quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Visões da carne infinita...

Marta Hoepffner. Nudo, movimento, solarizzazione, 1940.
Fico assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não usar sub-repticiamente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de "uma verdade".
Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? o resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.
Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender. Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam uma sensação física de incômodo, em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como pois inaugurar agora em mim o pensamento? e talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada - então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.
Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. pp. 14-15.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Sobre estar preso


Jogado num canto vazio de uma dessas salas da existência passo as horas. Sinto o frio do piso. Um frio invasivo, pegajoso, soturno como o rato apodrecido logo ali. Rato. Eu que o comi? Morreu e apodreceu sem que eu tivesse participado desse enredo? História suja, piso frio.

A hora do medo. Medo de que? Vida e morte... mais um dos pares dialéticos. A fedentida me enoja e horroriza. Quero distanciar-me dessa sala, quero a certeza de que o frio é irrisório e risível. De nada adianta. As pegadas que deixei na entrada da sala não podem ser apagadas. Cá estou, dentro. A luz branca está acesa; os candelabros são inúteis e, por isso, estão vazios; as velas que acalentam não podem ali estar.

O piso frio me invade. Sou o piso. Mania de sentir-se vivo, mania de passar as horas, mania de olhar para as paredes dessa sala e tentar ver, tentar sentir, tentar não ser o piso. Branco. Palavra branca como a parafina das velas que deveriam ter sido queimadas. Já não estão mais lá. Vazios estão os candelabros. Clamores pelo arredio são sons inuteis que bajulam e fazem rir. Rir pela dor da prisão... Fogo da vida, fogo da morte... consomem, consomem-se. Dialética da prisão. E ali está o rato...