terça-feira, 3 de maio de 2011

Uma árvore


Ali havia uma árvore. Ela dava sombra quando fazia muito calor, ela dava o barulho das folhas com o vento no inverno. Ao lado haviam algumas cadeiras de varanda que sustentavam várias risadas, mas que também aguentavam horas de choro. Da grama com flores não resta mais nada; não que tenham se acabado, mas é que ali agora nascem coisas não apenas para a visão, mas para o paladar: cebolinha, salsinha, couve e várias outras coisinhas de horta. Da árvore, porém, realmente não resta mais nada, nem sombras nem folhas. Aliás, escrevo agora na folha n° 379 de um velho caderno todo rabiscado por crianças ali mesmo, debaixo das sombras de outrora. O papel, de alta qualidade, é de outros tempos: folhas grossas, sem linhas e com os desenhos de mãos que hoje não sabem mais que foram elas que por estas folhas passaram.
A luz do dia já está um pouco branca, pálida, talvez pelo outono que já dá suas mostras. Aqui, dentro do jardim da árvore ausente, fotos antigas e algumas mais novas decoram as paredes - às vezes a contragosto de todos -, vozes antigas e já inexistentes parecem ecoar - vozes vivas e também mortas, com histórias novas ou velhas, reverberam por todos os cômodos.
No espaço vazio onde antes as cadeiras de varanda aparavam nossos corpos agora está um automóvel a reinar (como símbolo do movimento, do não à parada, do fluxo entre a vida e a morte, da intermitência dos tempos). Agora reparo que o grande caderno no qual escrevo tem pequenos furos... podem ser de cupins que em outros tempos, em outra casa - esta que fora feita por tábuas de perobas derrubadas por braços fortes e com muito custo - passaram por ele.
Aqui, neste espaço, trouxe meus amores; aqui cantei e dancei ao som doce e às vezes amargo das modas antigas salteadas por aqueles dedos duros que tão vivamente tocam o acordeão; aqui ouvi histórias bobas, tolas e até banais, mas também outras tantas fantásticas, dignas de deixar um García Márquez, no mínimo, intrigado; aqui vi bebês recém-nascidos gritando por leite e vi também um corpo moribundo que jazia quieto e sem derramar nenhuma lágrima esperar pela morte (a qual lhe foi interdita ali, no terreno da árvore ausente).
E volto a pensar na árvore. Era uma copa frondosa, cheia de folhas, que fazia uma sombra imensa no quintal. Agora a sua inexistência começava a lançar sombras outras, novas, não mais no espaço vazio onde antes haviam cadeiras e hoje há apenas um carro a me lembrar do vazio da vida, mas na minha memória. Agora tudo começa a ficar sombreado: será que as histórias que ouvi tinham começo e fim? Será que vinha aqui com a frequência que agora imagino ter vindo? Será que a copa da árvore era tão frondosa como agora desenho na minha lembrança? São todas questões que se levantam nesta tarde fria, talvez como aquelas outras em que - será? - por aqui passava para ser recebido por um sorriso ou outro. Viro a página, n° 380, e relembro dos cadernos de receita que aqui lia e, tal como Champollion, ajudava a decifrar. Aqui nascera pães, bolachas, bolos... e, assim como o homem, tão logo nasciam, morriam.
Penso em certos verbos, penso em certas ações, penso em certos modelos... talvez influenciado pelos livros de receitas. Mas como dizer "eu nasço"? Como dizer "eu morro"? Ninguém diz eu nasço, ninguém diz eu morro. Aliás, ninguém pode dizer essas ações e "vivê-las". Como dizer nascendo? Como viver a morte? Esses verbos deveriam ser defectivos. Eu não nasço, eu não morro. Sou eterno? Estou fora do tempo? Acho que não, nada disso: nem eterno, nem mortal... mas finito, com a morte como companheira. Também parece que somos só passageiros de uma viagem que chamamos vida... e agora me sinto furtivo entre estas coisas que nos enganam, as palavras.
É com palavras que tentamos reconstruir uma história; é com palavras que queremos lembrar, que queremos refazer imagens... mas elas nos enganam e a árvore foi a árvore, e a sombra foi a sombra, e aquele tempo foi aquele tempo.
Não há mais sombras, não há mais árvore, não há...

Imagem: Martine Franck. France. Languedoc-Rousillon region. 1989.

Um comentário:

Isa. disse...

Nossa, adorei.
O melhor que li até agora. Só fica atrás do texto da roseira.
Tá perfeito!
parabéns, nino.