sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Estudo sobre a memória VI



Estranho tempo em que o tempo de seus sorrisos já não contam. Talvez numa tarde, tal como esta que se avoluma, haja tempos e sorrisos outros. Tempos já sorridos e sorrisos já transcorridos na alvura de uma folha em branco. Não conseguiria repetir as cartas que um dia lhe enviei (e penso na fixação de Vermeer por pintar mulheres lendo cartas: talvez sejam os retratos das cartas que ele nunca conseguiu escrever...). Aliás, nenhuma palavra seria capaz de dizer sorrisos e tempos. Tudo se esvai na lentidão deste suposto poema em prosa, desta inimaginável vontade de tocar com os dedos este nada de lembranças que povoa a tarde já avolumada. Conto o tempo e estranho; conto contos com letras em folhas e também estranho; não é estranho dizer que tento um poema em prosa a alguém tão presente nesta ausência quase absoluta que são as lembranças? Talvez, dos tantos poemas já feitos, e a tantos alguéns dedicados, não restem senão traços. Ou melhor: talvez não restem senão as montanhas de desterro e pó onde habita aquilo que se nomeia memória.


Imagem: Johannes Vermeer. Garota lendo uma carta com a janela aberta (detalhe). 1657. Gemäldegalerie, Dresden.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Ode à toupeira



Passa-se o ponto. Passa-se tudo, o que resta os vermes comem. Passa-se do ponto. Passa-se.

São Paulo, alerta de evacuação: os ônibus continuam lotados, milhares de carros trafegam, assim como os banhos regados a volume morto alkimista, o relógio ponto do trabalho sem sentido, as missas, jantares em família, giram giram os batentes da porta do banco.

E o tempo, com o trabalho implacável, a tudo desgastando, até as pedras.  

Mas pequenas doses de cinismo diário - mais corrosivo que absinto falsificado - pingam em meu cérebro cansado.  

Sim, José Sarney continua vivo e muito provavelmente terá uma morte natural.

E-terno


Cifras
Palavras cifradas
Mensagens cifradas
Cifrões
Se fodam os bordões
Se foram os ladrões
Fiquei somente eu
Cena de crime
Não se anime
Eu sou suspeito
De abrir o peito a procura
E a doçura me amargar a boca
Me lavar a boca
Me levar a louca
Me lavar a louça
Me laçar aos poucos
Me lançar aos porcos
Pérola que sou
Pérola que estourou
Dentro da ostra
Ostra sou
Ostra soul
Ostra-cismo que me abro sempre
E sempre não é todo dia
E sempre é mais que toda vez
É eterno
E eu de terno, blefando cifras, violando e cantando em qualquer lugar...


Piter Zander, poeta e pescador dos Campos Gerais 

Imagem: Francis Bacon (1909-1992)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Palavra


Toda palavra são todos os ditos
Alguém me disse ter falado
mas já não sei a palavra falar
Alguém me disse ter dito
mas também não sei a palavra dizer

Resta-me agora a Palavra
que tampouco saberia dizer.

Imagem: Ulisse Aldrovandi. Espécies da natureza. Biblioteca Universitária de Bolonha.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

À destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

O mundo é uma redoma de vidro impregnada com as impressões digitais de algum deus desaparecido, querida. Foi isso que há pouco vislumbrei num sonho (sonhado tal qual talvez sonhava com seus sonhos ao meu lado). Tomei essa imagem de empréstimo tão logo acordei e comecei a sentir certa brisa que vinha do lugar impossível onde você está. A cada carta sua que não recebo, sinto que você deseja a poesia. Mas a vida prosaica lhe é mais forte; aliás, a vida prosaica é seu norte nessa bússola que nos guia pelos mares da redoma. Eu, com minhas velas abertas para ventos que não sei bem de onde vem e para onde me levam; você, com seus remos afundados e seu sorriso irônico, à espera da minha próxima carta que, talvez, possa ser um mapa para esse lugar nenhum onde seu deus descansa depois da criação. Querida, hoje Rimbaud faria 160 anos, não fosse a África, não fosse a vida. Mas seu "eu é um outro" ainda risca aqui e acolá meus mapas endereçados a você. Precisaria de quantas letras para dizer que a poesia não se acha numa vida prosaica, num recôndito lugar ao abrigo da ausência divina? Mas não, não escreverei nenhuma delas, porque não há lugar mais impertinente do que o ocupado por um remetente, e de nada valem as letras que tentam apagar as impressões digitais do desaparecido. Você insiste na impossibilidade e cola cartazes de "procura-se deus" na popa de meu barco. Como, querida, sabia que aquele barco de velas içadas era o meu? "Eu é um outro", não? Ah, como gostaria não me enganar com versos, com estes versos tão diversos como aqueles que um dia lhe escrevi sonhando a vida poética. Mas a mim não há escapatórias, querida. A prosa da vida com a qual porventura você sonhe não aparece na minha bússola (e permaneço perdido: sem versos e sem prosa). E pressinto que, talvez, os únicos mapas possíveis, e que auxiliam a percorrer a redoma impossível com as marcas divinas, são estas pequenas cartas que a você, minha impossível destinatária, insisto em desenhar.      

Do seu remetente impossível.

p.s.: Junto desta envio também um outro mundo impossível, imaginado por Beato de Liébana enquanto lia os traços do deus impossível nas letras dos contos bíblicos...


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre primeiras lembranças

 
 
 
Para Fernando Honesko
"É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte." Foi pensando em tal verso que enquanto me preparava para dormir já sentia as primeiras levas de sonhos. Tentava encontrar minha primeira lembrança: qual havia sido minha experiência de tenra infância de que me lembrava? A primeiríssima, aquela em relação à qual só o líquido amniótico seria anterior em ebriedade? Como a rosa enferma do poema, titubeante, não conseguia definir a minha origem consciente. Mas, talvez, esse seja mais um dos casos em que a exatidão consista na própria ambiguidade. Primeira lembrança porque, justamente, indefinida como primeira; primeira porque é uma cria dos delírios da invenção do exato "assim foi...". No entanto, o som de um coração que escutava bater no ventre de minha mãe, quando eu não tinha mais do que três anos, parecia pulsar com mais força agora que me dava conta de que, talvez, fosse aquele som a primeira coisa a se marcar em minha memória. Neste instante em que escrevo, e minha memória parece indecisa entre o perfume de um eterno presente e a morte das imagens passadas, deixei com que ela, a memória inebriada por essa doce melancolia, me guiasse até o ponto em que não sabia mais, até o lugar onde minha existência consciente parece "iniciar-se". E foi como se estivesse novamente encostando o ouvido no ventre ocupado de minha mãe, como se estivesse escutando as histórias de minha mãe sobre o bebê que ali vivia; foi como se ainda estivesse conversando - balbuciando - com aquele bebê que não podia me responder senão com leves movimentos e com um coração em ritmo frenético; como se ainda estivesse pensando tal qual a criança de pouco mais de dois anos, sem as marcas dos tempo transcorrido e com a leveza dos espaços em branco que começavam a ser preenchidos pela tinta da vida. O quanto de "assim foi" ou de "verdade", que ocupa essa minha lembrança, não passa de tentativas vãs de equacionar e tornar exata a ambiguidade da vida, cujo obscuro início de todo nos foge. Importa-me agora, escrevendo pouco antes de sonhar, a leveza ébria da recordação que, não menos que o presente, ainda me move nas indecisões desta exatidão ambígua que é a vida.
Imagem: Rafaello de Sanzio. Retrato de uma mulher grávida. 1505-1506, Galleria Palatina, Firenze.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre as cartas IV


Ao terminar, quase com uma formule de politesse, a carta que escreve a Roberto Assumpção, de Roma, em 05/03/1960, o poeta Murilo Mendes assim se despede do amigo diplomata: "Desculpe-me a extensão desta. Estou habituado a escrever poemas curtos, mas em matéria de carta, sou às vezes torrencial, o que de resto me chateia, porque receio chatear os amigos." Dezessete anos antes, tuberculoso e internado num sanatório em Correias, distrito de Petrópolis, Murilo remetia sua primeira carta ao amigo, e, na linha de abertura desta, pedia desculpas por escrever a lápis, pois a caneta tinteiro havia quebrado. O poeta pede desculpas: por como as letras chegam, pela chateação que, talvez, uma longa carta pode causar, por não controlar a torrente de palavras que por vezes aparece na redação de uma carta - logo, de um mapa - a outrem. Há, nessas palavras de Murilo, uma possível chateação pelo fluxo das palavras, pela onda que constrói uma carta descontrolada e tomada pela ânsia comunicativa. Porém, nessa ânsia é que algo da linguagem comunicativa se perde em traços embaraçosos para o remetente. Mas de que se trata em tal embaraço? Por que essas "desculpas" por "atrapalhar a comunicação" - pelo excesso de palavras ou pelas palavras borradas e ilegíveis, aliás, tão comuns em cartas -, que seria o componente preciso de uma carta? Por que, quando escrevemos a outrem, parece que somos assolados por uma culpa qualquer que, como numa irrupção vulcânica, nos coloca uma quase "obrigação" das desculpas (mesmo que estas, por vezes, venham veladas)? Não seria essa culpa apenas o fato de falarmos, à distância, a alguém que, como nós, também nos fala desde seu silêncio ou de sua resposta? O poeta, que brinca com as palavras em seus poemas, vê-se, diante desse brinquedo inventado, culpado por não poder refrear sua ânsia de dizer, seu desejo, por vezes inconsciente, de fazer da palavra outra coisa que não mero instrumento de dizer; as desculpas são, de algum modo, pelo simples fato de falar. "A linguagem é a pena. Nela todas as coisas devem entrar e nela devem perecer segundo a medida de sua culpa", diz a poeta Ingeborg Bachamann. Numa carta, portanto, entramos numa relação silenciosa em que a distância nos lança todas as sombras dessa culpa, a culpa por excelência dos animais que falam. Desse espaço não encontramos nenhuma redenção e, como que fadigados por tanto dizer, insistimos nessas desculpas para preencher com a tinta do tempo o espaço que nos separa da pessoa que nos lerá...

Imagem: Gabriel Metsu. Mulher lendo uma carta. 1662-65. National Gallery of Ireland, Dublin.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Pequeno parágrafo sobre as cartas III




"Qualquer que seja o Deus a ter entre suas incumbências velar pela correspondência dos terrestres, parece que os fios da nossa escaparam das suas mãos e caíram no poder de algum demônio do silêncio.
Naturalmente, admito que o poderio desse diabo não me é de todo estranho, à medida que o meu próprio mundo interior lhe serve de cenário." Essas palavras de Walter Benjamin, dirigidas ao amigo Gershom Scholem numa carta de 29 de março de 1936, ressoam pelo tempo e, ainda que destinadas ao amigo, hoje se abrem a este leitor qualquer que agora as cita. Mas essa intimidade - e toda intimidade é, tal como Agostinho em suas interpelações a deus, interior intimo meo, o mais profundo de mim que é atravessado por esse fora, pelo completamente outro - da amizade encontra, em cada carta que escrevemos, seu ponto de máxima combustão. Assim, quando em nosso cenário interior demônios-atores - e, para os gregos, o demoníaco (daimonion) estava sempre em relação com a felicidade (eudaimonia); ou seja, feliz é quem está na companhia de um "bom demônio" - atuam numa peça que a nós é sempre desconhecida, começamos a escrever um mapa, uma carta, a alguém que jamais o compreenderá de todo. Qualquer carta, portanto, não é senão um fragmento para dominar esses demônios silenciosos, uma tentativa de atribuir papeis a esses seres que nos fazem lançar palavras a outrem, e, desse modo, com as folhas preenchidas e com o mundo interior esvaziado, permanecemos, com a caneta em mãos, no recôndito de nosso silêncio.

Imagem: Lucas Cranach "o velho". A era de ouro (detalhe). aprox. 1530.  Alte Pinakothek, Munique.