sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Bateu um vento na roseira...


O peso de uma caneca cheia de café com leite era equivalente ao peso de minha vida naquele instante. Figuras das mais diversas manhãs invernais: encasacados, perambulando por algumas ruas de mais uma das cidades planejadas pelos ingleses que cá estiveram. Tempos – muito depois dos ingleses – em que galhos no portão sinalizavam a presença daquele café com leite, de umas bolachinhas e de umas boas horas de conversa e risadas à toa, assim, pelo simples fato de rir. Galhos que às vezes traziam também algumas preocupações, aquelas contumazes, mas que sempre vinham de maneira diferente. Um caminhar lento e despretensioso, com muito sentido, não uma direção, mas as mesmas direções com muito sentido. E um café com leite na canequinha de louça, aquela, a do dia a dia, a de sempre. O gosto era mais especial, aliás, tão bom quanto esse era só a sensação de água fresca do filtro de barro na caneca de alumínio. Nesse filtro uma toalhinha com bordados de crochê tampava a marca “São João”. E o crochê estava por tudo: pelo chão da casinha nº2, em tapetes que a enfeitavam; nas camas, as colchas; nas janelas, as cortinas. Recentemente o crochê se tornara mais difícil, talvez pelos nozinhos dos dedos, bem mais grossos do que as falanges, que, acho, às vezes deviam doer (aquela silenciosa dor). Agora eram os aventais com passarinhos: proteção para os peitos e para os peitos que naqueles peitos mamaram. Na sala, os papeis desordenados, uma bagunça de contas de água, luz e telefone anotadas com uma caligrafia torta e desenhada. Números que às vezes pareciam pontas de narizes de rostos por desenhar, ou, talvez, a ponta de uma orelha? Não sei, não sei... eram porventura também fruto daqueles nozinhos dos dedos, que possivelmente dificultavam a escrita daquelas mãos com tão pouca habilidade nessas histórias de papel e caneta. Mas pra que tantos números e tanta correição se a vida estava lá fora, nas cadeiras de varanda, nos rostos felizes e sorridentes do pessoal que ali todos os dias se reunia, assim, para rir à toa? Vida reunida num só ventre, de um só ventre. Aquela vida, porém, que, como a minha, agora pesava justamente uma caneca de café com leite, nada exigia. Os dias, as tardes, passavam tão de pressa que aquele frequente “é cedo Tuta” soava sempre frágil e esperançoso, como que a desejar a tarde seguinte, e a seguinte, e a seguinte... Desejo estampado nos olhos e no sorriso maroto, pronto para suportar o cheiro e a força da solução do sal amoníaco em água, mistura imprescindível pro gosto daquelas tardes. Desejo de um ser qualquer, qual-quer... Quodlibet ens est unum, verum, bonum. E talvez os transcendentais a ela se aplicassem em demasia... E neste instante o café com leite na caneca de louça se equivale ao meu ser e se rarefaz na minha historicidade, esta, das tardes de sol com cadeiras de varanda com risos incandescentes, dos assombros sempre previsíveis diante de pequenos incidentes, dos passos lentos e compassados pelas calçadas das ruas planejadas, dos galhos enfiados em meio às grades dos portões e das rosas que me cobriam nas noites que dormia fora e me esquecia do cobertor...
quase 27 de fevereiro de 2010... Vini

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O Poeta Prometeico

Gleichnis von den Blinden, Pieter Brueghel, 1568.

“La Poesia era la palabra... Mas cuando los mercaderes y los fariseos del templo la enturbiaron y la corrompieran utilizándola para encomiar sus mercancías y acatar las ordenes injustas del Sumo Sacerdote... Cristo habló en parábolas... La parábola... aún no está corrompida.” León Felipe. El Poeta Prometeico.

O poeta prometeico fala, poetiza por parábolas. A parábola escapa ao jogo mercadológico, oikonomico, das trocas nefastas no qual a palavra se colocou; mas a parábola é o que se parece, a ressemblance, com o que é falado; é semelhança que afasta e dá ao parecido a sua forma singular, sua forma em imagem. Como um personagem imaginário, o poeta prometeico tem o semblante voltado para sua efemeridade e faz pantomima da verdade cósmica universal; não traça o logos, a Palavra, mas fala por Gleichnis, por semelhança, a partir da qual abre os olhos para ver a morte própria – sabe que seu cadáver (Leiche) já está consigo – e a morte espelhada nas coisas, nas paredes do mundo. O seu rosto carrega o peso da perda de si diante da semelhança que seu eu encara, isto é, na sua transitoriedade, de modo a poder ver a morte que se reflete nas coisas e a sentir o peso do tempo que está nessa distância dele consigo mesmo. O poeta prometeico inicia a história rompendo o círculo do eu que se identifica com o seu eu reflexo. Não crê na identidade e verdade de uma palavra que diz justamente a verdade unívoca das coisas; sabe que é dividido em si mesmo, que está numa contenda política consigo mesmo, pois, uma vez que ingressou na linguagem, sabe que o seu gesto poético não pode ser neutro e que só lhe resta um princípio de divisão infinita do qual não há saída (ele só é ressemblance, imagem, de si) apenas uma fuga, um constante movimento.
O poeta prometeico diz parábolas, pois sabe, de antemão, que seu corpo já padeceu sob os auspícios de algozes; sabe que para reconhecer seus pares, não é preciso aceitar a apresentação das vísceras como única forma de pertencimento à conjunção de coisas públicas (sua contenda é política desde o seu interno: sua própria divisão – o afastamento da mão da parede e seu consequente vestígio que nos chega ainda do tempo das cavernas). Da tortura e da estripação sacrificial ele tenta passar longe; essa é a tentativa de fazer com que os portadores dos rostos invisíveis não necessitem mais passar à exposição do interno: o externo e o interno não mais se contradizem e não precisam mais da expiação para terem seus lugares. Um se dobra no outro, sem ângulos e sem vértice, diria Murilo Mendes na sua Parábola, sem a esperança de uma retidão normativo-moralista, mas de maneira oblíqua e perifrástica, na tentativa de escapar de uma oikonomia dos corpos cujo único escopo é aguardar a vida do outro corpo, o glorioso e que, enquanto aguarda, só consegue manter-se com o eterno sacrifício diário do corpo – Hoc est enim corpus meum – num rito massacrante (o Reino) e aos olhos de todos (a Glória).