domingo, 15 de maio de 2011

Para além de Édipo e Narciso: notas sobre a psicanálise

Peter Sloterdijk

Em correspondência com sua aproximação erótico-dinâmica, a psicanálise trouxe à luz muito daquele ódio que forma a obscura inversão do amor. Ela chega a mostrar como odiar seja sujeito a leis similares àquelas do amar e que, em ambos, projeções e coações repetidas dirigem o comando. Por longo tempo a psicanálise permaneceu muda diante da ira que surge da busca por sucesso, da consideração, da auto-estima e das suas repercussões. A teoria do narcisismo é o sintoma mais evidente dessa ignorância voluntária que seguiu o afirmar-se do paradigma analítico. Representa o segundo desdobramento da doutrina psicanalítica com o qual se deveria eliminar as imprecisões do teorema edípico. É claro que a teoria do narcisismo coloca significativamente o seu interesse na auto-afirmação do homem, mas na esfera de influência deveria incluir, contra toda plausibilidade, um segundo modelo erótico. Assume-se o cansaço inútil de deduzir do auto-erotismo e das suas divisões patogênicas a obstinada riqueza dos fenômenos timóticos. Certamente a psicanálise formula um respeitável programa de educação para a psique, com o objetivo de transformar o estado narcisista em um amor maduro pelo objeto. Nunca lhe vem em mente, no entanto, conceber uma via educativa análoga para a produção de adultos orgulhosos, de guerreiros e de portadores de ambições. Para os psicanalistas a palavra "orgulho" é, no máximo, somente uma recorrência vazia no léxico dos neuróticos. Com os exercícios para desaprender, os quais se chamam formação, os psicanalistas perderam o acesso àquilo que a palavra designa.
Todavia, Narciso não está à altura de ajudar Édipo. Escolher como modelos essas pessoas míticas nos revela mais de quem os escolheu do que da natureza do objeto. Como uma criança com traços que mostram fraqueza mental e que não pode distinguir entre si e a sua imagem refletida poderia compensar a fraqueza de um homem que conhece o pai somente no momento em que o mata e, num erro, gera os seus descendentes com a própria mãe? Ambos são apaixonados que encetaram caminhos enlameados, ambos vagueiam tanto na dependência erótica que não seria simples decidir qual dos dois seria o mais miserável. Com Édipo e Narciso poder-se-ia começar de modo convincente uma galeria dos protótipos da miséria humana. Dessas figuras tem-se compaixão, não admiração; e nos seus destinos, quando se trata do ensinamento escolástico, está por se reconhecer o modelo mais potente de todos para os dramas da vida. Não é difícil descobrir a tendência de base dessa preferência. Quem quer transformar os homens em pacientes - isto é, em pessoas sem orgulho - não pode fazer nada melhor do que promover figuras como essas como emblemas da conditio umana. Na verdade, a sua lição deve ter estado no aviso relativo ao fato de que o amor desconsiderado e unilateral zomba de seus sujeitos. Somente quando o fim é ab ovo a representação do homem como marionete do amor serão explicados o miserável adorador da própria imagem e o também miserável apaixonado pela sua mãe como modelos da existência humana. De resto, pode-se constatar como os fundamentos da psicanálise foram, no meio-tempo, soterrados pela excessiva difusão das suas ficções mais eficazes. Observando-os de longe, também o jovem mais cool dos nossos dias sabe ainda o que se entende por Narciso e Édipo, mas participa de seus destinos de modo, antes de mais nada, aborrecido. Não vê mais neles uma imagem originária do ser humano, mas, com compaixão, falidos sem importância.
Quem se interessa pelo homem como portador dos movimentos orgulhosos e auto-afirmativos deveria decidir-se a cortar o nó górgio do erotismo sobrecarregado. É necessário retornar à opinião de base da psicologia filosófica dos gregos, segundo a qual a alma não se manifesta somente no eros e nas suas intenções, mas muito mais nos movimentos do thymós. Enquanto a erótica mostra vias para os "objetos" que nos faltam e cuja possessão ou proximidade nos faz sentir completos, a timótica abre aos homens a estrada sobre a qual eles fazem valer aquilo que têm, podem, são e querem ser. O homem, nas convicções dos primeiros psicólogos, é produzido inteiramente pelo amor, precisamente em dois modos: segundo a concepção do eros mais alta e unificadora, na medida em que a alma é assinalada pela lembrança de uma perfeição perdida; segundo a concepção do eros popular e dispersivo, na medida em que esta é constantemente submetida a um variado número de "desejos". De todo modo, não pode abandonar-se exclusivamente às paixões desejantes. Com uma energia muito grande deve vigiar as pretensões do seu thymós e, se necessário, vigiar até mesmo sob os custos das tendências eróticas. Ele é desafiado a defender a sua dignidade e a ganhar tanto auto-estima quanto estima por meio de outros à luz de critérios superiores. É assim e não pode ser diferente. A vida de cada indivíduo singular pede por manifestar-se sobre nos palcos externos da existência [Dasein] e por fazer valer entre pares as próprias forças, por uma vantagem própria e coletiva.
Quem quer superar a segunda determinação do homem a favor da primeira evita, desse modo, a obrigação de uma dupla formação psíquica e transforma a relação entre as energias em questões de balanço interno - tudo em detrimento do senhorio. Tais inversões observam-se no passado, sobretudo nas ordens religiosas e nas subculturas inebriadas pela humildade, nas quais as almas belas dão reciprocamente saudações de paz. Nesses círculos etéreos todo o campo timótico foi bloqueado pela censura de superbia, enquanto se preferiu deliciar-se com os prazeres da modéstia. Honra, ambição, orgulho, elevado amor próprio - tudo isso foi ocultado atrás de uma espessa parede de prescrições morais e "conhecimentos" psicológicos. Todos juntos procuravam banir o dito egoísmo. Esse ressentimento contra o Eu e a sua tendência a valorizar-se, ao invés de ser felizmente sujeitado, que precocemente se instituiu já nas culturas imperiais e nas suas religiões, distanciou por pelo menos dois milênios a convicção de que, na verdade, o tão censurado egoísmo representa frequente e unicamente a incógnita das melhores possibilidades do homem. Somente com Nietzsche vamos novamente estabelecer claramente as condições desse problema.
Com o atual consumismo atinge-se, de modo digno de nota, a mesma exclusão do orgulho a favor de um erotismo sem desculpas altruísticas, holísticas ou distinguido ulteriormente, conquistando, com facilitações materiais, o interesse dos homens pela dignidade. Assim, aquela construção, de início completamente incerta, do homo oeconomicus atinge o seu objetivo no usuário pós-moderno. Um simples consumidor é quem não conhece mais, ou não deve conhecer, desejos a não ser aqueles que, para exprimir-se com Platão, provêm da "parte da alma" erótica ou desejante. Não é por acaso que a instrumentalização da nudez é o sintoma principal da cultura do consumo, admitido que a nudez seja sempre acompanhada por um toque de desejo. Ao menos os clientes, exortados à demanda, não são totalmente desprovidos de armas de defesa. A ironia permanente ou uma indiferença adquirida lhes permitem parar o ataque permanente à dignidade da sua inteligência.
Os custos da erotização unilateral são altos. O obscurecer do timótico torna efetivamente incompreensível, em muitos e vários âmbitos, o comportamento humano - se se toma em conta o fato de que a sua realização podia vir somente com ma educação psicológica, encontramo-nos diante de um resultado surpreendente. Como de costume essa não-compreensão pressupõe em toda parte o erro, não somente na própria ótica. Tão logo nos indivíduos ou nos grupos aparecem "sintomas" como o orgulho, a ambição, uma mais alta vontade de auto-afirmação e uma aguda combatividade, o partido contrário da cultura terapêutica do thymós esquecido representa essas pessoas como vítimas de um complexo neurótico. Assim, os terapeutas se encontram dentro da tradição cristã dos moralistas cristãos. Falam dos demônios naturais do amor próprio, tão logo as energias timóticas se fazem reconhecer abertamente. Não é, talvez, desde os tempos dos padres da Igreja que os europeus têm a oportunidade de ouvir dizer que o orgulho e a ira são apenas movimentos que indicam aos abjetos a via do abismo? Efetivamente a partir de Gregório I o orgulho, aliás superbia, encabeça a lista dos pecados capitais. Quase duzentos anos antes Aurélio Agostinho descreve-a como a matriz para a retirada do divino. Para os padres da Igreja a superbia significa uma ação de fato do consciente não-querer-assim-como-o-Senhor-quer (um movimento cuja presença acumulada aparece já clara nos monges e nos servidores do Estado). Quando se diz que o orgulho é o pai de todos os vícios, exprime-se a convicção de que o homem seja feito para obedecer - e todo movimento que leva para fora da hierarquia pode significar unicamente a passagem para a ruína.

Peter Sloterdijk. Ira e Tempo. Roma: Meltemi editore, 2007. Trad. para italiano: Francesco Pelloni. pp. 22-26. (re-tradução ao português: Vinícius Nicastro Honesko) Não gosto muito de re-traduções, mas achei o trecho muito interessante e decidi compartilha-lo.

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