sábado, 5 de julho de 2008

Sobre acólitos e afins...


Tintoretto, Crocifissione


Na celebração eucarística – as missas dos católicos romanos – existe uma figura interessante, cujas funções operatórias são ligadas à organização e à preparação dos instrumentos próprios à realização do rito: o acólito (que, quando ainda infantil, recebe o popular nome coroinha). Este jovem, muitas das vezes incomodado com a paramenta ministerial cujo uso lhe é forçosamente imposto, deve preparar o altar alguns instantes antes da realização da missa (organizando o cálice, as galhetas, as patenas, o ambão, o manustérgio, o sanguinho, a naveta e o turíbulo nos dias de festas, enfim, todos os apetrechos necessários para o grande sacrifício que ali se realizará). Como bom auxiliar, o acólito deve realizar todas as suas tarefas inadvertidamente. Ele, juntamente com os ministros – aqueles senhores de respeito, homens da sociedade local que representam algum papel de importância (em geral são farmacêuticos, médicos, advogados, empresários, enfim, todos operadores de funções sociais constantes) –, deve fazer com que nada fique fora do lugar na ordem dos eventos da celebração. Além destes atos pré-missa, também ao acólito é necessária a participação no próprio ato ritual. Assim, ele deve saber entoar todos os cantos, deve saber todas as respostas litúrgicas prescritas, bem como deve saber se movimentar imperceptivelmente no espaço do altar, de modo a servir o sacerdote com perfeição – colocando ao alcance deste todos os paramentos necessários para a realização do ato sacrificial-eucarístico. Sua participação, portanto, se dá principalmente durante o ato eucarístico, que compõe a parte final da missa: tocam a sineta no momento da consagração, incensam o sacerdote, preparam as galhetas, lavam as mãos dos sacerdotes e ministros e seguram a patena no momento da distribuição das hóstias consagradas aos fiéis. De todos os atos praticados pelos acólitos – confesso que já o fui certa vez –, talvez seja este último o que mais me chamava a atenção. À simplicidade do ato (acompanhar o ministro de eucaristia durante a distribuição das hóstias consagradas, atuando como salva-guarda do corpo de cristo – isto é, com patena em mãos, não pode deixar que nenhuma hóstia caia no chão) corresponde uma responsabilidade imensa: ele, o simples assistente, deve evitar que até mesmo as minúsculas partículas da hóstia consagrada venham a cair no chão, o que faria com que deus pudesse ser vítima de um pano de chão, por exemplo – tendo como triste fim uma estação de tratamento de esgoto de uma cidade interiorana qualquer. Ele, o simples assistente, que deve passar sem ser notado durante todo o ritual da missa, é o portador da salvação do próprio deus. Ele, o simples assistente, a presença irremediavelmente irredutível do infante no mais alto sacrifício que a nossa cultura ocidental jamais ostentou, é, juntamente com sua patena, o verdadeiro redentor do deus-trino. Ele, o simples assistente, a desajeitada criança dentro dos sérios paramentos eclesiásticos, já sempre relegado às penumbras da missa (“movimente-se com destreza de modo a cumprir estritamente tuas funções!!!” talvez seja a frase mais recorrente de um sacerdote), é o já sempre esquecido diante da magnitude do ato sacrificial. Ele, o simples assistente, que acompanha todo o ritual (como uma voz recôndita no algoz, uma brisa que lhe sussurra o que fazer com a vítima) para dele ser esquecido, ainda que, muitas vezes, tenha, com sua patena, resgatado o deus das sevícias do escovão da faxineira e, quiçá, das fétidas galerias de esgoto.