segunda-feira, 22 de junho de 2015

saudação a Molly Bloom


sonhei com seu corpo e seus beijos, doce molly
no exílio ao lado de vinte milhões de pessoas
sonhos com apito de trem 
sonhos com praias desertas no inverno  
sonhos com sotaque e cabelos molhados 
sonhos com muitas madrugadas 
   
nossos corpos e nossos sonhos
em rotação 

mas a vida é de vigília
e a praia deserta é uma imagem no canto do mapa
em sonhos o beijo é sem corpo, sem pele

leopold bloom é um personagem de romance 

quero um amor queimado pelo sol 

"a vida é o novilho
que você põe no rio 
para atrair as piranhas 
enquanto a boiada passa" 

domingo, 14 de junho de 2015

Ao pai



Pássaros cruzam um deserto de nuvens
enquanto há pouco escutava vozes saídas de bocas estrangeiras
percorrer as distâncias dos nossos sonhos
pode ser uma leitura amarga da vida

Passam pássaros, passam pássaros

Idades dos anjos discutimos e
alguém certa vez disse:
mulheres haveriam de instruir os caminhos do deserto
e estamos soltos neste insólito mundo de nuvens e sonhos

O poeta pensou metamorfoses e as fez brotar no seio de Saudade
toda forma é um deserto
e os anjos envelhecem à espera
da nova revoada desses pássaros que insistem em passar

Quantas cartas ainda por escrever?
o amargor e a doçura, pares de sonhos, deserto da vida
há nuvens inundando bocas
enquanto escutamos as vozes que vêm d'ailleurs

Quando nossa conversa infinita acaba
transforma-se em escritura do desastre
e tudo que falo é apenas uma carta sem destino
uma folha a definir a direção dos ventos

Adeus

quinta-feira, 11 de junho de 2015

À Musa Cega



A Herberto Helder

Vi por mim passar um poema
nas brumas dos últimos sonhos:
era móvel, tátil, atraente
e corria como uma criança em direção ao mar.
Deixei-me guiar por seus passos,
tentei tomá-lo em minhas mãos.
Mas era, tal qual Musa Cega,
uma desorientação em noites escuras
de poetas místicos.

Assobios alegres também
eram a forma do poema,
soprados pela boca de minha última amante.
Quanto tempo ainda haveria de
esperar pela volta da luz aos olhos da Musa?
Tateio o poema em busca da linguagem pura,
procurando as mãos eternas que me levam
a uma fogueira perdida, ao som irrevogável
de uma surda voz.

Quem dançava ainda há pouco
na escuridão das noites sem guia?
Ah!, poeta, quantas vezes sonhei
seus sonhos sem imagens nem palavras,
quantas voltas dei ao redor da Musa
que, Cega, me fitava desde a noite escura.
Entro no tabernáculo da poesia
e danço, só, ao som desse assobio alegre
que desenha estes versos por minhas mãos
eternas.


Imagem: Paul Gauguin. Árvores azuis. 1888. Ordrupgaardsamlingen, Ordrupgaard.


segunda-feira, 8 de junho de 2015

Estudo sobre a memória X


A vida esgarça as dobras do tempo e, nessa obra sem arte nem autor, me coloca nu diante do obscuro tribunal da memória. A manhã levanta-se como as vozes que insistem em recorrer os labirintos de minhas lembranças. "Não há amor em nosso desamor, querida?"; "Quantas vezes terei de te esquecer?" Quanto de palavras há em cada silêncio? Quanto de tempo é possível esculpir sem que se percam nas tramas da vida - que tudo devora - suas estátuas feitas juízes? Tento, ainda nu, me evadir da doença mais ou menos grave, mais ou menos incurável que nos transforma os ressentimentos. Que tribunal seria capaz de me julgar? Quanto de alegria não há no desdobrar de cada volta nesse eterno retorno do mesmo? Um cavalo passa por mim e sorri. Tento me compor, mas é tempo de devaneios e sombras. Perdido nos séculos que, como grande ilusão, insistem os homens em chamar de história, não me resta senão deixar vibrar essa fragilidade intempestiva a que damos nome de vida.

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Uma absurdidade oportuna da rainha do circo. 1816-23.