quarta-feira, 30 de julho de 2008

Texto-teste... sans tête

A arte da conversa, Magritte

Diante do gigantesco monumento (será um monumento? será um vestígio de alguma civilização?) em que pedras e mais pedras se empilham e nos dão a impressão de um peso inimaginável, dois homenzinhos dialogam. De que falam? Podem falar das impressões que tal monumento lhes causa. Um deles talvez pode falar da idéia que tem diante de tal grandeza. O outro pode se dizer atônito com o fato de que nunca tinha visto nada semelhante; ou talvez pode achar que está apenas diante de um dessaranjo imenso, ao que seu amigo (será seu amigo?) pode dizer que não... Ou ainda ambos podem ter notado que à base da grande montanha exista algo como uma inscrição (uma formação) na qual se lê: RÊVE, ou, em português, SONHO. Talvez ambos vejam este sonho que se afunda como única clareza da massa de pedras. Talvez não seja a única. Um deles pode ter percebido e mostrado ao outro: "TRÊVE", trégua, que, não com tanta clareza, também ajuda a sustentar as pedras. Com um pouco mais de atenção, e depois de discutirem um pouco sobre o monumento (ou será uma ruína?), um dos dois senhores diz: "CRÈVE" - morte - "...também leio morte". Sonho, trégua e morte portanto são as palavras-pedras que dizem mais do que as duas pequenas personagens (e suas vozes inaudíveis) na sua longa conversa (será que eles realmente tiveram uma longa conversa?). Foucault percebe que ao caos do monte certa ordem é dada pelas pedras arranjadas em forma de SONHO, TRÉGUA E MORTE. Diz o filósofo francês que o silêncio das pedras domina estes dois tagarelas e assim o faz justamente dizendo: sonho, trégua e morte. Através de seu mutismo, as coisas - estas pedras - compõem palavras que nada pode apagar (daí talvez a solidez das pedras de Magritte ser um potente símbolo deste caráter inapagável das palavras). À revelia dos dois homens as pedras expõem suas palavras que àqueles se impõem no jogo cotidiano das conversas. A muda conversa dos dois homens está, portanto, diante de uma imensidão inorgânica que, em seu mutismo, é perfeitamente audível. As pedras do monumento-ruína (as pedras que no meio do caminho do poeta se encontram; as pedras-ruínas que se cristalizam no mundo como restos históricos, como traços-vestígios de civilizações; as pedras que se formatam como monumento) carregam em si, na sua conformação enquanto imagem histórica, uma assinatura, um algo que lhes permitem legibilidade. Tal é o efeito da tríade SONHO, TRÉGUA E MORTE no quadro de Magritte. No jogo do pintor é trazida à luz - numa modulação que (de)forma uma imagem, que subitamente ordena aquilo que parecia inordenável; dá leitura a um ilegível - uma distância, um descarte entre a imagem pictória das pedras (sua fulguração no quadro; seu dar-se como significante) e sua referência discursiva (o(s) significado(s): sonho, trégua e morte). É neste espaço que a inaudível conversa das pequenas personagens se encontra. Leituras das pedras; melhor dizendo, trata-se do espaço próprio das enunciações. Mais do que a colocação das pedras de modo a formar as palavras e menos do que o significante que tais palavras carregam em si, tal espaço é, talvez, justamente o ponto em que a imagem do quadro se forma (entre sua materialidade pictória e sua forma-quadro). Não se trata de um jogo de meta-linguagens (o discurso formado nas pedras em relação às próprias pedras, o discurso dos senhores em relação às pedras, o discurso dos observadores do quadro etc etc...), nos quais a justaposição de significados restaria sempre adstrita e fechada num sistema de referencialidade hermético (o jogo semiótico/semântico), mas da exposição do limiar entre as palavras e as coisas - limiar este que se configura como um índice (indicium, que, como nos lembra Agamben, remete ao latim dico, mostrar com a palavra, portanto, dizer). O que se mostra com a palavra não é um objeto exterior à linguagem (o que novamente revelaria seus dois planos: semiótico/semântico), mas é o próprio ter-lugar da linguagem, seu estatuto histórico. É enquanto índice histórico que a leitura do quadro de Magritte pode ser feita. No seu esforço por tornar legível um ilegível, os traços do artista expõem uma ambigüidade própria de uma imagem dialética, no sentido benjaminiano. Isto é, o trabalho crítico das personagens que pertencem ao quadro (e também daqueles que, de fora, olham o quadro) diante dos indícios (índices - que aqui são dizeres imemoriais que ecoam nas pedras). Este trabalho é precisamente um trabalho de memória, não no sentido de uma rememoração intencional, mas como escavação arqueológica (e aqui o cenário do quadro é exemplar: uma ambiente de início do mundo, como lembra Foucault). Porém, também esta escavação não é uma busca por uma origem no tempo (por mais que a pintura exponha a condição de início, ou de gigantomaquia). Não, não é disso que se trata. Não é nem um ante, nem um post, mas um estado anacrônico no qual a origem (a arké) é sempre presente (Didi-Huberman diria au-delà de la présence, bien en deçà de la représentation: alors, vers la présentation). Esta, a origem, não é representada (como um significante), nem arremessada para uma meta-história (como um significado de um símbolo representado), mas é apenas um cristal de tempo que marca o objeto histórico (este quadro de Magritte - sem desconexão forma-quadro/conteúdo-quadro) com uma assinatura que lhe garante legibilidade. Nesta escrita-imagética subtraí-se o primado da linguagem sobre a imagem, abrindo o espaço próprio da imaginação (esta descoberta medieval que preenche o vácuo entre o único intelecto possível e os indivíduos). Assim, é através da imaginação que a história se torna possível; melhor, através da imaginação que um historiador procura ter acesso àquilo que chama história. Tal acesso é interdito (ou confiscado por uma História oficial; ou ainda pela Outra História desejada - ainda que com boas intenções - ingenuamente, às vezes nem tanto - pelos vencidos) se a procura for intencional, seletiva, que separe os objetos da episteme que lhes circunda (os documentos históricos). Ler um objeto histórico, interpretar uma obra de arte, não é a produção de um discurso sobre algo (mais que interpretação, diria Raúl Antelo, é comentário); não é a atribuição de um sentido (que no objeto decide seu sentido), mas a leitura-imagética de sua origem, ou, com Agamben, de sua assinatura. Ler uma imagem que não se cristaliza como monumento, como significante ou significado, que não é uma forma bem formada mas uma deformação (forma em formação), é a tarefa do arqueólogo; ou seja, enquanto procura a forma em formação o arqueólogo (o filósofo, o crítico de arte, o próprio artista) tem acesso ao presente, à arké que, como lembra Didi-Huberman, não é nem um conceito (não é pura categoria lógica, porque é paradigma histórico), nem uma fonte das coisas (um arquétipo generativo). Às formas-imagens que se estabelecem como monumentos comemorativos (estanqueidades emolduradas em quadros-da-história), que nada mais celebram que a origem (o evento-origem), contrapõe-se aqui a rede dispersiva de sentidos de uma história que se lê nas infra-texturas (lembremos, de passagem, do inframince de Duchamp), nas assinaturas, em seus enunciados. Sem chronos, sem régua, portanto, sem destinação, a história perde assim sua bússola. É possível não mais falar em formação de imagens históricas, mas de (de)formações imagéticas da história: a tentativa de cumprir no imaginário uma história cujo espaço é uma imaginação sem imagens. Não mais atidos aos discursos (às palavras) históricos, nem tampouco obsessivamente presos às coisas (as coleções insistentemente colocadas em pedestais intocáveis) históricas. Como a face do Cristo impressa no Sudário (uma imagem achiropita, isto é, que "milagrosamente" teria aparecido sem ter sido feita por mãos humanas) faz deste um objeto de veneração, pois, deste modo, o Sudário carrega em si o toque do divino, a visibilidade do Deus invisível, a assinatura (com firma reconhecida, como queria Vinícius de Moraes - talvez o cartório do céu seja o Vaticano...) do próprio Deus, assim também a busca do arqueólogo deverá ser pela semelhança deixada pelo contato entre as palavras e as coisas. Esta busca, que traz o passado ao seu cumprimento no presente da sua legibilidade, é, talvez, aquilo que resta a todo filósofo, artista ou crítico...

O começo histórico é sempre acéfalo...


quinta-feira, 24 de julho de 2008

Glosa à puta razão...


Desculpem-me o mau gosto, mas, a título de perplexidade, leiamos em uníssono o guia que nem Maimônides conseguiria escrever...


"Preocupada com as discrepâncias no preenchimento do Curriculum Lattes, a Associação... solicitou aos professores Beltrano e Cicrano a elaboração de um conjunto de sugestões para a área de Fio-da-sofia, de modo a facilitar a avaliação do pesquisador pelos órgãos competentes. A partir de levantamentos da prática de preenchimento do Curriculum na área, bem como das normas do CMPqP que podem ser encontradas na “ajuda” do programa Lattes, os referidos professores chegaram ao presente documento, que a Associação torna público agora (as observações terão em vista o Curriculum em seu formato ampliado, uma vez que o CV acessado via internet é o completo e o formato resumido deixa de lado uma série de informações consideradas relevantes).
Antes de mais nada, há de se levar em conta que o Curriculum Lattes foi construído ao longo do tempo e pretende se adequar a uma grande multiplicidade de áreas, com suas culturas próprias. Vários itens foram incorporados, muitas vezes sem uma conexão lógica rigorosa, mas atendendo a aspectos pragmáticos de suma importância no dia a dia do pesquisador. Por isso, não se deve esperar deste documento uma espécie de modelo autoconsistente, de vez que algumas das sugestões apresentadas poderiam encontrar locais diferentes nas diversas categorias previstas pelo programa. Procurou-se apenas, com bom senso e pragmatismo, dar algumas soluções a problemas usuais encontrados no preenchimento dos diversos itens do CV. Além disso, como muitos itens são de preenchimento óbvio, a atenção foi concentrada nos casos considerados duvidosos, que permitem mais de uma interpretação."

Ainda que as boas intenções possam ser mencionadas, acho que não mais ruborizo ao pensar em ingenuidade... Aliás, o que nos permite mais de uma interpretação nas atuais circunstâncias??? Prá lá, prá cá, prá lá, prá cá.... sou um João bobo mesmo...
Como de costume, oremos:
Ó grande plataforma,
Ajudai-nos em nossos tortuosos caminhos.
Prometo que acertarei os pingos dos is e
que, meditante tuas bençãos, conseguirei
mais e mais pontos para meu cu-rículos.
Ó tu que lattes, por favor, não me mordas!
Livre minhas malditas mãos,
para que elas possam completar teus tão diletos espaços.
Prometo não errar porque, se assim o fizer,
sei que serás impiedosa!
Suplico, senhora plataforma,
para que do seu virgem seio
possa nasser nosso redentor.
Sim, venha ó rebento esperado,
pois gemendo neste vale de lágrimas
aguardamos o grande dia do seu-Juízo!
Amém

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Oração do espelho


Francis Picabia. L´oeil cacodylate, 1921.

Coma-me espelho!
Digira-me e sinta o ranço da minha carne!
Pois o que quero é ver
É me ver comido,
é aproveitar-me no seu íntimo!
Ó superfície bárbara!
Que tua lisura se encha com minhas fezes!
Faça com que me veja assim, como "sou"!
Um entulho atordoado por tantos de vós.

Ah espelho, faça de mim o meu outro!
Rogo para que sejas gentil
e mastigue minha carne com doçura.
Não me cuspa nesta merda que existe,
aqui do lado de cá da sua deliciosa boca.
Ah espelho, ah como sinto tua ausência.
Não podes me acompanhar, sempre?
Não podes cagar-me do lado de lá?!?
Que minha carne seja o motivo de tua indigestão.

Ó espelho, coma-me, mas depressa,
antes que a fedentina daqui entre na tua morada.
Aquele idiota do Narciso já teve seus regozijos,
deixe-te agora saborear minha putrefata carne.
Coma-me, mas não me vomite:
ainda não estou morno, olhe, estou quentinho!
Coma-me e faça de mim sua obra, obra-me!

Amém

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Algumas corruptelas

meditação a cabo.


como um Buda enfadado
a bebericar cervejas

imperturbavelmente

sentado num sofá.




Hai-cai o Muro de Berlim!


Por uma mera vogal ideológica
Todo beato é beat
Todo beat é beato




poema paulistano

pichados Pinheiros de pedra
na palimpsestica paulicéia psicótica.





foto Psychofun

sábado, 5 de julho de 2008

Sobre acólitos e afins...


Tintoretto, Crocifissione


Na celebração eucarística – as missas dos católicos romanos – existe uma figura interessante, cujas funções operatórias são ligadas à organização e à preparação dos instrumentos próprios à realização do rito: o acólito (que, quando ainda infantil, recebe o popular nome coroinha). Este jovem, muitas das vezes incomodado com a paramenta ministerial cujo uso lhe é forçosamente imposto, deve preparar o altar alguns instantes antes da realização da missa (organizando o cálice, as galhetas, as patenas, o ambão, o manustérgio, o sanguinho, a naveta e o turíbulo nos dias de festas, enfim, todos os apetrechos necessários para o grande sacrifício que ali se realizará). Como bom auxiliar, o acólito deve realizar todas as suas tarefas inadvertidamente. Ele, juntamente com os ministros – aqueles senhores de respeito, homens da sociedade local que representam algum papel de importância (em geral são farmacêuticos, médicos, advogados, empresários, enfim, todos operadores de funções sociais constantes) –, deve fazer com que nada fique fora do lugar na ordem dos eventos da celebração. Além destes atos pré-missa, também ao acólito é necessária a participação no próprio ato ritual. Assim, ele deve saber entoar todos os cantos, deve saber todas as respostas litúrgicas prescritas, bem como deve saber se movimentar imperceptivelmente no espaço do altar, de modo a servir o sacerdote com perfeição – colocando ao alcance deste todos os paramentos necessários para a realização do ato sacrificial-eucarístico. Sua participação, portanto, se dá principalmente durante o ato eucarístico, que compõe a parte final da missa: tocam a sineta no momento da consagração, incensam o sacerdote, preparam as galhetas, lavam as mãos dos sacerdotes e ministros e seguram a patena no momento da distribuição das hóstias consagradas aos fiéis. De todos os atos praticados pelos acólitos – confesso que já o fui certa vez –, talvez seja este último o que mais me chamava a atenção. À simplicidade do ato (acompanhar o ministro de eucaristia durante a distribuição das hóstias consagradas, atuando como salva-guarda do corpo de cristo – isto é, com patena em mãos, não pode deixar que nenhuma hóstia caia no chão) corresponde uma responsabilidade imensa: ele, o simples assistente, deve evitar que até mesmo as minúsculas partículas da hóstia consagrada venham a cair no chão, o que faria com que deus pudesse ser vítima de um pano de chão, por exemplo – tendo como triste fim uma estação de tratamento de esgoto de uma cidade interiorana qualquer. Ele, o simples assistente, que deve passar sem ser notado durante todo o ritual da missa, é o portador da salvação do próprio deus. Ele, o simples assistente, a presença irremediavelmente irredutível do infante no mais alto sacrifício que a nossa cultura ocidental jamais ostentou, é, juntamente com sua patena, o verdadeiro redentor do deus-trino. Ele, o simples assistente, a desajeitada criança dentro dos sérios paramentos eclesiásticos, já sempre relegado às penumbras da missa (“movimente-se com destreza de modo a cumprir estritamente tuas funções!!!” talvez seja a frase mais recorrente de um sacerdote), é o já sempre esquecido diante da magnitude do ato sacrificial. Ele, o simples assistente, que acompanha todo o ritual (como uma voz recôndita no algoz, uma brisa que lhe sussurra o que fazer com a vítima) para dele ser esquecido, ainda que, muitas vezes, tenha, com sua patena, resgatado o deus das sevícias do escovão da faxineira e, quiçá, das fétidas galerias de esgoto.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A morte e a mosca


... em todos os tempos, todos, morremos como moscas que o outono lança nos quartos onde rodopiavam cegamente numa vertigem imóvel, atapetando de repente as paredes com sua tola morte. Mas, passado o medo, ele reupera a tranqüilidade evocando o mundo mais feliz de outrora, e essa morte mesquinha que lhe causava frêmitos parece-lhe revelar somente a indigência de uma época votada ao divertimento e à pressa.
Maurice Blanchot, O Espaço Literário, p. 120.