “Cette épopée celtique, morte elle-même en créant sa posterité”. Eu diria: esses materiais mitológicos, bem lavados, castrados e mergulhados imediatamente na água fervente no fogão: eles que, claro, não estavam vivos, mas que tinha ainda cor de argila e agora, imersos no ardor da busca, teriam assumido a cor bela e apetitosa da vida. Ou, pelo menos, da vida comestível; já que não se trata sempre e nem mesmo da cor vermelha da vida ainda que presumida: várias vezes trata-se apenas do rosa da “possession absolue d’un autre être” no nível dos feuilletons que não apreciam brutalidade canibal. A máquina mitológica funciona impertubável nos mais insípidos cabinets séparés e nas trevas da Histoire d’O. São covas e salas, mansões e casas senhoris. Há, no centro da máquina mitológica, um quarto secreto: o que se encontra nos sonhos e que muito provavelmente está vazio. Os garçons que, sem trégua, vêm e vão de lá com as bandejas cheias, fingem não ser em outra coisa que garçons, ainda que sejam verossimilmente cozinheiros. E quando nós dizemos “os mitos” ao invés de “os materiais mitológicos” fingimos acreditar em tal engano.

Poder-se-ia agora perguntar se a máquina mitológica pode verdadeiramente ser útil, dado que nos impõe um engano: engano no qual fingimos acreditar. Ainda responderei: sim, pode ser útil como modelo gnoseológico, uma vez que transpõe para o nível do seu engano mecânico, do seu engano funcional, normativo da sua existência, o engano que K. Kerényi chamava de “tecnicização do mito”. Assim fazendo, a máquina mitológica coloca nas nossas mãos, ao mesmo tempo, um modelo gnoseológico e um espelho do nosso engano. Ambigüidade, claro. Mas depois dessa forçada ambientação do leitor na linguagem da gastronomia, será fácil lembra-lo de que em francês “ambigu” [“ambíguo”] quer dizer também “repas froid, ou l’on sert à la fois tous les mets et les desserts” (Larousse) [“refeição fria na qual se serve ao mesmo tempo todos os pratos e sobremesas”], refeição na qual “les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (Baudelaire) [“os perfumes, as cores e os sons se correspondem”]. Assim, o leitor perdoará essa irrupção do Ambigu cômico num âmbito científico, o qual é usualmente distante da comédia.


[1] La festa e la macchina mitológica. In.: Materiali Mitologici. pp. 81-120; Il Mito. Milano: Isedi, 1973.

[2] Cfr. T. Ziolkowski. Der Hunger nach dem Mythos. Zur seelischen Gastronomie der Deutschen in den Zwanziger Jahren. In.: Die sogenannten Zwanziger Jahre. Organização de R. Grimm e J. Hermand. Bad Homburg-Berlin-Zürich: Gehlen-Verlag, 1970, pp. 270 ss.

[3] A. Escoffier, com a colaboração de Ph. Gilbert e E. Fetu. Le guide culinaire. Aide-mémoire de cuisine pratique. Paris: Flammarion, 1921. p. 372.

[4] N. Trad.: Optei por traduzir os vários trechos que o autor cita em francês, porém, também mantendo o original no corpo do texto.

[5] R. Tessari. Il mito della macchina. Letteratura e industria nel primo Novecento italiano. Milano: Mursia, 1973 (em particular as pp. 211 ss., 222 ss., 264 ss.); Id. Le futurisme et la machine: un mythe d’amour tristanique, in “Europe”, ano VIII (1975), n. 551 (Les futurismes), pp. 48-53.

[6] N. Trad.: o palavra macchina também significa carro, automóvel.

[7] G. Paris. Tristan et Iseut, publicado na “Revue de Paris” (1894) e depois retomado em Poèmes et Légendes du Moyen-Age. Paris: Société d’Edition Artistique s.d. (1900), p. 120.


Furio Jesi. Gastronomia Mitologica. In.: Materiali Mitologici. Mito e antropologia nella cultura mitteleuropea. Nuova edizione a cura di Andrea Cavalletti. Torino: Einaudi, 2001. pp. 174-182. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Joseph Koudelka. República Tcheca, 2000.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

As lágrimas de Odisseu



Penso num verso muitas vezes repetido da Odisséia: “E contemplava em lágrimas o grande deserto do mar” (Odisséia V, 84). Traduzido literalmente, o verso diz: “Para o mar, o infecundo, olhando, enquanto as lágrimas lhe escorriam”. Homero opera aqui uma subtração de líquidos. A umidade menor, o véu de lágrimas, é cercada, reabsorvida sumariamente – para não dizer sorvida – pela umidade maior, o mar salgado. O próprio mar não se manifesta, mas adivinhamos o que ele diria, se pudesse falar: chora homenzinho, chora até cansar; logo mais sorverei todo este grão de umidade que te faz quem és. Entre os incontáveis momentos monológicos que fazem avançar a epopéia, este é um dos mais solitários e comoventes. (...) Ela (a formulação) é a rima secreta e recorrente de todas as aventuras que a Odisséia relata. Pois estas não são mais que as tribulações de um homem a quem Posseidon aplica sempre uma nova peça: uma parábola da vida, com muitos momentos de comédia, em torno das frustrações e dos revezes do herói desafortunado. Mas é a inclemência da natureza, na figura do mar sem fim – à primeira vista, mero instrumento dos deuses, mas na verdade um elemento de ânimo próprio -, que confere traços trágicos ao relato das viagens de Odisseu. Pois não há astúcia que o livre do fato de que o homem também é feito de água, de um agregado de líquidos que põem seu corpo à mercê dos ciclos naturais. São as seivas vitais que desestabilizam sua psique e perturbam a economia dos sentimentos – sangue, suor e lágrimas, para dizê-lo com concisão bíblica. Por isso mesmo, a comparação entre o mar e o deserto traduz o essencial: de um lado e de outro, o elemento infecundo. Decisiva, aqui, é a desproporção: de um lado o oceano, a grande reserva de cloreto de sódio do planeta; de outro, os borrifos de água e de sal nos olhos de um homem solitário, que chora à beira mar.







GRÜNBEIN, Durs. As lágrimas de Odisseu. (Trad. Samuel Titan Jr.) In: Serrote. n. 5. São Paulo: IMS, julho de 2010. pp. 113-114. Imagem: Nuno Ramos.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sonhos e anunciações



Em um jantar próximo ao Campo Zan Degolà, em Veneza, certa vez ouvi de um filósofo que um dos lugares imperdíveis de se visitar era a Igreja de San Salvador. Uma tradição lendária conta que as origens dessa igreja remontam ao século VII, e que a história de sua construção estaria ligada a um sonho do então bispo São Magno. De acordo com essa tradição, o próprio Cristo teria aparecido no sonho do bispo para indicar-lhe o lugar preciso da edificação de uma igreja que deveria ser dedicada a ele, o salvador do Mundo. Ainda que o meu companheiro de jantar sempre dissesse que as igrejas mais bonitas do mundo estavam em Veneza, a indicação de San Salvador não se deu especificamente pela sua beleza como um todo (digo que não era das mais lindas da cidade), mas pela beleza específica de uma tela que lá se encontra: a Annunciazione, de Tiziano.
Num fim de tarde qualquer, talvez alguns dias depois do jantar, fui visitar a igreja. Entrei, corri os olhos pela nave central, vi vários fiéis (sempre idosos) que se preparavam para a missa e, discretamente, procurei pelo quadro. Quando dele me aproximei, assustei-me com as dimensões: era muito maior do que eu imaginava. Parei diante daquele que, realmente, era um dos mais belos Tiziano que havia visto e fiquei procurando pela assinatura, uma vez que, no mesmo jantar, o filósofo me contara algo interessante sobre o quadro. Dissera que quando Tiziano - à época da pintura da Annuciazione já contava uns bons 75 anos - terminou esse quadro olhou para ele e, ao invés de assiná-lo com o seu tradicional "Titianvs fecit" (feito por Tiziano), pôs fim à obra com um "Titianvs fecit fecit". O reforço do fazer na assinatura teria se dado justamente porque o pintor acabara por considerar aquela como a sua obra prima. É certo que o Tiziano da Annunciazione já não se enquadrava nos esquemas pictórios de seus contemporâneos (e algumas teses são levantadas: a senilidade e as ideias religiosas que não estavam em pleno consenso com as propostas da Igreja e da contrarreforma em curso). Não são mais as imagens plenas de um cromatismo vibrante e com delineamentos precisos, mas em tonalidades de ocre, um pouco obscuras e com traços rápidos e imprecisos. E é interessante que no período final de sua vida ele tenha tido a inspiração para decidir qual a sua obra prima.
A despeito da beleza do quadro, e ainda diante dele, comecei a pensar em toda a configuração mítico-narrativa tanto da história bíblica quanto daquela que diz respeito à fundação da igreja. Ali, dentro de San Salvador, eu me indagava sobre as relações que podia fazer com as imagens que foram criadas a partir do episódio bíblico da anunciação: o trecho do evangelho de Lucas em que o anjo Gabriel é enviado por Deus para anunciar a Maria que ela iria dar à luz o Filho do Altíssimo. O espanto com o qual Maria diz que isso não seria possível, pois não conhecia homem, é rebatido pelo anjo com a afirmação de que o Espírito Santo viria sobre ela e lhe cobriria com sua sombra, e daí a filiação divina do Cristo. Lucas, no entanto - e essa omissão me deixa curioso -, não fala nada sobre aceitação do esposo da virgem, José. É no evangelho de Mateus que lemos como José, ao saber da gravidez da esposa com quem ainda não havia tido relações sexuais, resolve não denunciá-la publicamente (fato que a ela acarretaria a pena de morte), mas repudiá-la em segredo até decidir que atitude tomar. Nesse período, o anjo do senhor teria aparecido para José durante um sonho para lhe contar a verdadeira história da gravidez e também o projeto divino que estava em questão: o nascimento do filho de Deus concebido pelo Espírito Santo. José, portanto, de algum modo interpretou seu sonho de um modo a agir em favor do nascimento do salvador do mundo; e, séculos mais tarde, também o bispo S. Magno interpretaria seu sonho, com o mesmo salvador do mundo, fazendo algo, isto é, construindo a igreja onde me encontrava naquele momento. De outro modo, Joseph fecit, Magnum fecit e Titianus fecit fecit. Diante de um sonho, era preciso fazer algo.
Hoje, já alguns anos depois desses eventos, comecei a ler um texto muito interessante que me fez imediatamente pensar em toda essa história (tanto nas tradições de narrativas oníricas, quanto nas minhas passagens por Veneza). Trata-se do primeiro escrito publicado de Michel Foucault: a introdução ao livro "Sonho e Existência", do psiquiatra suiço Ludwig Binswanger. O jovem filósofo, que à época, 1954, contava 28 anos, começa o prefácio alegando que, ao contrário do que acontece com prefácios, não pretende traçar o caminho feito por Binswanger no livro, mas apresentar uma forma de análise que dê condições para entender o que estava em jogo no livro que apresentava. O jovem Foucault começa seu texto a partir de uma coincidência - o mesmo ano de publicação, 1900, de duas fontes importantes de Binswanger: A interpretação dos sonhos, de Freud, e as Investigações fenomenológicas, de Husserl - e, então, procede à confecção do texto que pretende situar a obra do psiquiatra bem como exibir ideias originais, como que no papel de jovem pesquisador que pretende expor-se ao público.
Talvez um ponto chave do texto de Foucault seja aquele no qual bota em questão o método de interpretação freudiano dos sonhos. Ele afirma que em Freud "a linguagem do sonho é analisada somente na sua função semântica; a análise freudiana deixa na sombra sua estrutura morfológica e sintática. A distância entre a significação e a imagem apenas é preenchida na interpretação analítica por um excedente de sentido; a imagem na sua plenitude é determinada por sobredeterminação. A dimensão propriamente imaginativa da expressão significativa é inteiramente omitida." Isto é, Freud teria desconsiderado as leis próprias do mundo imaginário e suas estruturas específicas, já que imagem (onírica, nesse caso) é mais do que o cumprimento imediato do sentido, e as leis de sua formação não são exatamente significativas, como as leis do mundo não são decretos de uma vontade (uma vontade divina). Ou seja, com Freud uma verdade anteciparia a significação daquela imagem da seguinte maneira: sobre o divã as imagens oníricas do paciente irão esbarrar na sua interpretação - na palavra - que exibiria sempre uma espécie de restauração de um estado arcaico anterior, de um desejo originário (cristalizado no fantasma do trauma originário - o qual, na leitura que Foucault faz de Freud, não seria uma emanação das imagens analisadas, mas um elemento exterior a elas e que para elas conferiria significação). Diz Foucault: "Freud fez habitar o mundo do imaginário com o Desejo assim como a metafísica clássica tinha feito habitar o mundo da física pelo querer e pelo entendimento divinos: teologia das significações na qual a verdade se antecipa em relação à formulação e a constitui inteiramente." Em Freud, portanto, a análise dos sonhos seria pautada por um critério externo ao movimento do sonho, de modo a nunca conseguir dar à imaginação do sujeito (paciente) a possibilidade de desmantelamento dessa imagem originária, desse Desejo que se realizaria no sonho. Em outras palavras, a constante restauração dessa imagem impediria o movimento próprio aos sonhos e à capacidade do próprio sujeito, isto é, o acesso a uma imaginação em movimento, que não se fixa numa única e verdadeira imagem, mas que abre ao sujeito a capacidade criativa (melhor dizendo: o que eu, sujeito, posso fazer com minha imaginação? Como posso desmontar e reconstruir essa imagem de maneira a sentir-me possuidor de liberdade?).
E qual a razão dessas críticas de Foucault a Freud terem me remetido às minhas memórias de Veneza? Por que, hoje, quase 5 anos depois, parei para pensar em toda a trama desses eventos? Cogitei várias respostas: talvez tenha sido porque, ao ler Foucault, comecei a me indagar sobre as minhas possibilidades imaginativas (sobre de que modo, marcados como estamos pelos estereótipos psicanalíticos depois de mais de 100 anos, parece que nos tornamos incapazes de compreender nossas imagens de uma outra maneira que não aquela atrelada à simbologia da fixidez, à cristalização de fantasmas); talvez, como bom ex-religioso, por ter, diante dessas lembranças, refletido sobre a questão dos sonhos daqueles personagens histórico-míticos: isto é, como os sonhos de S. Magno e José (e, talvez, até mesmo o Tiziano tenha se deixado levar pelas imagens oníricas para compor de um modo novo no fim da vida - e há quem diga que o último Tiziano já é precursor de certo expressionismo ao modo Kokoschka), mais do que os colocarem defronte aos seus fantasmas originários, levaram-nos à prática de uma ação decisiva para suas vidas, a um ato criativo (claro que não perco de vista a exemplaridade mitológica dessas narrativas bíblicas ou episcopais); talvez, também, tenha sido apenas ao ler na introdução de Foucault o nome Ludwig Binswanger, cujas iniciais marcavam as bases dos grandes talheres de prata com os quais comíamos naquele jantar em Veneza. De fato, a anfitriã da noite havia acabado de desenvolver um trabalho de história da psiquiatria e como um dos centros do seu trabalho estava a obra de Binswanger. Contou-me ela que, certa vez, numa visita que fizera à casa de Binswanger em Kreuzlingen, ganhara de presente de um descendente do médico aquele jogo de talheres. Ora, para mim era curioso pensar que estava comendo em talheres com os quais certamente tinham comido Binswanger e seus amigos - dentre os quais o próprio Freud, Martin Heidegger, Martin Buber ou mesmo um de seus ricos pacientes, Aby Warburg.
Em meio a tantas referências, a tantos acasos, não tinha como me furtar a um ligeiro sorriso de satisfação: eu, um jovem interiorano, comendo, como num sonho, com talheres que já estiveram em bocas de personalidades que marcaram o século XX. Mas, como a vida, isso era apenas mais um acaso. O outro convidado daquele jantar, o filósofo, talvez também acabou pensando em tantos acasos que aconteciam naquele instante, pois também ele não sabia que o jogo de talheres pertencera a Binswanger e, de fato, toda sua produção intelectual tinha como referentes, em maior ou menor medida, Freud, Heidegger, Warburg e Foucault. Se fantasmas poderiam existir, na minha imaginação estavam todos ali, naquele jantar próximo ao Campo Zan Degolà.
Em todo esse contexto a questão imaginativa da interpretação dos sonhos à qual Foucault faz menção está plenamente em curso nessas minhas divagações sobre jantares, igrejas, sonhos, pinturas e ideias. Como colocar tudo em movimento, como tentar jogar com outros tempos e, sobretudo, com as imagens que preenchem a memória? Tudo é uma questão de como montar essas imagens e reconfigurá-las numa nova constelação de sentidos para o presente (e nada mais warburguiano do que isso).
Acho que o modo apaixonado com o qual o filósofo me falava da Annunciazione de Tiziano pode ter suscitado em mim, ainda em San Salvador, esses pensamentos sobre como os sonhos podem fazer mover as paixões dos homens. Trazer aqui, à consciência, toda trama desses acontecimentos passados não me faz compreendê-los mais ou melhor; de fato, sinto que diante dessas minhas imagens (esses desejos realizados em sonho ou numa viagem), como de qualquer outra imagem (uma obra de arte renascentista ou uma fotografia contemporânea), não posso permanecer parado, como que a fixá-las nos quadros de uma memória inerte, mas que me inquieto, que tento achar outras formas de reagrupá-las, outros critérios a partir dos quais analisá-las. Coloco-me na posição em que o talvez ganhe força, em que as relações - inventadas, criadas - possam ser sempre possíveis, em que eu possa encarar minhas imagens não para as deixar reinar - numa espécie de "é impossível de ser diferente" -, mas para destroná-las e com elas brincar, tal como uma criança o faz com qualquer objeto, numa história que se reinventa a cada instante.

Imagem: Tiziano Vecellio. Annunciazione. Igreja de San Salvador, Veneza. apr. 1560-1565.

domingo, 15 de maio de 2011

Para além de Édipo e Narciso: notas sobre a psicanálise

Peter Sloterdijk

Em correspondência com sua aproximação erótico-dinâmica, a psicanálise trouxe à luz muito daquele ódio que forma a obscura inversão do amor. Ela chega a mostrar como odiar seja sujeito a leis similares àquelas do amar e que, em ambos, projeções e coações repetidas dirigem o comando. Por longo tempo a psicanálise permaneceu muda diante da ira que surge da busca por sucesso, da consideração, da auto-estima e das suas repercussões. A teoria do narcisismo é o sintoma mais evidente dessa ignorância voluntária que seguiu o afirmar-se do paradigma analítico. Representa o segundo desdobramento da doutrina psicanalítica com o qual se deveria eliminar as imprecisões do teorema edípico. É claro que a teoria do narcisismo coloca significativamente o seu interesse na auto-afirmação do homem, mas na esfera de influência deveria incluir, contra toda plausibilidade, um segundo modelo erótico. Assume-se o cansaço inútil de deduzir do auto-erotismo e das suas divisões patogênicas a obstinada riqueza dos fenômenos timóticos. Certamente a psicanálise formula um respeitável programa de educação para a psique, com o objetivo de transformar o estado narcisista em um amor maduro pelo objeto. Nunca lhe vem em mente, no entanto, conceber uma via educativa análoga para a produção de adultos orgulhosos, de guerreiros e de portadores de ambições. Para os psicanalistas a palavra "orgulho" é, no máximo, somente uma recorrência vazia no léxico dos neuróticos. Com os exercícios para desaprender, os quais se chamam formação, os psicanalistas perderam o acesso àquilo que a palavra designa.
Todavia, Narciso não está à altura de ajudar Édipo. Escolher como modelos essas pessoas míticas nos revela mais de quem os escolheu do que da natureza do objeto. Como uma criança com traços que mostram fraqueza mental e que não pode distinguir entre si e a sua imagem refletida poderia compensar a fraqueza de um homem que conhece o pai somente no momento em que o mata e, num erro, gera os seus descendentes com a própria mãe? Ambos são apaixonados que encetaram caminhos enlameados, ambos vagueiam tanto na dependência erótica que não seria simples decidir qual dos dois seria o mais miserável. Com Édipo e Narciso poder-se-ia começar de modo convincente uma galeria dos protótipos da miséria humana. Dessas figuras tem-se compaixão, não admiração; e nos seus destinos, quando se trata do ensinamento escolástico, está por se reconhecer o modelo mais potente de todos para os dramas da vida. Não é difícil descobrir a tendência de base dessa preferência. Quem quer transformar os homens em pacientes - isto é, em pessoas sem orgulho - não pode fazer nada melhor do que promover figuras como essas como emblemas da conditio umana. Na verdade, a sua lição deve ter estado no aviso relativo ao fato de que o amor desconsiderado e unilateral zomba de seus sujeitos. Somente quando o fim é ab ovo a representação do homem como marionete do amor serão explicados o miserável adorador da própria imagem e o também miserável apaixonado pela sua mãe como modelos da existência humana. De resto, pode-se constatar como os fundamentos da psicanálise foram, no meio-tempo, soterrados pela excessiva difusão das suas ficções mais eficazes. Observando-os de longe, também o jovem mais cool dos nossos dias sabe ainda o que se entende por Narciso e Édipo, mas participa de seus destinos de modo, antes de mais nada, aborrecido. Não vê mais neles uma imagem originária do ser humano, mas, com compaixão, falidos sem importância.
Quem se interessa pelo homem como portador dos movimentos orgulhosos e auto-afirmativos deveria decidir-se a cortar o nó górgio do erotismo sobrecarregado. É necessário retornar à opinião de base da psicologia filosófica dos gregos, segundo a qual a alma não se manifesta somente no eros e nas suas intenções, mas muito mais nos movimentos do thymós. Enquanto a erótica mostra vias para os "objetos" que nos faltam e cuja possessão ou proximidade nos faz sentir completos, a timótica abre aos homens a estrada sobre a qual eles fazem valer aquilo que têm, podem, são e querem ser. O homem, nas convicções dos primeiros psicólogos, é produzido inteiramente pelo amor, precisamente em dois modos: segundo a concepção do eros mais alta e unificadora, na medida em que a alma é assinalada pela lembrança de uma perfeição perdida; segundo a concepção do eros popular e dispersivo, na medida em que esta é constantemente submetida a um variado número de "desejos". De todo modo, não pode abandonar-se exclusivamente às paixões desejantes. Com uma energia muito grande deve vigiar as pretensões do seu thymós e, se necessário, vigiar até mesmo sob os custos das tendências eróticas. Ele é desafiado a defender a sua dignidade e a ganhar tanto auto-estima quanto estima por meio de outros à luz de critérios superiores. É assim e não pode ser diferente. A vida de cada indivíduo singular pede por manifestar-se sobre nos palcos externos da existência [Dasein] e por fazer valer entre pares as próprias forças, por uma vantagem própria e coletiva.
Quem quer superar a segunda determinação do homem a favor da primeira evita, desse modo, a obrigação de uma dupla formação psíquica e transforma a relação entre as energias em questões de balanço interno - tudo em detrimento do senhorio. Tais inversões observam-se no passado, sobretudo nas ordens religiosas e nas subculturas inebriadas pela humildade, nas quais as almas belas dão reciprocamente saudações de paz. Nesses círculos etéreos todo o campo timótico foi bloqueado pela censura de superbia, enquanto se preferiu deliciar-se com os prazeres da modéstia. Honra, ambição, orgulho, elevado amor próprio - tudo isso foi ocultado atrás de uma espessa parede de prescrições morais e "conhecimentos" psicológicos. Todos juntos procuravam banir o dito egoísmo. Esse ressentimento contra o Eu e a sua tendência a valorizar-se, ao invés de ser felizmente sujeitado, que precocemente se instituiu já nas culturas imperiais e nas suas religiões, distanciou por pelo menos dois milênios a convicção de que, na verdade, o tão censurado egoísmo representa frequente e unicamente a incógnita das melhores possibilidades do homem. Somente com Nietzsche vamos novamente estabelecer claramente as condições desse problema.
Com o atual consumismo atinge-se, de modo digno de nota, a mesma exclusão do orgulho a favor de um erotismo sem desculpas altruísticas, holísticas ou distinguido ulteriormente, conquistando, com facilitações materiais, o interesse dos homens pela dignidade. Assim, aquela construção, de início completamente incerta, do homo oeconomicus atinge o seu objetivo no usuário pós-moderno. Um simples consumidor é quem não conhece mais, ou não deve conhecer, desejos a não ser aqueles que, para exprimir-se com Platão, provêm da "parte da alma" erótica ou desejante. Não é por acaso que a instrumentalização da nudez é o sintoma principal da cultura do consumo, admitido que a nudez seja sempre acompanhada por um toque de desejo. Ao menos os clientes, exortados à demanda, não são totalmente desprovidos de armas de defesa. A ironia permanente ou uma indiferença adquirida lhes permitem parar o ataque permanente à dignidade da sua inteligência.
Os custos da erotização unilateral são altos. O obscurecer do timótico torna efetivamente incompreensível, em muitos e vários âmbitos, o comportamento humano - se se toma em conta o fato de que a sua realização podia vir somente com ma educação psicológica, encontramo-nos diante de um resultado surpreendente. Como de costume essa não-compreensão pressupõe em toda parte o erro, não somente na própria ótica. Tão logo nos indivíduos ou nos grupos aparecem "sintomas" como o orgulho, a ambição, uma mais alta vontade de auto-afirmação e uma aguda combatividade, o partido contrário da cultura terapêutica do thymós esquecido representa essas pessoas como vítimas de um complexo neurótico. Assim, os terapeutas se encontram dentro da tradição cristã dos moralistas cristãos. Falam dos demônios naturais do amor próprio, tão logo as energias timóticas se fazem reconhecer abertamente. Não é, talvez, desde os tempos dos padres da Igreja que os europeus têm a oportunidade de ouvir dizer que o orgulho e a ira são apenas movimentos que indicam aos abjetos a via do abismo? Efetivamente a partir de Gregório I o orgulho, aliás superbia, encabeça a lista dos pecados capitais. Quase duzentos anos antes Aurélio Agostinho descreve-a como a matriz para a retirada do divino. Para os padres da Igreja a superbia significa uma ação de fato do consciente não-querer-assim-como-o-Senhor-quer (um movimento cuja presença acumulada aparece já clara nos monges e nos servidores do Estado). Quando se diz que o orgulho é o pai de todos os vícios, exprime-se a convicção de que o homem seja feito para obedecer - e todo movimento que leva para fora da hierarquia pode significar unicamente a passagem para a ruína.

Peter Sloterdijk. Ira e Tempo. Roma: Meltemi editore, 2007. Trad. para italiano: Francesco Pelloni. pp. 22-26. (re-tradução ao português: Vinícius Nicastro Honesko) Não gosto muito de re-traduções, mas achei o trecho muito interessante e decidi compartilha-lo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Ideia do amor



Viver na intimidade de um ser estranho não para dele se aproximar, para torná-lo conhecido, mas para o manter estranho, distante e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o contenha por completo. E, mesmo no desconforto, dia após dia não ser outro que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece sempre exposta e murada.

Giorgio Agamben. Idea dell'amore. In.: Idea della prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 41.
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

Imagem: Tiziano. Amore sacro e Amore Profano. 1515. Galleria Borghese, Roma.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Ideia da morte



O anjo da morte que em certas lendas se chama Samael e contra quem, diz-se, também Moisés teve que lutar é a linguagem. Esta anuncia-nos a morte - o que mais faz a linguagem? Mas é exatamente esse anúncio que faz com que morrer seja tão difícil. De tempos imemoriais, de quanto dura a sua história, a humanidade está em luta contra o anjo para arrancar-lhe o segredo que ele se limita a anunciar. Mas das suas mãos pueris só se pode obter o anúncio que, aliás, ele apenas tinha vindo nos trazer. Disso o anjo não tem culpa e só quem compreende a inocência da linguagem entende também o verdadeiro sentido do anúncio e pode, eventualmente, aprender a morrer.

Giorgio Agamben. Idea della morte. In.: Idea della prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 117.
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

Imagem: William Blake. Satan in his original glory: "Thou wast Perfect till Iniquity was found in Thee". 1805.

sábado, 7 de maio de 2011

Inquietar-se diante de cada imagem


Não sabemos o que pode uma imagem. Algumas nos deixam completamente idiotas, outras parecem despertar a vida do espírito deixando passar como um sopro que move o pensamento e o obriga a interrogar as potências da luz e da desordem. Algumas ainda consolam permitindo-se reconhecer, mas outras apavoram, obrigam a desviar o olhar e a falar de outra coisa. Talvez são as mesmas imagens que ocupam essas funções em turnos, conforme os momentos, de acordo também com aquele que sabe ou não observa-las. Mostra-se, portanto, vã toda postura que pretende conhecer a priori a verdade universal da imagem, denunciando o simulacro, a transgressão, a captura, o fechamento narcisista ou louvar a encarnação, a beleza, o sublime, o valor justificativo da existência, o núcleo vital do real e do simbólico, esfacelando em cada caso a singularidade de cada imagem sob o saber preestabelecido. É tentador afirmar, ao contrário, que não há imagem em geral (somente esculturas, pinturas, filmes, fotografias, imagens mentais, cada uma revelando sua própria explicação): posição ascética, mas frustrante, uma vez que nós vivemos numa civilização na qual as divisões entre os registros de imagens, ou entre estes e o discurso, são cada vez mais artificiais. Qual é a história da arte se ela também (primeiramente?) não nos ensina a ver o real de hoje, a ler as imagens como a se deixar apreender por aquilo em que nelas nos dá o poder de ver e de ler?
Nós encontramos Georges Didi-Huberman para que ele nos ajude a escapar desse dilema. Sua obra que vai do Quattrocento a Hantaï ou Penone (ou o inverso), de Charcot a Deleuze e Foucault, de Panofsky a Warburg, da beleza angélica aos fotogramas da Shoah, testemunha esta dupla preocupação: sublinhar o quanto não sabemos o que pode uma imagem e não renunciar a articular o que algumas imagens singulares podem nos ensinar além delas mesmas através dos séculos como das disciplinas. É por isso que esta obra em curso supera todos os registros. Ela é, seguindo Walter Benjamin e Aby Warburg, uma história da arte estranhamente intempestiva, feita de fantasmas, de sobreviventes, de passagens e de deslocamentos. É uma filosofia da imagem que, atravessando todos os saberes, inquieta-se com as pretensões do conceito para fazer bom uso das imagens singulares, em nome de sua verdade essencial. Aproxima-se de uma psicanálise da imagem, sob o risco de borrar suas distinções cardeais, até aquela zona obscura em que imagem e símbolo, santidade e loucura tornam-se indiscerníveis. É ainda uma poética da imagem que, seguindo Baudelaire, Bataille ou Blanchot, exige que se aprenda primeiramente a ver e a descrever, mas mantendo o olhar na parte de fora – invisível, ilegível, mas jamais inteiramente indizível. Por último, é talvez também de uma política da imagem que se trata, que finalmente leva a imagem a sério, isto é, tremendo como para melhor respeitar e se deixar assombrar pelos gestos que as produziram ou inspiraram, para desenvolver uma barragem frágil contra os “monstros” engendrados, assim como pelo “sono da razão”, pela indiferença em relação às imagens do real e sua dimensão trágica.
Nós lhe perguntamos como ele tinha podido elaborar um projeto ao mesmo tempo tão prometeico quanto modesto, uma vez que a cada instante se coloca à prova. Conversamos sobre as escolhas das heranças e da vida, bifurcações e retomadas, honestidade e medo, a partir de um trabalho incansável. Uma lição de sabedoria, com e sem imagens.
Quando e como o senhor decidiu tornar-se historiador da arte? Foi por uma primeira atração pela própria arte? E se sim, por qual arte em particular, por quais artistas? Desde o início por Giotto, Fra Angelico e o “Quattrocento”? Ou para a arte moderna e contemporânea sua relação com a história da arte lhe permitiu multiplicar as indicações mais inesperadas, por exemplo, entre Fra Angélico e Pollock, ou entre Penone e Leonardo da Vinci?
Eu sou criança de pintura. Eu passei horas no ateliê. Eu olhava os quadros enquanto estavam sendo feitos. Eu era assistente, eu lavava os pincéis. Desde muito cedo eu amava discutir o trabalho, o processo, como se encadeiam os problemas num quadro. Havia também uma forte carga erótica nesse atelier (os catálogos de desenhos, Ingres ou Bellmer, As Lágrimas de Eros de Georges Bataille...). Eu fazia uma parada para ir às galerias de arte contemporânea em Paris e a alguns ateliês de escultores. Adolescente, eu trabalhava frequentemente no Museu de Arte Moderna de Saint-Étienne, ajudando na documentação, dando assistência para a instalação da exposição ou ensaiando visitas comentadas – sempre muito vivas – com um público geralmente suspeitoso em relação à arte de depois de Cézanne. Assim, o elemento nativo, se podemos dizer, é a arte contemporânea, isto é, a arte de cada instante presente, a arte enquanto questão que está sempre sendo posta. Eu só ingressei na arte medieval e renascentista quando dela tive uma experiência concreta, durante os quatro ou cinco anos que passei, muito mais tarde, na Itália. Mas ainda aí, diante das “marcas” de Fra Angélico, por exemplo, as questões: como é feito? Como se coloca o problema? vinham antes das questões: que fizeram isso? Ou o que isso quer dizer? É por isso que tenho a impressão de ter aprendido mais dos próprios artistas – com quem o diálogo jamais cessou – do que com historiadores.
A partir dessa experiência que o senhor tem de certas obras de arte, poderia especificar a posição que o senhor está querendo manter? Ao mesmo tempo no campo da história da arte e no da estética, já que o senhor sustenta suas análises por um cruzamento de saberes (filosofia, psicanálise, poética, antropologia...)?
Mas é claro que sou o último a ser capaz de situar esse lugar, de definir-lhe o estatuto... Seria melhor interrogar sobre a necessidade do deslocamento do que sobre a legitimidade do “lugar”. Eu poderia, sem dúvidas, evocar tal ou qual experiência concreta: as numerosas dificuldades – isto é, as polêmicas – com o meio universitário francês, os frequentes sentimentos de incompreensão em relação ao mundo anglo-saxão, a extraordinária recepção no meio alemão, o dialogo aberto com filósofos e teóricos literários, o não-diálogo com muitos historiadores que, entretanto, estão muito próximos de minhas preocupações... Além das controvérsias pessoais, trata-se simplesmente, creio eu, de um problema global da história intelectual: qual é o lugar que queremos dar ao pensamento filosófico, à interrogação psicanalítica, isto é, à preocupação poética nesse campo disciplinar que chamamos ciências humanas hoje? Creio simplesmente que é impossível falar seriamente das imagens, dizer algo sobre a arte sem articular nossa experiência destas três coisas: uma maneira de colocar as questões, uma maneira de colocar em jogo o desejo – de sentir, de ver, de conhecer – e uma maneira de escrever tudo isso. A história da arte não existe completamente sem uma posição teórica, uma posição psicológica e uma posição poética sobre o objeto com o qual ela trabalha.
O senhor pode especificar qual a importância, para o senhor, da noção de experiência? Mais precisamente como em Benjamin, mas também como em Foucault, para o senhor parece que ela é ao mesmo tempo fundamental e pouco definida, às vezes dentro do significado mais comum de experiência (ver uma imagem), às vezes de experiência fenomenológica (aquela que nos “atinge”), às vezes, ainda, de experiência interior ou dessas experiências-limites procuradas por Bataille ou Blanchot. Em suma, o que quer dizer para o senhor “fazer experiência de uma imagem”?
Eu vou leva-lo ao pé da letra: diria que a experiência de uma imagem é exatamente tudo o que você acaba de dizer mas de uma só vez, numa só experiência... É uma experiência comum já que ver uma imagem faz parte de nossos gestos mais quotidianos: eu folheio um livro de história e ali há imagens, dentre as quais algumas são para mim novas e outras já conhecidas. De uma só vez minha experiência torna-se “fenomenológica”, no sentido que o senhor sugere: uma imagem que eu acreditava já conhecida – por exemplo, a imagem do soldado alemão que atira à queima-roupa numa mulher que segura seu filho nos braço – salta-me aos olhos, toma-me na sua crueza, abre em mim um mistério novo, uma inquietude maior, que é, assim, a inquietude do contato entre essa imagem e o real, do contato entre imagem e corpo, imagem e história, imagem e política...
Desde que essa imagem não é mais olhada como uma simples imagem estereotipada, uma vinheta de ilustração colada no livro ou um simples “ícone do horror”, mas como uma situação visual singular, ela se torna essa experiência-limite, essa experiência interior da qual falava Georges Bataille. Não é por acaso que o próprio Bataille reconhecia às imagens o poder não de nos consolar, mas, ao contrário, de nos inquietar, de nos “abrir”, de nos fazer “sangrar interiormente”, como ele dizia. Todas as minhas escolhas de objetos se tornaram necessárias por uma experiência desse tipo, uma experiência de abertura: imprevisível (irredutível a um programa de pesquisa) e inquietante (irredutível a um saber ou a um sistema). A experiência pede, e isso é claro, para ser suportada, contextualizada, historicizada, teorizada. Mas sei bem que, em última análise, a imagem permanecerá irredutível diante de mim: nem o saber (como pensam muitos historiadores) nem o conceito (como pensam muitos filósofos) a apreenderão, a subsumirão, a resolverão ou redimirão. A imagem é uma passante. Nós devemos seguir seu movimento sempre que possível, mas devemos igualmente aceitar que jamais a possuímos completamente. Isso quer dizer que uma imagem – não qualquer imagem, sem dúvida; eu falo aqui dessas imagens que chamo fecundas – é inesgotável. E é também nisso que a imagem faz hoje parte de nossa relação com a experiência (frequentemente para pior, isto é, para a ilusão, algumas vezes para melhor, isto é, para recolocar em jogo o real, além de todos os discursos catastróficos sobre a destruição da experiência e do simulacro generalizado).
No fim do seu livro sobre James Turrell, O Homem que caminhava na cor, o senhor empresta, justa e generosamente, uma verdadeira lição moral de Platão: “Desarmar, diante de cada obra, a maneira de pensar que era a nossa pouco antes de ter pousado nossos olhos nela.” Há, todavia, um enigma. Isso quer dizer que todo pensamento é anteriormente desarmado e que a imagem real está aí somente para desvendar o desarmamento ou a falha imemorial?
Para dizer a verdade eu não me lembro mais dessa frase e, sobretudo, de seu contexto. Mas, enfim, eu confio no senhor. Tratava-se, sem dúvidas, de dizer que a imagem não é redutível ao conceito (a iconologia panofskiana e a tendência neo-kantiana da história da arte estruturalista tentaram essa redução). Mas não se tratava também de dizer que a imagem seria o cadinho de uma irracionalidade “sagrada”, inominável, sublime, ou seja lá o que for. Não se avança opondo com toda força o sensível e o inteligível. Não se avança mais procurando uma solução abstrata de integração do sensível ao inteligível, como o quis fazer Kant com seu famoso “esquematismo transcendental” que tranquiliza tantas inquietudes diante do mundo da experiência... Evoquemos, justamente, uma experiência: eu olho um quadro de Hantaï; depois eu compreendo como a distinção entre moldagem e modulação – distinção que encontramos em Gilbert Simondon e depois em Deleuze – pode ser fecunda para interrogar o método inventado por essa pintura; mas logo me dou conta de que o quadro de Hantaï modifica essa distinção, desconstruindo-a de algum modo já que as “moldagens” do pintor são aqui capazes de “modular” também nas cores. Tal é, portanto, o ritmo dessa aproximação: o conceito me ajuda a olhar, depois o olhar me ajuda, reciprocamente, a criticar, a modificar, a fazer bifurcar o conceito. Eu trabalho somente com singularidades (não tenho nada de geral a dizer sobre “a arte”, “a beleza” etc.) na medida em que as singularidades têm essa potência teórica de modificar nossas ideias preconcebidas, portanto, de solicitar o pensamento de uma maneira não axiomática: de uma maneira heurística.
Eu ainda complementaria com isto: meu uso da filosofia é tão necessário quanto impertinente. Por que impertinente? Meu problema jamais foi o de me situar na história dos sistemas estéticos, por exemplo. Eu não discuto um texto filosófico para determinar seu valor de verdade geral; eu utilizo um texto filosófico para discutir uma imagem particular. Se é verdade que, mesmo armada de conceitos, a imagem deixa nosso pensamento “quebrado diante de cada obra”, então é preciso convir que a explicação filosófica dá somente uma parte dos meios capazes de afrontar a imagem. Eu dou uma importância capital ao fato de que muitos dos textos fundamentais sobre a arte foram escritos por poetas, escritores (isso acontece, na França, de Diderot a Baudelaire, das irmãs Goncourt a Genet, de Proust a Beckett). Eis porque o texto sobre Turrel, ao qual o senhor faz referencia, não remete a uma explicação filosófica, mas à fábula filosófica, o que é bem diferente. Há muito tempo, antes de começar um texto sobre a imagem, eu relia Baudelaire, como para tentar encontrar na sua língua poética, nos seus “fusées” suntuosos, a energia literária de descrever – isso não seria mais que descrever – uma imagem. Na minha biblioteca, ainda hoje, eu coloco bem ao lado da filosofia uma seção de textos que nomeio, em referência a Georges Bataille, “heterológicos”: ela compreende os autores que me são, sem dúvidas, mais caros e que são ao mesmo tempo grandes pensadores e filósofos não acadêmicos (Bataille, para começar, mas também Baudelaire, Benjamin, Eisenstein, Carl Einstein, Maurice Blanchot e alguns outros). Somente uma escritura poética pode produzir pensamento deixando-o “quebrado diante de cada obra”.
Permita-me lhe colocar a questão um pouco brutalmente: qual é a sua relação real com a política? É uma questão brutal mas não irônica, pois parece que o senhor mantém uma relação extremamente sutil, mas, ao mesmo tempo, pouco legível a um primeiro olhar, com relação à coisa pública e à questão das relações sociais em geral. De um lado, de fato, diferentemente da maior parte dos historiadores da arte, digamos, “clássicos”, parece que todo o seu trabalho seja em grande parte determinado por motivos eminentemente políticos: desde suas primeiras obras sobre os histéricos ou o imaginário medieval da peste, até seus trabalhos mais recentes sobre as imagens da Shoah. Mas, por outro lado, parece que o senhor para sempre nas fronteiras do engajamento, pelos mesmos motivos que Foucault – não capturar a palavra e a imagem daqueles que sofrem ou agem – e por motivos mais “indizíveis”. O senhor poderia nos dizer mais sobre esse aparente “indizível”?
Para a questão brutal uma resposta um pouco brutal, portanto: só se engaja com eficácia onde se trabalha verdadeiramente, isto é, onde é possível, graças a esse trabalho mesmo, intervir eficazmente em um campo determinado. Eu me sinto tão pouco apto – eu não tento me justificar, constato meu limite – a assinar petições sobre dossiês a respeito dos quais tenho apenas um conhecimento de segunda mão, ou a engajar-me em questões políticas concretas e complexas tocantes ao Kosovo, por exemplo. Mas teria sem dúvida algo a dizer sobre a Pietà do Kosovo fotografada em 1990 por Georges Mérillon, na medida em que é uma imagem sobre a qual eu desenvolvo algum trabalho atualmente. Em seguida, o que eu terei a dizer será publicado, portanto público, e me obrigará, obviamente, a tomar posição em relação a uma matéria eminentemente política, já que a imagem de Mérillon remete diretamente a usos políticos atuais da iconografia do sofrimento. Mas sinto-me incapaz de ter um ponto de vista “autorizado” – um intelectual autorizando-se a falar publicamente “autoriza” o que ele diz – sobre todas as questões de nossa atualidade. Somos habituamos a ver as elites intelectuais, por exemplo em um concurso de ingresso como o da École Normale Supérieure, a dizer algo de inteligente sobre tudo, a ter um ponto de vista sobre tudo, mesmo sobre o que conhecemos mal. Eu não tenho nem essa formação, nem essa capacidade.
Para lhe responder melhor seria preciso, de fato, fazer remissão a algo mais alto. Olhar uma imagem é um ato contemplativo. Faz-se isso num arquivo, num museu, numa biblioteca, num ateliê de artista, num quarto. Eu tenho a impressão de ter passado minha infância em um mundo de imagens, isto é, grosso modo, em um mundo retirado da ação. Em maio de 1968 eu tinha quinze anos, todos meus amigos próximos ocupavam o liceu, protestavam nas ruas e eu olhava tristemente as coisas de minha janela, sem uma palavra, tentando ter uma ideia. Havia nessa lacuna, creio eu, medo, simplesmente. As imagens podem nos colocar na lacuna da ação, mas elas nos colocam diretamente no centro do medo. Ou, ao menos, elas sublinham, desenham, acentuam o medo. Eu lhe falei sobre o ateliê de meu pai: um lugar para arte, para a beleza, para a consolação e para a dimensão erótica das imagens. Mas isso foi somente a metade da experiência. A outra metade – que “quebrava” literalmente a primeira – encontrava-se na biblioteca materna: e eram todas as imagens da guerra, numa propedêutica do horror histórico, no inverso absoluto de toda beleza, no inconsolável e na dimensão enlutada das imagens.
Essa tensão, parece-me, abre já na imagem a dimensão do político. O que chamei de experiência de abertura, a inquietude do contato entre a imagem e o real, não é mais que, para concluir, uma ascensão à dimensão política das imagens, ao menos à sua dimensão histórica: seu papel de testemunha, isto é, de instrumento, nas grandes violências políticas. Eu levei muito tempo para compreender isso. Lendo Devant le temps um amigo (um filósofo) me fez notar que meu comentário sobre Benjamin tinha “esquecido” a célebre passagem sobre a destruição dos relógios pelos revolucionários, enquanto eu descrevo – de modo muito autobiográfico, aliás – a criança baudeleriana que quebra metodicamente o relógio familiar sozinho no seu quarto. Eu fiquei surpreso quando um outro amigo (um cineasta) me falou de Devant l’image como de um livro político. Eu compreendi depois de muito tempo a que ponto a estrutura epistemológica do campo “história da arte” – aparentemente tão longe de questões sociais mais inflamadas – só podia se pensar em relação aos levantes históricos do século XX: se nossa maneira de olhar a arte hoje depende em grande parte do trabalho magistral de Erwin Panofsky, é preciso então compreender que ela depende de um pensador que foi exilado pelo nazismo e que emigrou para o mundo anglo-saxão com tudo aquilo que isso comporta de rompimentos e de renúncias (a começar pela renúncia à língua materna)...
Se é preciso agora voltar desde as adaptações e repressões panofskianas até as intuições mais geniais – e mais psicóticas – de Aby Warburg, é preciso compreender este, perturbando nossos modelos de temporalidade e escavando a memória inconsciente das imagens, acabou por inventar uma disciplina nova, a iconologia política, tal como vemos operar nos seus estudos de 1918-1920 sobre as gravuras de propaganda da época de Lutero ou nos últimos painéis de seu atlas Mnemosyne consagrados à Concordata de 1929, à teocracia pontifical e ao anti-semitismo. Os melhores discípulos alemães de Warburg, em Hamburgo ou em outras partes, deram toda sua importância a uma análise política das imagens: penso notadamente em Martin Warnke, em Horst Bredekamp, em Michael Diers, em Charlotte Schoell-Glass, em Gerhard Wolf ou, diferentemente, em Sigried Weigel. É evidente, aliás, que pensadores tais como Bertolt Brecht, Walter Benjamin ou Carl Einstein – sem esquecer Adorno e, mais tarde, Guy Debord, Chris Marker ou Jean-Luc Godard – tiveram um papel decisivo nessa aproximação política da imagem.
Hoje todo mundo parece de acordo em dizer que a imagem está no coração de nossa cultura, ou seja, do mesmo modo, de nossas barbáries ou, em todo caso, de nossos aparelhos políticos. Refletir sobre as imagens não acontece sem uma tomada de consciência dessa situação e é a razão pela qual, quanto mais avanço, mais o Goya dos Desastres da guerra – mas esse Goya aqui deve ser pensado também com aquele da Casa do surdo – ganha importância, e mais os artistas contemporâneos que pensam a questão da história ganham minha atenção, seja Sigmar Polke ou Robert Morris, Alfredo Jaar ou Pascal Convert, Sophie Ristelhueber ou Harun Farocki. As imagens constituem, hoje mais do que ontem, ferramentas políticas consideráveis. Sua eficácia parece cada vez mais imediata. É preciso, portanto, com toda urgência, desenvolver um olhar crítico sobre as imagens: atitude que não é nem de aceitação beata, nem de recusa obstinada (penso na polêmica suscitada pelo Images malgré tout). Mais uma vez, é preciso trabalhar na dimensão concreta das singularidades.
Não há ontologia a ser feita sobre isso que é “a imagem”. Dizer “a imagem” é pensar, não importa o que façamos, de modo metafísico. Há somente imagens, cada imagem é somente compreendida na sua relação com as outras. Se quisermos retomar a reflexão de Lacan – endereçada a Heidegger – segundo a qual “a metafísica nunca foi nada e somente se prolongaria para se ocupar em obstruir o buraco da política”, então, diremos, naquilo que nos concerne, que uma imagem pode funcionar, segundo seu valor de uso, alternativamente como um tapa-buraco metafísico na história (aquela da Cidade, notadamente), enquanto que os Desastres de Goya são um buraco político na cultura de seu tempo (eis porque a reunião de suas gravuras nunca foi publicada enquanto o artista estava vivo).
Há talvez em toda imagem um duplo aspecto ou, melhor, um duplo regime (eu emprego em um sentido funcional e não de época, como o faz Rancière): tapa-buraco e buraco, véu e rasgo do véu, sublimação e dessublimação. Trata-se de, a cada instante, interrogar-se na imagem o que faz impedimento e o que faz retorno do impedimento, ou, dito de outro modo, o que resulta dos poderes do imaginário e o que surge da quebra do real.
O senhor é um dos historiadores da arte, um dos intelectuais em geral, mais profusos que conheço. Como o senhor escreve? Com muitos textos sobre a mesa em paralelo (como para o seu Fra Angelico e Devant l’image), um servindo de contraponto ao outro? Ou sempre um apos o outro? Seguindo um projeto de conjunto? Ou segundo solicitações e ordens heterogêneas? Ou ainda seguindo uma sutil dialética entre as duas? E como então dialetizar um projeto de pensamento e de escritura?
Eu sou profuso somente sob o olhar de uma situação atual – eis um objeto político por excelência, parece-me – que é globalmente feita para censurar, tornar devagar, canalizar, divertir ou frustrar o livre exercício do pensamento e do saber. O que está em jogo aqui é a própria estrutura do aparelho universitário enquanto mundo do trabalho. O senhor é um jovem pesquisador? Tudo é feito para lhe impedir de trabalhar: fecham-lhe as portas, não o publicam, fazem-no esperar, obrigam-no a cumprir tarefas extras em face de uma vaga promessa de lhe dar um posto... O senhor é um velho pesquisador? Também tudo é feito para lhe impedir de trabalhar: são-lhe dados pseudo-poderes, tarefas administrativas, propõem-lhe cadeiras em bancas, convites para colóquios, fazem-lhe ler manuscritos, convites para formar comissões contra a vaga promessa de encontrar um posto para seus estudantes... e assim por diante. Minha primeira resposta para a sua questão, portanto, será: primeiramente eu escrevo profusamente porque eu tenho tempo para faze-lo. Como faço isso? Primeiramente tenho a chance de trabalhar numa instituição, A École des hautes études en sciences sociales, que tem por vocação ensinar a pesquisa (a questão é saber se essa vocação pode resistir ao aparelho universitário do qual falava). Em seguida, eu sou um mal institucionalista – três reprovações durante a habilitação –, uma condição de liberdade intelectual. Eu segui o conselho de Gilles Deleuze: escolher entre o poder e a potência. Muitos querem ter os dois, mas isso não é possível até o fim. Eu não tenho poder algum sobre ninguém, parece-me (ora, o poder toma muito tempo). Eu não tenho ninguém para julgar. Eu não tenho carro nem celular. Eu detesto as intermináveis correspondências eletrônicas. Eu não organizo nada, eu não dirijo nada. Eu me contento em dar o que eu faço menos mal ou, digamos, o que faço com mais prazer. Eu sei dizer não, mesmo para as propostas “prestigiosas”, como se diz, uma vez que corro o risco de me dispersar.
A profusão vem de duas coisas: construção e prazer. Desenvolvi, como todo mundo, meu pequeno método pessoal (baseado em fichas escritas a mão) cuja simples virtude é a simplicidade, a mobilidade, a possibilidade de trabalhar simultaneamente na ordem do saber (virtude de paciência) e na ordem da associação livre (virtude de impertinência, de jogo). Um texto é sempre a resultante ou a montagem dessas duas dimensões num mesmo ritmo. Falo de ritmo porque a história da arte é desde o início uma disciplina literária. Tudo começa com um exercício de descrição, de ekphrasis. Tudo é questão de estilo, portanto, de colocar o material em operação. Eu trabalho simultaneamente, de fato, em diferentes gêneros literários: há grandes projetos que se alongam por diversos anos, há textos breves que são como “fusées”, formas intermediarias etc.. A coisa toda é ter tempo para si, isto é, sua liberdade de bifurcar-se para um desenvolvimento novo ou para tomar muito mais tempo que o previsto sobre uma questão que inicialmente parecia menor. Tento dizer a todos os estudantes com os quais discuto que a questão fundamental é aquela, não da “carreira”, mas da construção – é uma luta, evidentemente – das condições de nossa liberdade. Questão política, portanto: como construir a possibilidade concreta de um saber feliz?
Uma questão improvisada: suas notas de pé de página, por seu caráter prolífico e abundante (pensamos particularmente em L’Image survivante, livro sobre o qual o senhor diz ter retirado mais de duzentas páginas de nota, mesmo que o livro ainda tenha ficado com 677 páginas...) e pela multiplicidade dos registros que elas mobilizam, acabam por ganhar, ao menos para os leitores ingênuos que somos nós, um estatuto extremamente enigmático. Qual é sua relação com as notas de rodapé? São elas um meio de aceitar o jogo da erudição, uma vez que não há outro, já que a mais simples honestidade o obriga? Ou, ao contrario, alongar-se com a finalidade de fazer outra coisa? Não são elas ainda uma maneira de se resguardar e de proteger pelo saber mais autorizado os pensamentos mais heterodoxos? Ou, ao contrario, fazer divagar o saber até zonas pelas quais menos esperamos? Ou ainda pontuar seus textos a maneira de um Spinosa produzindo supostos escólios para comentar suas proposições e implicando, de fato, um diferente registro de pensamento? Ou tudo isso ao mesmo tempo? Ou ainda outra coisa?
Sua questão mostra, justamente, que o senhor não é um leitor ingênuo. Talvez, por outro lado, já que o senhor é filósofo, o senhor não pratique verdadeiramente a literatura erudita que produz naturalmente uma disciplina como a história da arte. As notas proliferantes são um traço típico da história da arte alemã: nas Gesammelte Schriften de Warburg há muito mais notas do que texto, da mesma forma que em um livro como Idea de Panofsky. Se havia muitas notas em L’Image survivante é porque o livro era uma emanação da ferramenta oferecida pelo próprio Warburg a seu leitor, a saber – além de seus próprios textos publicados, suas intermináveis notas e suas miríades de manuscritos inéditos – sua biblioteca, sua biblioteca mágica... Minhas notas inicialmente funcionaram no mimetismo do saber rizomático proposto por Warburg. Mas é verdade que, frequentemente, as notas de rodapé funcionam na história da arte como o tapa-buracos de uma ausência de problematização, como se o cientista se recusasse a resolver, a assumir um ponto de vista. O grande historiador da arte vienense Julius von Schlosser dizia substancialmente que a história da arte é uma disciplina filológica que deve utilizar seu saber para colocar questões filosóficas. Há lentidão e notas de rodapé em toda atividade filológica, há risco e uma certa energia do texto – isso é muito claro desde Nietzsche – em toda atividade filosófica. É preciso, portanto, saber combinar as duas.
Sem dúvidas o senhor tem razão quando evoca a nota de rodapé como uma espécie de meio civilizado para fazer passar uma ideia um pouco nova, de modo a “proteger pelo saber mais autorizado pensamentos mais heterodoxos”. É a atitude que consiste em dizer: eu lhe proponho essa surpreendente hipótese não porque eu não sei, mas, justamente, porque eu sei. Ao mesmo tempo, tudo isso é menos complicado, muito menos paranóico do que o senhor sugere. A nota de rodapé é simplesmente a honestidade, como o senhor diz, na transmissão do saber. É a possibilidade dada ao leitor de refazer o caminho por sua conta, isto é, para eventuais divergências na apreciação das fontes. Quando estudante eu estava deslumbrado pela beleza da escritura de Michel Foucault, pela fluidez de seu pensamento, e pela impossibilidade de cortar seu raciocínio para citar somente uma parte dele. Depois disso, quis refazer certos caminhos de seu pensamento e fiquei chocado quando vi que ele escrevia “Esquirol dizia isso”, sem mencionar onde ele o diz e mesmo como ele o diz exatamente. Um texto sem notas é, num sentido, muito mais autoritário – isto é, menos generoso, mas, aí, já não é mais o caso de Foucault – do que um texto com muitas notas de pé de página.
O grande erro seria postular que a teoria é um fim para o qual o saber seria apenas um meio. Há saberes tapa-buracos, claro: é a metafísica que carrega o cientista positivista, de algum modo. Ele acredita que a exatidão irá fundar a verdade daquilo que ele diz. Mas outras estratégias de conhecimento são evidentemente possíveis: o saber aberto, a gaia ciência, carrega em si mesmo uma extraordinária capacidade de invenção e de subversão teóricas. O saber – lembremo-nos da erudição impressionante de Walter Benjamin ou de Georges Bataille – sabe cavar buracos no conformismo de teorias dadas por completo. Como o senhor diz muito bem, a nota erudita tem uma função de pontuação, de escólio e, sobretudo, de digressão. Vemos nas notas como um pensamento se constrói, como se efetua a própria montagem teórica. Vemos nas notas um campo de possibilidades, uma arborescência sobre a qual o próprio texto, geralmente mais narrativo, mais orientado, recusa-se a parar.
Uma última questão. O senhor define, em Devant l’image, o mundo das imagens como o conjunto de “aporias” que se colocam ao mundo do saber. A partir desse ponto de vista, o senhor já chegou a conhecer imagens que lhe apreendiam sem que lhe tenha sido possível, entretanto, articular sobre elas o menor discurso? Imagens que produziram somente intuições significativas mas ainda vazias, ou textos impublicáveis? Em outras palavras, os seus leitores só conhecem a história de suas conquistas... Há uma história mais subterrânea ou mais inconfessável de suas derrotas? Essa questão toma também um sentido particular em relação a uma de suas teses centrais segundo à qual a imagem é acima de tudo “o que resiste ao discurso”? O senhor conheceu resistências absolutas ou inexpugnáveis?
É uma questão muito bonita, mas como responde-la se eu o tomar ao pé da letra? Dizer que uma imagem é antes de tudo “o que resiste ao discurso” equivale a dizer que não é preciso exatamente parar nesse “antes de tudo”. Toda questão, afirmava Bataille, é uma questão de tempo, de emprego do tempo. Eu diria então que as imagens que me “apreenderam”, como o senhor diz com justiça, só criaram um momento de mudez nos meus discursos anteriores. Uma imagem forte é, antes de tudo, uma imagem que surpreende (quando digo “forte”, isso não quer dizer “violentamente espetacular”, obviamente: uma moça com turbante de Vermeer que se vira suavemente para então lhe surpreender também toca todas as suas possibilidades de discorrer sobre a pintura). Mas não podemos parar diante desse momento de mudez, salvo para desenvolver uma teoria do indizível que eu qualificaria de preguiça metafísica. Não podemos também nos remeter somente ao mundo do discurso: fazer isso – pratica contumaz dos filósofos que discorrem sobre a arte – põe-nos no risco de ilustrar nosso discurso com imagens, e não de confrontar nossa palavra com essas imagens.
Escrever sobre as imagens é inicialmente escrever. É articular o que aparece inicialmente como uma experiência do inarticulável apesar de tudo. É escrever o inarticulável mesmo, ou a partir dele, preservando-o, e sabendo escrever que se o preserva. É procurar todas suas energias na própria escritura, é abrir as possibilidades poéticas e filosóficas de conseguir algo – uma palavra, um texto, um estilo particular que daria conta dessa imagem particular – a partir de uma mudez primeira. É preciso, por isso, uma espécie de coragem: coragem de olhar, olhar ainda, coragem de escrever, escrever apesar de tudo. Escuso-me em dizer que as imagens de Auschwitz sobre as quais trabalhei constituíram durante muitos anos esse “inexpugnável” ou “indizível” do qual o senhor fala. Eu sairia dali preferindo olhar para outro lugar e exclamando ma che bello! diante dos esplendores do Renascimento italiano. Foi preciso a insistência de Clément Cheroux, o organizador da exposição Memórias dos campos, para me dar a coragem de enfrentar essas imagens e então consagrar-lhe tempo (isso suporia abandonar todos meus objetos de competência e o prazer habitual para um período indefinido e sem qualquer garantia de resultado). O que quer que eu articule a partir delas constitui evidentemente uma contribuição parcial ao seu conhecimento. Essas imagens guardam todo seu poder de ainda nos surpreender, isto é, de suscitar novas maneiras de falar e de pensar.
Eu lhe disse agora mesmo minha reserva em relação a toda ontologia da imagem. Não há imagens que, em si, nos deixariam mudos, impotentes. Uma imagem a respeito da qual não poderíamos dizer nada é geralmente uma imagem para a qual não lhe dedicamos o tempo – mas esse tempo é longo, ele demanda coragem, repito – de olhar atentamente. De re-inquietar-se a cada instante.

Entrevista realizada por Mathieu Potte-Bonneville & Pierre Zaoui e publicada na revista Vacarme, n°37, do outono de 2006: http://www.vacarme.org/article1210.html
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko