sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Estudo sobre a memória VI



Estranho tempo em que o tempo de seus sorrisos já não contam. Talvez numa tarde, tal como esta que se avoluma, haja tempos e sorrisos outros. Tempos já sorridos e sorrisos já transcorridos na alvura de uma folha em branco. Não conseguiria repetir as cartas que um dia lhe enviei (e penso na fixação de Vermeer por pintar mulheres lendo cartas: talvez sejam os retratos das cartas que ele nunca conseguiu escrever...). Aliás, nenhuma palavra seria capaz de dizer sorrisos e tempos. Tudo se esvai na lentidão deste suposto poema em prosa, desta inimaginável vontade de tocar com os dedos este nada de lembranças que povoa a tarde já avolumada. Conto o tempo e estranho; conto contos com letras em folhas e também estranho; não é estranho dizer que tento um poema em prosa a alguém tão presente nesta ausência quase absoluta que são as lembranças? Talvez, dos tantos poemas já feitos, e a tantos alguéns dedicados, não restem senão traços. Ou melhor: talvez não restem senão as montanhas de desterro e pó onde habita aquilo que se nomeia memória.


Imagem: Johannes Vermeer. Garota lendo uma carta com a janela aberta (detalhe). 1657. Gemäldegalerie, Dresden.

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